Memórias e Trajetórias Acadêmicas - História do Brasil (2024)

REITOR

Roberto de Souza Rodrigues

VICE-REITOR

Cesar Augusto Da Ros

PRÓ-REITOR DE PESQUISA E PÓS- GRADUAÇÃO

José Luis Fernando Luque Alejos

PRÓ-REITOR ADJUNTO DE PESQUISA E PÓS- GRADUAÇÃO

Leandro Dias de Oliveira

EDUR

Editora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Br 465, Km. 7, Seropédica - RJ - CEP: 23.890-000

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VOLUME III

MEMÓRIAS E

TRAJETÓRIAS

ACADÊMICAS

O RURAL COMO OBJETO

DE REFLEXÃO E VIDA

MEMORIAIS

John Wilkinson

Leonilde Servolo de Medeiros

Sergio Pereira Leite

ORGANIZADORAS

Karina Kato

Leonilde Servolo de Medeiros

Copyright © 2023 por Editora da UFRRJ

Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Federal

Rural do Rio de Janeiro. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou

de parte do mesmo, sob quaisquer meios, sem autorização expressa da editora.

TÍTULO ORIGINAL

Memórias e Trajetórias Acadêmicas : o rural como objeto de reflexão e vida

CONSELHO EDITORIAL

Patricia Reinheimer (coordenadora)

Bruna de Azevedo Baêta

Carlos Eduardo Coutinho da Costa

Érika Flávia Machado Pinheiro

Fabiane Frota da Rocha Morgado

Maria Cristina Drumond e Castro

Marisa Fernandes Mendes

Marta Regina Cioccari

Sérgio Manuel Serra da Cruz

COORDENAÇÃO Wallace Lucas Magalhães

SECRETARIA Mariangela de Campos Dias

PROJETO GRÁFICO, DIAGRAMAÇÃO E CAPA Leear Martiniano

REVISÃO Vania Santiago

UFRRJ / BIBLIOTECA CENTRAL / SEÇÃO DE PROCESSAMENTOS TÉCNICOS

BIBLIOTECÁRIA: ALESSANDRA BESSA (CRB-7 5919)

Memórias e Trajetórias Acadêmicas: o rural como reflexão e de vida. - v. 3

[recurso eletrônico] / Organizadores: Karina Yoshie Martins Kato,

Leonilde Servolo de Medeiros. – Seropédica: Ed. da UFRRJ, 2023.

3184KB ; PDF

Modo de acesso: internet

Bibliografia.

ISBN: 978-65-86859-34-8

1. Ciências sociais. 2. Ensino agrícola. 3. Educação e sociedade. I. Kato,

Karina Yoshie Martins. II. Medeiros, Leonilde Servolo de. III. Izar, Soraya. IV.

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. V. Título.

CDD 302

M533

ORGANIZADORAS

KARINA YOSHIE MARTINS KATO

Professora do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais

em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ) da

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). É pesquisado-

ra do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA) e

do Grupo de Estudos sobre Mudanças Sociais, Agronegócio e Políticas

Públicas, ambos vinculados ao CPDA/UFRRJ, pesquisadora colabo-

radora do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS) e

pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Relações

Internacionais (LIERI/UFRRJ). Possui mestrado e doutorado rea-

lizados no CPDA/UFRRJ e graduação em Ciências Econômicas na

Universidade Federal do Rio de Janeiro - IE/UFRJ (2003).

LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Professora titular aposentada da Universidade Federal Rural do Rio de

Janeiro (UFRRJ) e professora permanente credenciada no Programa de

Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura

e Sociedade (CPDA/UFRRJ). Coordenadora do Núcleo de Pesquisa,

Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Política

Públicas no Campo e membra do Observatório de Políticas Públicas

para a Agricultura. Bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela

Universidade de São Paulo (1971), Mestre em Ciência Política pela

Universidade de São Paulo (1983) e Doutora em Ciências Sociais pela

Universidade Estadual de Campinas (1995).

06

15

132

319

SUMÁRIO

PREFÁCIO

NELSON GIORDANO DELGADO

MEMORIAL

JOHN WILKINSON

MEMORIAL

LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

MEMORIAL

SERGIO PEREIRA LEITE

PREFÁCIO1

Nelson Giordano Delgado2

Foi com enorme satisfação que aceitei o convite para

escrever este breve prefácio ao livro com os memo-

riais elaborados para o concurso de professor titular na

Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) pela profes-

sora Leonilde Medeiros e pelos professores John Wilkinson e Sergio

Leite. São antigos e queridos amigos e colegas do Programa de Pós-

Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e

Sociedade (CPDA) da UFRRJ que tiveram e ainda têm papel proe-

minente na formação, na consolidação e no prestígio acadêmico e

público adquirido pelo Programa no país e no exterior.

1 Agradeço a preciosa e atenta leitura da amiga e colega do CPDA, Profa. Karina

Kato, a uma primeira versão do texto.

2 Professor titular aposentado do CPDA/UFRRJ.

07PREFÁCIO - NELSON GIORDANO DELGADO

Os três professores dispensam apresentação, pois são figu-

ras bastante conhecidas no mundo acadêmico, no Brasil e no ex-

terior, além de terem atuação profissional destacada, em suas áre-

as de pesquisa e de ensino prioritárias (mas não apenas!), junto

a agências públicas, nacionais e internacionais, e a organizações

representativas de diferentes grupos da chamada sociedade civil.

Sem dúvida, foram pioneiros no Brasil na introdução, no aprofun-

damento do estudo e na investigação das transformações por que

passaram e passam as áreas de pesquisa e docência a que se dedi-

caram nas últimas décadas.

Essas áreas de pesquisa e docência marcaram profundamen-

te a pós-graduação oferecida pelo CPDA/UFRRJ, assim como refle-

tiram algumas das mudanças ocorridas, conjuntural ou estrutural-

mente, no meio rural brasileiro e internacional desde pelo menos a

década de 1970. Sintética e simplificadamente, arrisco sugerir que

as contribuições da Profa. Leonilde estiveram associadas princi-

palmente, mas não apenas, ao estudo dos movimento sociais, dos

conflitos ocorridos no meio rural e da reforma agrária, as do Prof.

Sergio à análise teórica e empírica das políticas públicas para a

agricultura e para o rural e da economia e sociedade do agrone-

gócio e as do Prof. John à compreensão das mudanças ocorridas

na configuração do sistema agroalimentar mundial, tanto pela ação

das grandes empresas internacionais como dos movimento sociais

ligados ao consumo e à segurança alimentar, ao comércio justo e à

preservação ambiental.

Especial destaque deve ser dado ao envolvimento dos três

na formação de um respeitável número de jovens pesquisadores

brasileiros e latino-americanos, tanto por meio de seu trabalho de

orientação no CPDA como por sua abertura em incluir um grande

08PREFÁCIO - NELSON GIORDANO DELGADO

número de estudantes, mesmo de fora da UFRRJ, em suas equipes

de pesquisa. Não exagero ao dizer que grande parte dos jovens pes-

quisadores que atuam nas áreas de interesse profissional dos três

foi por eles influenciada, direta ou indiretamente.

Como salta aos olhos em seus memoriais, os colegas expres-

sam viva e criativamente em sua produção intelectual, na pesquisa

e na docência o exercício das abordagens multidisciplinar e mul-

tidimensional das ciências sociais como das mais instigantes, em-

bora sempre incompletas, para as análises teóricas e empíricas que

se propõem respeitar a engenhosa complexidade do mundo rural e

das atividades agrícolas e agrárias nas sociedades contemporâne-

as - uma das utopias fundadoras da experiência de docência e de

pesquisa do CPDA desde sua criação na metade da década de 1970.

Da mesma forma, os três contribuíram vigorosamente para outra

das características instituintes do CPDA: a de não ficar encerrado

nos muros da universidade, mas de procurar, com insistência, abrir

e aprofundar o diálogo com os demais atores da sociedade, espe-

cialmente os que compõem o meio rural, sejam eles oriundos da

sociedade civil e da comunidade, do Estado e do mercado.

Leonilde ingressou no CPDA em 1979, ainda na época da

Fundação Getúlio Vargas/Horto. Vinha de uma importante pes-

quisa realizada na Universidade Estadual Paulista (UNESP) em

Botucatu/SP, iniciada em 1975, sobre a relevância da “pequena

produção” na agricultura brasileira naquele período, marcado pela

modernização conservadora do agro nacional nos anos 1970. Essa

pesquisa e seus desdobramentos levaram-na

,

Em Santa Cruz, eu e David tentamos integrar as abordagens de re-

des (tanto do estilo Granovetter, como TAR) com a tradição filière.

Embora não fosse rigorosamente macro, a perspectiva meso da fi-

lière seria reavivada na forma das Cadeias Globais de Valor (CGV),

para explicar um mundo em que a macrocoordenação estava sen-

do cada vez mais assumida por atores corporativos e civis privados.

Conseguimos apenas uma versão inicial de The Agrofood System:

From Filère to Network. OK But Whose Network?, de fevereiro de

1996, que se tivesse sido publicado naquele momento teria ofereci-

do uma relevante contribuição. O conceito do netchain viu a luz do

dia em 2001 num brilhante artigo de Lazzarini, Chaddad e Cook, e

46JOHN WILKINSON

as redes sociais seriam incorporadas à literatura sobre CGV e Redes

de Produção Global (RPG) nas primeiras décadas do novo milênio.

Enquanto estava em Santa Cruz, participei de uma confe-

rência na Universidade da Califórnia, em Berkeley, organizada

por David Goodman e Michael Watts – Agrarian Questions and the

Restructuring of the Agrofood System –, na qual apresentei o meu tra-

balho sobre mercados no Oeste de Santa Catarina a partir de uma

perspectiva da sociologia econômica. Foi uma ótima oportunidade

de conhecer personagens de destaque nos estudos rurais dos dois

lados do Atlântico, particularmente Laura Raynolds, com quem eu

colaboraria posteriormente num ambicioso projeto de pesquisa de

análise do fair trade que discutirei mais adiante.

Paris, em 1995, representou um momento eureca para mim, e

quatro livros abririam uma nova perspectiva tanto na dinâmica da

mudança do agroalimentar quanto nas ferramentas teóricas para a

análise desta nova situação. Dois foram fruto da pesquisa realizada

pelo Inra e suas redes. La Grande Transformation de l´Agriculture

(1995) foi organizado por dois “regulacionistas”, Gilles Allaire, com

quem eu trabalharia em iniciativas subsequentes, e Robert Boyer,

um dos principais teóricos da abordagem de regulação e cujo ca-

pítulo eu já lera na “bíblia” neoschumpeteriana Technical Change

and Economic Theory, como mencionado anteriormente. Todavia,

os capítulos deste livro que mais me influenciaram eram aqueles

que adotavam uma análise dos mercados agroalimentares através

da “teoria das convenções”, com a qual eu não estava familiariza-

do até então. O segundo volume, Agro-alimentaire: une économie

de qualité, organizado por François Nicolas e Egisio Valceschini,

exerceu um impacto teórico menor em mim, mas foi fundamen-

tal para entender a nova dinâmica do sistema agroalimentar como

47JOHN WILKINSON

sendo sujeito à quality turn, uma virada na qualidade. Isto seria de-

cisivo para o meu entendimento do sistema agroalimentar desde

o colapso pós- guerra do regime alimentar.

Um terceiro livro, publicado em 1994, Analyse Économique

des Conventions, organizado por André Orléan, que continha con-

tribuições da maioria dos seus numerosos proponentes, reuniu

uma série de trabalhos produzidos para uma reunião em 1989, e

foi posteriormente visto como a inauguração da escola da teoria

das convenções. Este livro viria a ser a minha segunda “bíblia” pós-

marxista, e absorvi o seu conteúdo durante o restante do meu tem-

po em Paris. O quarto livro, De la Justification, de L. Boltanski e L.

Thévenot, no qual os distintos “mundos” da teoria das convenções

são enunciados, completou a minha imersão.

Ao final da minha estadia, escrevi um artigo, “A New Paradigm

for Economic Analysis?” (302 citações), publicado por Economy

and Society em 1997,10 que além de investigar as características dis-

tintivas da teoria das convenções extraiu as convergências entre

as diferentes tradições heterodoxas da ciência social que eu vinha

estudando há mais de uma década – neoschumpeterianismo, so-

ciologia econômica, teoria ator-rede e, agora, teoria de regulação

e convenções.11 Considerava fundamental poder demonstrar que

havia um núcleo comum nestas tradições, ou que havia

10 Este seria o meu artigo mais citado.

11 A estas, acrescentei o Mauss – Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences

Sociales (outra descoberta durante esta estadia em Paris), liderado por Alain

Caillé, a quem visitei enquanto estive em Paris e que comentou sobre um rascu-

nho de “A New Paradigm for Economic Analysis” e convidou -me a contribuir ao

Mauss Journal.

48JOHN WILKINSON

preocupações semelhantes, embora com terminologias diferentes,

e que era possível aproveitar conceitos de cada uma sem incorrer

num ecletismo indisciplinado. A combinação entre teoria de regu-

lação e convenção também era para mim uma solução possível ao

dilema micro-macro.

Granovetter apresentara seus trabalhos em Paris, em 1991,

em um Colóquio para discutir a “nova sociologia econômica”, com

contribuições de todas as correntes “heterodoxas” na ciência so-

cial francesa, que foram reunidas no livro L’Inscription Sociale du

Marché (1995). Embora a maioria das correntes fosse simpática às

redes sociais e ao conceito de embeddedness, a sua relevância era

identificada quase que exclusivamente com o “mundo doméstico”,

um dos seis mundos de ação coletiva justificável no esquema das

convenções, e a abrangência mais ampla da nova sociologia econô-

mica não era considerada. A teoria ator-rede, por outro lado, deli-

mitou a sua distância das redes sociais de Granovetter com sua in-

sistência na simetria entre humanos e não humanos na construção

e dinâmica de redes sociotécnicas.

No artigo supramencionado, também investiguei as con-

vergências entre as diversas correntes francesas e a tradição

neoschumpeteriana. Isto podia ser observado no âmbito das cola-

borações individuais – as publicações conjuntas de Dosi e Coriat

e a preocupação comum com a ciência e tecnologia entre TAR e

neoschumpeterianismo, com colaborações específicas de Callon.

Também estava presente no tratamento de temas específicos, entre

os quais poderíamos mencionar a centralidade comum da incerte-

za e a aprendizagem coletiva.

Apresentei o meu artigo ao grupo de estudos rurais liderados

por Terry Marsden, da Universidade de Cardiff, e ele foi enfático ao

49JOHN WILKINSON

recomendar que eu o enviasse para publicação em Economy and

Society, pelo que sou imensamente grato, porque não havia pensa-

do nesta possibilidade. Posteriormente, Terry e Jonathon Murdoch,

juntamente com Jo Banks, fariam contribuições originais para a

aplicação da teoria das convenções aos estudos rurais, como em

“Quality, Nature and Embeddedness” (2000).

De volta ao Brasil e ao CPDA, minha colega Ana Célia Castro

convidou a mim e a Leonardo Burlamaqui, que havia recentemen-

te concluído o seu doutorado no qual ele combinou a sociologia

econômica e as perspectivas schumpeterianas, para organizarmos

um seminário internacional reunindo um amplo leque de cientis-

tas sociais institucionais heterodoxos, incluindo os neoschumpe-

terianos alinhados com Giovanni Dosi, a tradição mais polanyiana

de sociólogos econômicos e políticos sediados em Berkeley (Fred

Block, Peter Evans, Ronald Dore), a abordagem de convenções de

Michael Storper e a “velha” tradição institucionalista de Veblen,

que estava sendo renovado por Geoffrey Hodgson, cujo trabalho

se tornaria central para mim quando comecei a lecionar a disci-

plina Sociologia Econômica no CPDA. O Seminário “Instituições

e Desenvolvimento Econômico” aconteceu no Rio de Janeiro, em

novembro de 1997, e teve um impacto durável, lançando os alicer-

ces para uma rede internacional de acadêmicos que participavam

de cursos no CPDA e no Instituto de Economia da Universidade

Federal do Rio de Janeiro.

Além de moderar a Conferência de Encerramento de Ignacy

Sachs, fui debatedor na sessão: “Dos processos microeconômicos

às instituições macro”, cujos palestrantes foram Fred Block, Geoffrey

Hodgson e Mário Possas. Como mencionei anteriormente, o di-

lema macro era

,

uma preocupação central minha e nesta ocasião

50JOHN WILKINSON

tentei desenvolver um argumento sobre a necessidade de ligações

intermediárias entre o micro e o macro, pensando particularmen-

te no papel das convenções neste sentido. Não creio que o meu

ponto foi enunciado com clareza e um esforço mais sistemático de

pensar analiticamente o micro-macro teria que esperar o trabalho

que preparei para o Congresso Mundial da Sociologia Rural, em

Trondheim, em 2004.

Nos movimentos sociais no Brasil nos anos 1990, a bio-

tecnologia era uma questão central. Na década anterior, havía-

mos focalizado mais nas implicações teóricas das biotecnologias

para o sistema agroalimentar. Houve preocupação semelhan-

te nos escritos de Fred Buttel e no notável livro de Martin Kenny,

Biotechnology - the University Industrial Complex, foi publicado

em 1986, quando o nosso livro já estava no prelo. As contribui-

ções francesas eram igualmente teóricas. Já mencionei o estudo

de Pascal Byé e Alain Mounier, ao qual poderia acrescentar um

estudo igualmente impressionante, um doutorado “duplo” de

Ducos-Joly, Structure et Strategies de L’Industrie des sem*nces face a

l’Innovation Biotechnologique (1986). Pierre Benoit Joly, posterior-

mente, continuaria a fazer importantes contribuições aos estudos

de ciência e tecnologia, cada vez mais na perspectiva ator-rede de

Callon. O trabalho de Gerd Junne, “International Implications of

Biotechnologies” (1986), e Guido Ruivenkamp, “The Introduction

of Biotechnology into the Pesticide Industry and its Economic

and Political Impacts” (não publicado, 1985), ambos da Holanda,

foram igualmente influentes. Conheci Junne na Conferência de

Biotecnologia e Agricultura de 1992, organizada por Maria Fonte

51JOHN WILKINSON

e Pascal Byé, em Roma,12 e ele mais tarde me convidou para ser

palestrante sobre biotecnologia numa reunião internacional para

repensar biotecnologias em Quioto. Mas naquele tempo a biotec-

nologia estava em segundo plano para mim, e não aceitei. Guido

desenvolvera independentemente uma abordagem que estava

muito próxima da nossa tese de “apropriação-substituição”.

O autor latino-americano mais influente, do meu ponto

de vista, embora estivesse sediado na OIT em Genebra, foi Paulo

Bifani, especialmente pela sua obra Desafios de la Biotecnologia

para la Política Cientifica y Tecnologica, (1986). Como resultado do

meu trabalho na biotecnologia, fui convidado diversas vezes para

colaborar com o grupo de biotecnologia de Michelle Chauvet, na

Universidade Nacional Autônoma, Cidade do México, e, juntos,

fizemos apresentações sobre as biotecnologias no Brasil e México,

respectivamente, na New School, Nova York.

No Brasil, biotecnologias significavam acima de tudo os

transgênicos, que passaram a ser o foco principal dos movimen-

tos de oposição ao agronegócio. No início dos anos 1990, come-

cei a orientar dissertações sobre o tema de biotecnologia e teses,

mais precisamente a partir de 1995, quando começamos o curso de

Doutorado. Tanto Lavinia Rangel Pessanha quanto Pierina German

Castelli fizeram seus mestrados e doutorados sobre biotecnologia

12 Esta Conferência Internacional reuniu como palestrantes, alguns com impor-

tantes contribuições às Ciências Sociais nas discussões acerca da significância

das biotecnologias – Fred Buttel, Pascal Byé, Joanna Chataway (Open University,

Inglaterra), Roberto Fanfani, Raul Green, Gerd Junne, Manuel Rodriguez Zuñiga,

Guido Ruivenkamp, Joyce Tait (Strathclyde Business School, Escócia), além de

mim. Os debatedores fizeram importantes contribuições a estas discussões – en-

tre eles François Chesnais e Giovanni Dosi.

52JOHN WILKINSON

sob a minha orientação, e Silvana Almeida Filgueira de Medeiros

concluiu o seu doutorado em 2000, sobre o tema das biotecnologias,

também sob minha supervisão. Com financiamento da ActionAid,

liderada à época por Ana Toni, Pierina German Castelli e eu publi-

camos A transnacionalização da indústria de sem*ntes no Brasil (98

citações), e em 2005 publiquei Transgênicos, recursos genéticos e se-

gurança alimentar (50 citações), em coautoria com Lavinia Rangel

Pessanha, pelo Armazém do Ipê. Além das publicações interna-

cionais mencionadas anteriormente, lancei uma série de artigos,

sozinho ou com Bernardo Sorj, sobre biotecnologias no Brasil e so-

bre o Brasil. A certa altura, fui convidado a representar os interesses

da sociedade civil na Comissão Nacional Técnica de Biossegurança

(CNTBio), que decidia questões sobre a pesquisa biotecnológica e

a liberação de variedades transgênicas, mas preferi limitar o meu

papel ao ambiente acadêmico.

Em 1997, coordenei um Projeto de Cooperação Brasil-França,

da Capes-Cofecub, com Pascal Byé, “Crescimento Econômico,

Instituições e Mudanças Tecnológicas”.13 Este projeto foi desen-

volvido em parceria com Wilson Schmidt, a segunda pessoa a

concluir uma dissertação sob minha orientação ainda nos anos

1980. Seguindo minha recomendação, Schmidt fez o seu doutorado

na França, sob a supervisão de Pascal, e fui convidado a integrar a

13 Já estivera envolvido em dois programas de cooperação Capes-Cofecub com

Bernardo Sorj, um coordenado do lado francês pelo economista marxista Pierre

Salama, então no Centro Iedes em Paris, no momento em que estávamos termi-

nando o livro From Farming to Biotechnology, e o outro no início dos anos 1990,

com Marc Chopplet, especificamente sobre biotecnologias, sendo ele diretor de

pesquisas num importante Bio Centro na Picardia, no Norte da França.

53JOHN WILKINSON

banca da sua defesa na Sorbonne, solo sagrado para mim!14 Dentro

da estrutura desta cooperação, retornei ao tema de biotecnologia e

biocombustíveis, sobre o qual já havia publicado com Bernardo Sorj,

e que depois visitaria de novo ao orientar e em seguida colaborar

com Selena Herrera. Mais tarde, investigaria esta temática com

muito mais detalhe, quando fui convidado a coordenar o estudo

HLPE/SFC “Biocombustíveis e Segurança Alimentar 2012-2013”.

Com o início do Doutorado no CPDA, em 1995, criei uma

disciplina em Sociologia Econômica, que nos anos iniciais ti-

nha o título de Metodologia das Ciências Sociais, mas depois foi

designada como Sociologia Econômica e incluída entre as disci-

plinas fundamentais para o doutorado. Isto me permitiu dar forma

ao meu trabalho nessa temática, incluindo todos os principais no-

mes da Nova Sociologia Econômica: Granovetter, Fligstein, Zelizer,

Polanyi, Callon, Latour, Boltanski e Thévenot, Jens Beckert e, espe-

cialmente através do trabalho de Richard Swedberg, as contribui-

ções à sociologia econômica desenvolvidas anteriormente pela

14 Posteriormente fui convidado a integrar a banca de doutorado de Laura Viteri

em Wageningen. Laura foi aluna do mestrado de Vittorio Marrama, e eu havia

mantido contato com ela e com um grupo de ex-alunos de Marrama, no INTA

Mar del Plata (Graziela Ghezan e Mônica Mateus), onde fui consultor de pes-

quisas e ministrei disciplinas no seu centro. A defesa de Laura foi realizada com

esplendor medieval e nós, os membros da banca, fardados com mantos pre-

tos fomos levados em procissão por uma pessoa vestida de forma similar que

bateu à porta com um bastão. A porta então abriu, mostrando um interior que

mais parecia uma capela do que uma sala de banca, e me lembrava a abertura

do Parlamento Britânico. Terry Marsden, que havia recomendado meu artigo “A

teoria das convenções” para publicação, também integrava a banca, que incluía

Gert Spaargaren e era liderada pelo seu colega Arthur Moll, ambos importantes

referências para mim nos quesitos de biotecnologia, biocombustíveis e na aná-

lise ator-rede.

54JOHN WILKINSON

tradição clássica de sociologia. Geoffrey Hodgson também era lei-

tura essencial.

Meu entendimento de Polanyi foi beneficiado em muito pelo

contato com Fred Block, integrante-chave da rede internacional

criada por Ana Celia Castro, que

,

ministrava regularmente cursos

conosco e era presidente da Associação Polanyi. A filha de Polanyi

também esteve no Rio de Janeiro e ministrou uma palestra sobre o

legado do seu pai. No novo milênio, houve uma renovação de inte-

resse na obra de Polanyi, cujo trabalho era visto como antecipando

o avanço neoliberal a partir dos anos 1970, e a sua obra assumiu

uma crescente importância nos estudos de agroalimentos desen-

volvidos na tradição de regimes alimentares.

Apesar da minha inclusão precoce de Polanyi e em menor ex-

tensão de Fligstein, os paradigmas tecnológicos neoschumpeteria-

nos e a teoria regulacionista, que não foram incluídos na disciplina

(com exceção do notável artigo de Boyer, “The Seven Paradoxes of

Capitalism”, 1996), continuaram sendo minhas referências macro.

Na prática, o maior foco da disciplina era a sociologia dos merca-

dos, reforçado pelo meu entendimento da “virada de qualidade”

nos agroalimentos.

Com as mudanças na dinâmica demográfica e de renda nos

países desenvolvidos a partir dos anos 1970 – queda de fertilidade,

envelhecimento das populações e aumento na renda per capita –,

os mercados tradicionais de commodities, que eram a base das po-

líticas e da regulamentação do sistema agroalimentar, entraram

num período de crise. Ao mesmo tempo, novos padrões de de-

manda começaram a emergir, com uma rápida resposta do setor

do grande varejo, que também passou a promovê -los. A qualida-

de e não a quantidade passou a ser a característica comum central

55JOHN WILKINSON

de uma gama de mercados bastante diversos entre si, organizados

(“coordenados” passou a ser a palavra de ordem), agora median-

te múltiplas formas de autorregulação. No Brasil, o Governo Collor

promoveu o choque inicial com a eliminação de muitas instituições

setoriais que até então regulavam os mercados de commodities.15

Tudo isto trouxe novos desafios para a agricultura comercial,

ou agronegócio como passou a ser chamado, indicando como o

conceito acadêmico de agroindústria estava então sendo apro-

priado pelo próprio setor de negócios. Neste período, a Associação

Brasileira do Agronegócio (Abag) foi criada, sob a liderança inspira-

da de Ney Araújo. A primeira publicação da Associação foi um livro

intitulado Segurança alimentar, uma indicação do novo papel que

o agronegócio atribuía a si mesmo.

Este novo contexto também tinha importantes repercussões

na esfera acadêmica, mais notadamente na criação do Programa

de Estudos dos Negócios do Sistema Agroindustrial, (Pensa), um

centro de pós- graduação na USP, liderado por Décio Zylberstajn e

Elizabeth Farina. Este centro produziu uma nova geração de aca-

dêmicos que passariam a ser os intelectuais orgânicos do agrone-

gócio, muitas vezes assumindo cargos-chave nas organizações do

agronegócio. Em vez da tradição filière francesa, o Pensa buscou

inspiração em John H. Davis e Ray A. Goldberg, que desenvolveram

15 Entre estes estava o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), cujo escritório ocu-

pava quatro andares de um prédio na avenida Presidente Vargas, Rio de Janeiro, e

que, por intermédio da iniciativa ousada de diversos colegas, passou a ser a sede

do CPDA. A mudança para o Rio já havia acontecido como resultado do já men-

cionado Curso de Mestrado de Vittoria Marrama, mas até então estávamos sedia-

dos em condições precárias no que havia sido uma garagem nos fundos do pré-

dio do Instituto de Economia da UFRJ, e onde alguns de nós contraímos dengue.

56JOHN WILKINSON

o conceito do agronegócio dentro de um quadro neoclássico, e a

tradição de análises de estudos de caso da Harvard Business School.

O fundamento teórico do empreendimento do Pensa, no entanto,

era a nova economia institucional e, especialmente, a análise de

custos de transação de Oliver Williamson, feita sob medida para

orientar um setor que perdera os tradicionais padrões de regulação

pelo Estado e precisava agora organizar suas próprias relações de

mercado. Williamson ofereceu um nítido esquema teórico e meto-

dológico para decisões acerca das formas em que os diversos seto-

res do agronegócio deveriam ser organizados ou coordenados. O

Pensa desenvolveu este esquema de modo operacional para mui-

tos setores-chave do agronegócio. Ao mesmo tempo, inspirou -se no

institucionalismo de Douglass North para fornecer a perspectiva

macro-histórica.

O texto-chave de Granovetter, de 1985, “Economic Action and

Social Structure: the problema of embeddedness”, havia me deixa-

do inoculado quanto às possíveis atrações dos custos de transação.

A força da contribuição de Granovetter foi que, desde o início, ele

não só ofereceu uma crítica das pressuposições neoclássicas, como

também estendeu isto à abordagem dos custos de transação de

Williamson, visto por muitos como uma revolução em relação às

premissas da economia neoclássica. O que muitos não notaram foi

que neste mesmo artigo Granovetter também se distanciou da tese

“substantivista” do embeddedness. Para ele, as redes sociais são uma

forma mais flexível de embeddedness, que permitem negociações

individuais e, ao mesmo tempo, oferecem uma estrutura na qual a

cooperação e a confiança são tão naturais quanto à desconfiança

e aos riscos de um comportamento oportunista. As redes sociais,

neste sentido, podem ser tanto uma alternativa às instituições

57JOHN WILKINSON

formais como também podem ser transformadas, elas mesmas, em

organizações e instituições.

Para Williamson, as formas econômicas da coordenação

poderiam ser mapeadas num eixo a partir das relações com o

mercado, passando por uma diversidade de formas híbridas e che-

gando a uma organização hierárquica (a firma e a integração ver-

tical), dependendo de um pequeno número de variáveis-chave – o

grau de incerteza, a frequência e a especificidade de ativos das tran-

sações sendo realizadas –, e levando em conta que os atores econô-

micos devem ser considerados como tendo uma propensão para o

oportunismo, pois a atividade econômica geralmente envolve um

pequeno número de atores e, portanto, uma ação estratégica, uma

vez que as ações devem ser empreendidas com diversas condições

de incerteza, decorrente do conceito da limitação (boundedness) da

racionalidade. Segundo Williamson, as formas híbridas tendiam a

ser formas instáveis, e formas hierárquicas de organização foram

vistas como a tendência dominante. A sua obra clássica, que tinha

o título significativo de Markets and Hierarchies, foi publicamente

em 1975, exatamente num momento em que a longa tendência do

século XX à integração vertical analisada por Chandler e Lazonick

estava dando lugar a formas híbridas de coordenação, agora numa

escala cada vez mais global.

Foi nesta época que fui atraído pela abordagem da Cadeia

Global de Valor (CGV, originalmente Cadeia Global de Commodities,

GCC), de Gary Gereffi e seus parceiros Timothy Sturgeon e John

Humphrey, que para mim representava uma continuação do

trabalho iniciado com David Goodman na primeira etapa do meu

pós- doutorado em 1995, mencionado anteriormente. Surgindo ori-

ginalmente como um componente da tradição do sistema mundial

58JOHN WILKINSON

de Wallerstein, nas suas formulações posteriores a CGV passou a

incorporar cada vez mais as variáveis do estilo dos custos de transa-

ção. As redes sociais foram integradas como componente horizon-

tal na primeira caracterização das Cadeias Globais de Commodities

por Gary Gereffi no livro organizado com Miguel Korzeniewicz,

Commodity Chains and Global Capitalism, em 1994. As redes so-

ciais e a teoria ator-rede foram mais explicitamente incorporadas ao

programa de pesquisa bastante similar Global Production Networks,

associado à “Escola de Manchester”, na sua publicação programá-

tica: Global Production Networks and the Analysis of Economic

Development, em coautoria com Jeffrey Henderson, Peter Dicken,

Martin Hess, Neil Cole e Henry Wai-Chung Yeung.

,

Stefano Ponte,

um italiano que agora está na Kopenhagen Business School, depois

daria uma contribuição fundamental à CGV ao introduzir a teoria

das convenções na dinâmica da coordenação das cadeias de valor,

no seu artigo de 2005, intitulado “Quality Standards, Conventions

and the Governance of Global Value Chains”, publicado na revista

Economy and Society.

A teoria das convenções, a teoria ator-rede e as redes so-

ciais se tornaram para mim as chaves para analisar a dinâmica

dos novos mercados agroalimentares que estavam sendo criados

no contexto da “virada na qualidade”. Meu grupo de pesquisa no

CNPq, que originalmente fora dedicado quase que inteiramente

às biotecnologias, passou a ser designado como Mercados, Redes e

Valores, que também foi o título de um livro que publiquei em 2009

(290 citações), instigado por Sérgio Schneider, do Programa de Pós-

Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR), Porto Alegre, um

centro bastante similar ao CPDA e onde diversos dos nossos alunos

se tornaram docentes.

59JOHN WILKINSON

No CPDA, nos anos 1990, tínhamos muitos alunos do Sul do

Brasil, especialmente Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e orientei

diversas dissertações sobre temas relacionados à agricultura fami-

liar e à produção artesanal de alimentos nesse período. Antes da en-

trada das ainda ilegais sem*ntes de soja transgênicas da Argentina

(batizadas de “soja Maradona”), que deram um novo impulso à

produção da soja, lideranças na pesquisa agrícola e extensão rural

nestes estados, bastante influenciadas por períodos de estudo na

França e programas de cooperação Brasil-França, já estavam pro-

pondo um foco na qualidade (como na proposta para reestruturar

as regiões vinícolas do Rio Grande do Sul pesquisada por Wilson

Schmidt e Pascal Byé no programa de cooperação Capes-Cofecub

já mencionado), e apoio para alternativas artesanais informais às

commodities agrícolas em que os critérios de custos e escala sempre

se impunham.

Um importante componente do apoio francês para a agricul-

tura de pequena escala e o desenvolvimento local/regional era a

promoção de produtos com appellation d’origine. Em 1996, a ade-

são do Brasil à OMC e ao Trips (Acordo sobre Aspectos dos Direitos

de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), implicava

a obrigação de estabelecer legislação sobre Indicações Geográficas

e criar as condições institucionais para a sua promoção. Além da

minha familiaridade com os desdobramentos no Sul, também

me envolvi num programa de cooperação entre o Ministério de

Cooperação da França e o Governo do Estado de Minas Gerais, com

enfoque exatamente no desenvolvimento de novos padrões de qua-

lidade, que também incluía apoio para os produtores informais de

queijo de leite cru nas regiões das serras de Canastra, Serro e Salitre,

estimados entre 30 e 50.000 pequenos produtores, compreendendo

60JOHN WILKINSON

um enorme mercado semiclandestino. Daquele ponto em diante,

indicações geográficas seriam para mim um foco acadêmico cen-

tral por envolverem a construção e dinâmica de mercados feitos

sob medida para análise a partir de convenções e de redes sociais.

Igualmente central para a categoria ampla de mercados que

exemplificavam a “virada na qualidade” eram os mercados de pro-

dutos orgânicos, Comércio Justo e práticas e produtos envolven-

do comunidades tradicionais e seus recursos, muitos dos quais se

tornaram objeto de estratégias de indicação geográfica. A partir de

meados dos anos 1990, orientei um leque de dissertações e teses

acerca de cada um destes temas. Luis Carlos Mior concluiu a sua

dissertação sobre o modelo de contrato de integração da agricultu-

ra familiar em Santa Catarina. Posteriormente, publicamos juntos

um artigo sobre o setor informal neste estado, e acompanhei a sua

tese de doutorado sobre o movimento de promoção de agroin-

dústrias de pequena escala no Oeste de Santa Catarina. Laudemir

Muller e Gilmar Antônio Meneguelli, respectivamente, concluíram

dissertações sobre produção de queijos e suínos em pequena esca-

la no estado do Rio Grande do Sul. André Kuhn Raupp concluiu sua

dissertação sobre agroindústrias de pequena escala neste mesmo

estado. Agroindústrias de pequena escala também foram o tema de

Sergio Dias Orsi, que analisou o Programa para a Verticalização da

Pequena Produção Rural (Prove), no Distrito Federal.

Os anos 1990 foram uma década de grande mobilização em

torno da reforma agrária e da agricultura familiar. O número de

assentamentos cresceu sensivelmente neste período e, confor-

me já mencionado, o Programa de Fortalecimento da Agricultura

Familiar (Pronaf) foi lançado. O Plano Plurianual do Governo

Federal para 2000-2003 incluiu entre as suas prioridades “promover

61JOHN WILKINSON

o desenvolvimento da zona rural, através da valorização do peque-

no produtor rural, agroindústria de pequena escala e os assenta-

mentos rurais da reforma agrária”. O CNPq decidiu desenvolver ini-

ciativas de Ciência e Tecnologia direcionadas a estes segmentos e

fui contratado como consultor para desenvolver esta atividade.

Começamos por preparar um documento programático,

“Novos Conhecimentos e Novas Capacidades para a Inserção

Econômica da Agricultura Familiar”, que lançou as bases para a orga-

nização de um seminário nacional reunindo acadêmicos, formula-

dores de políticas, organizações da sociedade civil e representantes

dos setores de agricultura familiar e reforma agrária. Este seminá-

rio definiu as cinco áreas prioritárias para estudos e projetos de

Pesquisa e Desenvolvimento: o ajuste dos sistemas de produção às

nova exigências de qualidade; a promoção da viabilidade técnica

de agroindústrias de pequena escala; normas, sistemas de certifica-

ção e legislação adequadas para setor da agricultura familiar; estu-

dos sobre modelos organizacionais e exigências de mercado; e um

foco nas atividades rurais não agrícolas, a multifuncionalidade e o

desenvolvimento local.

Com base nestes critérios, elaboramos uma Convocação de

Projetos (CNPq/COAGR 004/2001), que recebeu 353 projetos, dos

quais 139 foram avaliados favoravelmente e 72 foram contratados a

um valor de R$ 6 milhões. Em 2002, Dalmo Marcelo de Albuquerque

Lima e eu coorganizamos o livro Inovando nas tradições da agri-

cultura familiar, que continha cerca de 28 contribuições dos par-

ticipantes do seminário e dos projetos. Todos os grandes temas e

iniciativas deste período relacionados à agricultura familiar foram

abordados e o livro concluiu com uma proposta de um modelo al-

ternativo de pesquisa e extensão agrícola. A obra também continha

62JOHN WILKINSON

um esboço da proposta de continuação desta iniciativa, mas a mu-

dança de governo em 2003 trouxe o fim do Programa. Para mim foi

um enorme prazer ter podido promover políticas, aproveitando o

meu entendimento das demandas de qualidade que, embora desa-

fiassem práticas existentes, também criavam oportunidades para a

agricultura familiar.

O meu envolvimento com a agricultura familiar nasceu da

convicção que este setor fazia parte do sistema agroalimentar

moderno, e minha preocupação teórica central tem sido sempre

o entendimento da dinâmica global do sistema agroalimentar.

Por esta razão, depois do nosso trabalho no livro From Farming

to Biotechnology, continuei a pesquisar as tendências e atores

dominantes do sistema agroalimentar. Já mencionei a pesquisa

com Raul Green e a Rede Europeia de Pesquisa, como também a

minha coordenação do componente agroindustrial da pesquisa

Competitividade da Indústria Brasileira.

Em 1995, fui contratado pela FAO para supervisionar um es-

tudo sobre os setores agroindustriais que poderiam ser afetados

negativamente pela integração regional do Mercosul, o que per-

mitiu me reconectar com os desdobramentos no Mercosul desde a

organização do Seminário Internacional do Mercosul, com Hector

Alimonda, em 1988. Esta

,

consultoria, para a qual produzi um rela-

tório extenso, Sectores Agroindustriales Sensibles en el Contexto de

la Integración Regional del Mercosur, mas infelizmente não publi-

cado, aprofundou o meu entendimento sobre as implicações com-

petitivas da integração regional, e foi também uma oportunidade

para estudar o sistema agroalimentar no Paraguai, que até então

desconhecia. O Relatório englobava uma avaliação de oito seto-

res e envolvia tanto trabalho de campo como análises dos estudos

63JOHN WILKINSON

realizados em cada setor – os setores de carne vermelha e trigo no

Uruguai, avicultura e frutas cítricas na Argentina, algodão e feijão

no Brasil e arroz e laticínios no Paraguai.

Ao mesmo tempo, fui convidado a participar de um projeto de

pesquisa entre o Instituto de Economia da UFRJ e o Instituto para

la Integración de America Latina, (Intal), em Buenos Aires, um pro-

jeto financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento

(BID), cujo foco também era nas implicações da integração regio-

nal para diferentes setores industriais. Preparei um relatório com

Beatriz Nofal sobre as indústrias de laticínios da Argentina e do

Brasil, com base no qual posteriormente publicamos um artigo, “La

Producción y el Comercio de Productos Lácteos en el Mercosur”

(25 citações), na Revista do Intal, Integración & Comércio, em 1999.

Como resultado da minha participação na pesquisa

Competitividade da Indústria Brasileira, mencionada anterior-

mente, fui convidado em 1999, por João Carlos Ferraz, do Instituto

de Economia da UFRJ, para coordenar os Estudos Agroindustriais

do Programa de Pesquisas Procisur,16 Proyecto Global, cujo secre-

tário executivo era o altamente dinâmico e entusiasmado Roberto

Bocchetto. O foco aqui era muito nas demandas tecnológicas, par-

ticularmente nas demandas de qualidade, decorrentes do novo

contexto competitivo, com importante destaque na fronteira tec-

nológica. Tratava -se de um projeto altamente ambicioso envolven-

do o estudo dos principais setores agroindustriais na região. Tive a

sorte de poder contar com excelentes ex-alunos do CPDA – Celso

16 Programa Cooperativo para o Desenvolvimento Agroalimentar e Agroindustrial

do Cone Sulpara o desenvolvimento tecnológico da agricultura na região, que

incluía Bolívia e Chile.

64JOHN WILKINSON

Vegro, Guillermo Scarlatto e Graciela Ghezan –, e dois especialistas

argentinos em commodities agrícolas e biotecnologias – Graciela

Gutman e Roberto Bisang. Mauro Lemos, da UFMG, produziu um

estudo do contexto macro, no qual os diversos setores deveriam ser

situados. A pesquisa incluiu todos os principais setores de grãos,

óleos, carnes, laticínios e hortifruticultura dos seis países, com foco

nas suas implicações tecnológicas. Também envolvi Terry Marsden,

da Universidade de Cardiff, que produziu um relatório sobre a agri-

cultura orgânica na Europa, o qual identificamos como uma impor-

tante oportunidade e, ao mesmo tempo, um desafio para a região.

Os estudos passaram por uma avaliação de peritos numa reunião

em Buenos Aires antes que os textos finais, juntamente com uma

síntese escrita por mim, fossem concluídos e publicados numa sé-

rie editada pelo Procisur. A crise na Argentina na virada do século

mudou abruptamente as condições da cooperação e competição

regional, com a consequente perda de parte da centralidade do

Mercosul.

No meu ensino no CPDA, o papel fundamental dos movi-

mentos sociais na construção de um novo tipo de mercados de

qualidade especial passou a ser uma importante fonte de reflexão,

o que ficava especialmente nítido no trabalho que eu estava desen-

volvendo com meus alunos na área de produtos orgânicos. Maria

Fernanda de Albuquerque Costa Fonseca, figura central no movi-

mento pelos orgânicos no Rio de Janeiro, concluiu sua dissertação

A construção social do mercado orgânico, e sua tese A institucionali-

zação dos mercados dos orgânicos no mundo e no Brasil sob a minha

orientação. Iniciativas para o desenvolvimento de sistemas parti-

cipativos de certificação como alternativa às certificações formais

oficiais naquela época, reconhecidas pela Ifoam, The International

65JOHN WILKINSON

Federation of Organic Agriculture Movements (que notadamente

mantém a palavra “Movimentos” em sua caracterização), foram

vitais para o seu trabalho acadêmico e de ativismo. Fabio Ramos,

também ativo no movimento orgânico do Rio de Janeiro, concluiu

sua dissertação comigo sobre questões de coordenação e qualida-

de na cadeia de carne vermelha orgânica.

Nossas principais referências teóricas, todavia, para indica-

ções geográficas e orgânicas foram os autores franceses da teoria das

convenções, particularmente Bertil Sylvander e Egisio Valceschini.

Estes autores focalizavam mais as formas em que qualidades es-

peciais eram institucionalizadas nestes mercados, especialmente

através do trabalho de conseguir concordância sobre normas e sis-

temas de certificação. A centralidade dos movimentos sociais era

mais evidente no caso do Comércio Justo, talvez a resposta mais

radical e ambiciosa à crise dos mercados tradicionais de commodi-

ties. Na literatura anglo-saxônica, o aspecto de movimentos sociais

foi analisado dentro do quadro analítico das “redes alternativas”,

que passou a ser a referência abrangente para estas novas forma-

ções de mercado.17

Preferi continuar pensando em termos dos mercados e mo-

vimentos sociais, e busquei apoio teórico para isto primeiramente

em Fligstein, que no seu livro clássico The Architecture of Markets

(1991) argumentou que nos seus estágios iniciais de formação os

mercados compartilhavam muitas das características dos movi-

mentos sociais. Encontrei uma estrutura analítica mais decisiva na

introdução de Michael Callon na obra The Laws of the Market, um

17 Em 2012, David Goodman, E. Melanie DuPuis e Michael Goodman publicaram

uma revisão sistemática desta literatura intitulada Alternative Food Networks.

66JOHN WILKINSON

livro que ele organizou e publicou em inglês em 1998. Nesta intro-

dução, ele argumenta que a criação de mercados sempre envolve

um processo duplo de “enquadramento” e “transbordamento (fra-

ming e overflowing). Nesta perspectiva, os mercados estão constan-

temente em debate/conflito com ideias e atores cujos interesses e

valores não são adequadamente contemplados ou são até rejeita-

dos no processo de enquadramento. Movimentos sociais podem

se tornar mercados, e mercados, por sua vez, podem dar lugar a

movimentos sociais. Posteriormente, encontrei uma publicação

mimeografada de uma acadêmica do Quebec, Corinne Gendron,

que cunhou o termo “novos movimentos sociais econômicos” que,

para mim, descrevia perfeitamente a inter-relação entre estes no-

vos mercados de qualidade e os movimentos sociais.18

Continuei a desenvolver esta linha de análise em diversas

publicações subsequentes – “The Mingling of Markets, Movements

and Menus”, em 2006 (www.minds.org.br/arquivos); Fair Trade

Moves Center Stage (17 citações), também em 2006 (The Edelstein

Center for Social Research, Rio de Janeiro); “Fair Trade: dyna-

mic and dilemmas of a market oriented global social movement”,

Journal of Consumer Policy (2007), que figura como um dos meus

artigos mais citados com 186 citações até o presente, de acordo

com o Google; e “From Fair Trade to Responsible Soy: social mo-

vements and the qualification of agrofood markets” (30 citações),

Environment and Planning A, 2011. Em Fair Trade Moves Center

Stage, argumentei que os movimentos sociais obtêm a sua dinâmica

exatamente da heterogeneidade dos seus componentes distintos.

18 Le Commerce Équitable: Um Nouveau Mouvement Social Économique au

Coeur d´une Autre Mondialisation, Corinne Gendron, UQAM, Québec, 2004.

67JOHN WILKINSON

Nestes movimentos, três componentes podem tipicamente ser

identificados: circuitos alternativos de comércio baseados em re-

lações interpessoais

,

e confiança sustentada por redes; a promoção

dos produtos do movimento nos mercados convencionais por meio

de sistemas formalizados de rotulagem e certificação; e campanhas

políticas em defesa da adoção de mudanças tanto nas regras de co-

mércio como nas estratégias das principais firmas. Embora dentro

do movimento estas diferentes posições muitas vezes sejam vistas

em termos hostis e competitivas, olhando de fora do movimento

podemos ver os seus efeitos complementares em fortalecer a di-

nâmica global do movimento social. Desta perspectiva, podemos

também ver como os movimentos sociais são renovados de formas

diferentes e aqui a ideia de Callon sobre “enquadramento” e “trans-

bordamento” é luminosa, ao mostrar que valores, interesses e ato-

res não contemplados em um mercado/movimento podem levar

a novos processos de enquadramento. Neste sentido, a agroecolo-

gia poderia ser vista como uma extensão do conceito de orgânicos,

Slow Food como uma alternativa às Indicações Geográficas, e a Via

Campesina como resposta alternativa global ao Comércio Justo.

O Comércio Justo foi foco de um grande projeto de pesquisa

com Laura T. Raynolds e Douglas Murray na Universidade Estadual

do Colorado, Stephanie Barrientos e Sally Smith, então no Institute

for Development Studies, Sussex, Andries du Toit e Sandra Kruger

na Universidade de Western Cape, e comigo no CPDA, juntamen-

te com meus alunos de doutorado Gilberto Mascarenhas e Zina

Angelica Cáceres Benavides e os alunos de mestrado Ana Asti e

Rosemary Gomes. Os resultados da pesquisa foram publicados

como livro, Fair Trade: the challenges of transforming globalization

(431 citações), organizado por Laura Raynolds, Douglas Murray e

68JOHN WILKINSON

por mim, aparecendo nos formatos de capa dura e livro de bolso

(Routledge, 2007). Fui coautor de quatro capítulos, e Gilberto e

Zina também foram coautores de capítulos. Gilberto Mascarenhas

concluiu sua tese Comércio Justo como movimento social, Zina

Benavides a sua sobre quinoa e Comércio Justo no Peru e Bolívia,

e Ana Asti desenvolveu uma análise de uma cadeia de algodão

de Comércio Justo para sua dissertação. Infelizmente, Rosemary

Gomes, uma força decisiva no movimento social do Comércio Justo

no Brasil, e muito importante nas nossas discussões e pesquisas,

não conseguiu concluir a sua dissertação.

Em 2005, uma orientanda minha no mestrado, Joana Dias,

concluiu a sua dissertação, Indicações geográficas: a construção

institucional de qualidade e, por volta do mesmo período, fui con-

vidado a lecionar sobre Indicações Geográficas num curso de espe-

cialização, Propriedade Intelectual, Inovação e Desenvolvimento

Intelectual, organizado entre o Instituto de Economia, a UFRJ e o

Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), à época sob

a Presidência de Jorge Ávila, que havia concluído algumas das

suas disciplinas para o doutorado no CPDA. No mesmo ano, fui

convidado para ser o presidente do Conselho Consultivo da Rede

Europeia de Pesquisa, Sinergi, coordenada por Gilles Allaire e Bertil

Sylvander, uma continuação da rede Dolphin para Indicações

Geográficas (IGs), cujos resultados foram publicados em dois

volumes pelo Inra. A pesquisa Sinergi propunha estender a aná-

lise de IGs aos países em desenvolvimento à luz do Acordo Trips,

mencionado anteriormente na discussão da institucionalização

das IGs no Brasil.

A pesquisa durou três anos e, na sua reunião de encerramento

em Genebra, em 2008, apresentei um trabalho em coautoria com

69JOHN WILKINSON

Claire Cerdan intitulado “Uma Perspectiva Brasileira das Indicações

Geográficas”. Claire Cerdan, integrante do órgão francês de pesqui-

sa agrícola para o desenvolvimento (Cirad), para quem anterior-

mente eu tinha realizado uma avaliação do seu Programa Prosper, à

época era pesquisadora visitante na Universidade Federal de Santa

Catarina. A experiência de acompanhar esta rede de pesquisa, cujo

cerne era uma parceria entre Inra e Cirad, foi bastante formativa.

Muitos dos seus membros eram inspirados pela abordagem da te-

oria das convenções e haviam participado nas publicações-chave

do Inra que eu descobrira durante meu pós- doutorado em 1995.

Esta vez, todavia, a atividade era enriquecida com equipes do Reino

Unido, Suíça, África do Sul e América Latina, e incluía, por inter-

médio dos integrantes do Cirad, pesquisas também de IGs na Índia

e Ásia. Foi então que conheci Dwigen Rangnekar, um indiano na

Universidade de Warwick, que fizera importante contribuição à

literatura IG com seu artigo “Protecting IGs. Club Goods and the

Dilemma of Collective Action”. Em 2009, organizei uma Conferência

com ele na Universidade de Warwick: “(Novas) Fronteiras de

Consumo”, tema que será discutido adiante.19

Na estrutura deste programa de pesquisas, Claire Cerdan or-

ganizou estudos de caso sobre o Brasil, e sua principal assistente de

pesquisa era a doutoranda francesa Delphine Vitrolles, cuja tese ela

coorientou com Claire Delfosse, docente na Universidade de Lyon

e estudiosa da produção artesanal de queijos cujo trabalho sobre

o estabelecimento de uma IG na perspectiva das convenções eu

19 Apenas bem mais tarde soube do falecimento de Dwijen Rangnekar, pessoa

muito cativante que fez uma importante contribuição aos estudos sobre IGs.

70JOHN WILKINSON

lera 1995. Tive o privilégio de ser integrante da banca de Delphine

Vitrolles, quando ela defendeu sua tese na Universidade de Lyon,

em dezembro de 2011, um estudo de quatro produtos “de origem”

nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.

A originalidade do programa de pesquisa Sinergi estava no fato

de seu ponto de partida analítico não ser a IG em si, mas os produ-

tos com qualidade “de origem”, o que permitia uma análise de pro-

dutos com reputações estabelecidas com base na sua origem, mas

que não eram formalmente reconhecidos como IGs. Depois, incor-

poraríamos este conceito à nossa análise dos produtos “coloniais”

típicos no Brasil que estudamos especialmente na Região Oeste

de Santa Catarina, com meus ex-alunos e agora colegas pesqui-

sadores Clovis Dorigon e Luis Carlos Mior, cujos resultados foram

publicados como um capítulo, “The Emergence of SME networks

in the shadow of agribusiness contract farming: a case study from

the Brazilian South”, no livro Innovative Policies and Institutions to

Support Agroindustries Development, a convite de Carlos da Silva,

então na FAO, que tivera papel importante na coordenação dos re-

sultados do projeto do CNPq, Ciência e Tecnologia para a iniciativa

de agricultura familiar, discutido anteriormente.

Com a conclusão do Sinergi, Claire Cerdan, Claire Delfosse e

eu tivemos um projeto Capes-Cofecub aprovado em 2009, e renova-

do em 2011, e que na sua avaliação final recebeu uma nota “A”. Esta

experiência foi muito rica tanto academicamente como por sua

contribuição à consolidação de uma rede nacional extremamente

eficaz para a promoção de IGs. Três alunos no CPDA foram deci-

sivos para o sucesso da cooperação. Paulo Niederle passou o seu

período de doutorado sanduíche em Montpellier, na Unité Mixte de

Recherche,(UMR), Innovation, uma unidade do Cirad, com Claire

71JOHN WILKINSON

Cerdan; Carla Belas,20 também doutoranda, estudou IGs como sal-

vaguardas da herança cultural no caso de produtos artesanais não

alimentares e passou seu período sanduíche na Universidade de

Lyon, com Claire Delfosse; e Gilberto Mascarenhas, que tinha con-

cluído a sua tese sobre Comércio Justo, também foi para a unidade

UMR, em Montpellier, e realizou uma pesquisa numa comunidade

vinícola em colaboração com o pesquisador do Cirad Jean-Marc

Touzard. Miriam Aguiar, aluna minha de pós- doutorado, com um

projeto aprovado e financiado pela Capes sobre a construção social

do paladar, também estava integrada ao projeto de cooperação e

passou um período com a equipe do Cirad em Montpellier.

Durante

,

estes Capes-Cofecub, organizamos uma série de

seminários internacionais que ajudaram a consolidar uma rede

extraordinária de apoio às estratégias de IG e que foi capaz de pro-

mover um diálogo, que serviu para quebrar as barreiras entre as

instituições com diferentes responsabilidades em relação à institu-

cionalização das IGs. A França era diferente do Brasil neste aspecto,

no sentido em que a política francesa de IG era centralizada por

meio do Instituto National de Appellation d´Origine, (INAO). Nossa

rede também era responsável pela elaboração de um modulo sobre

IGs num curso administrado pelo Mapa – Ministério da Agricultura,

que durante três anos sucessivos treinou centenas de alunos e téc-

nicos nas complexidades de negociação de IGs.

20 Carla Belas defendeu sua tese sob minha supervisão, Indicações geográficas e

a salvaguarda do patrimônio cultural: artesanato de capim dourado Jalapão, e

depois produzimos um artigo conjunto, “As indicações geográficas e a valoriza-

ção do artesanato em capim dourado do Jalapão”, publicado em Sustentabilidade

em debate, v.5. n.3, 2014. Em 2014, a tese de Carla Belas ganhou o “IV Prêmio do

Objeto Brasileiro”, competição organizada pela Casa Museu de Objeto Brasileiro.

72JOHN WILKINSON

Com o fim dos projetos de cooperação Capes-Cofecub, em

grande parte em virtude da iniciativa de Paul Niederle, que esta-

va envolvido na análise das IGs de uma perspectiva institucional,

e com Gilberto Mascarenhas, resolvemos entrar com o projeto

“Instituições, Mercados Agroalimentares e Direitos de Propriedade

Intelectual: as indicações geográficas como ferramenta de desen-

volvimento”, num Edital do MCTI/CNPq, 14/2013. O projeto, coor-

denado por mim, aproveitou o nosso trabalho anterior sobre a espe-

cificidade da estrutura institucional no qual as IGs estavam sendo

desenvolvidos no Brasil e na ampla rede IG em cuja promoção fo-

mos influentes.21 Nosso projeto foi aprovado, mas os recursos foram

insuficientes para desenvolver uma análise abrangente das IGs no

Brasil, e nos concentramos em três estudos setoriais – vinhos, quei-

jos e cafés, coordenados especificamente por Paulo Niederle, por

mim e por Gilberto Mascarenhas. Àquela altura, eu tinha uma se-

gunda pós- doutoranda sob minha supervisão, Dra. Simone Shiki,

da Universidade Federal de São João Del-Rei, e a incorporei no

projeto e, particularmente, no estudo dos queijos artesanais de

Canastra e Serro que eram objetos de estratégias de IG no estado

de Minas Gerais e que eu havia avaliado na década anterior para

a empresa internacional de consultoria, SOFRECO, sediada na

21 A equipe completa proposta incluía: Paulo André Niederle (PPGMADE –

UFPR, Paraná), Valdir Frigo Denardin (PPGMADE – UFPR, Paraná), Marcos

Paulo f*ck (PPPP – UFPR, Paraná), João Ricardo Ferreira Lima (Embrapa –

CPATSA, Pernambuco), Kelly Lisandra Bruch (Cepan – UFRGS, Rio Grande do

Sul), Ricardo Bernardes (Ministério da Agricultura – Mapa, Santa Catarina),

Adriana de Carvalho Pinto Vieira (Unesc, Santa Catarina), Gilberto Mascarenhas

(Ministério da Agricultura – Mapa, Rio de Janeiro), Doutorando André Luis

Funke (CPDA – UFRRJ, Rio de Janeiro), Doutorando Luis Claudio de Oliveira

Dupin (IE – UFRJ, Inpi, Rio de Janeiro).

73JOHN WILKINSON

França. Com os três estudos setoriais e contribuições sobre IGs da

nossa rede mais ampla, publicamos os resultados em 2016 num li-

vro intitulado O sabor da origem, organizado conjuntamente por

mim, Paulo Niederle e Gilberto Mascarenhas. Em 2017, aceitei Zina

Angelica Benavides para um pós- doutorado sob minha supervisão

para desenvolver um estudo comparativo de estratégias para ca-

cau/chocolate artesanal na Bahia, Brasil, e na região cacaueira do

Peru. Quando saí para o meu próprio pós- doutorado no Instituto

Max Planck para Estudos em Sociedades (MPIfG), no segundo se-

mestre de 2017, meu colega Sérgio Leite assumiu esta supervisão.

A premissa da “virada para a qualidade” era a estagnação/de-

clínio na demanda alimentar tradicional nos países desenvolvidos

e uma mudança para novos padrões alimentares, mas não consi-

derava outras tendências globais evidentes a partir de 2003, que

levaram a um ressurgimento nos mercados de commodities agríco-

las. Dois fatores alteraram radicalmente a dinâmica dos mercados

globais e viriam a se tornar preocupações centrais para mim nos

anos que se seguiram – a demanda chinesa por produtos de uma

dieta de proteína animal, na medida em que a sua população ficou

rapidamente urbanizada num contexto de décadas de alto cresci-

mento econômico; e o aumento na demanda por biocombustíveis

como resultado da adoção de estratégias para o etanol e biodiesel

não só no Brasil, mas também na Europa e nos Estados Unidos.

Este boom na demanda por commodities agrícolas foi acom-

panhado por um novo fenômeno, batizado de landgrabbing pela

ONG internacional Grain, que passou a ser uma fonte-chave para a

difusão de informações sobre os investimentos fundiários transna-

cionais e identificou novos atores fora do complexo agroalimentar e

74JOHN WILKINSON

novas formas de investimentos, tais como fundos especulativos, de

investimentos e soberanos.

Estes desenvolvimentos exigiram uma renovada atenção aos

atores dominantes do sistema agroalimentar que, no meu caso,

foi facilitado pelo convite, em 2005, via Actionaid, de participar

na Agroindustry Accountability Initiative (AAI) – Iniciativa para

Responsabilidade na Agroindústria. A AAI tinha uma longa histó-

ria que remontava ao trabalho de Jim Hightower (autor de Hard

Tomatoes Hard Times: A Report of the Agribusiness Accountability

Project on the Failure of the Land Grant College Complex, 1973) e

de outros autores que focavam o crescente poder de monopólio do

agronegócio em grande escala. Participei de uma série de reuniões –

em São Paulo, Chicago e Paris –, com meu colega do CPDA Georges

Flexor, na qual preparamos e apresentamos um artigo, “Brazilian

Agrifood, Transnationalisation and Market Concentration” (2006),

que nos ofereceu a oportunidade de atualizar a nossa análise dos

principais players brasileiros na área de agroalimentos. A meta da

AAI nesta iniciativa era desenvolver uma Matrix Interativa de Dados

para, continuamente, atualizar informações sobre a concentração

dos mercados, tipicamente índices C4 que medem a porcentagem

do mercado controlada pelas quatro maiores empresas. Um inte-

grante canadense da rede configurou a Matriz, que funcionou por

alguns anos, mas depois foi descontinuada.

Como desdobramento deste trabalho, fiz parceria com Mary

Hendrickson e William Heffernan, sociólogos rurais dos Estados

Unidos, num projeto financiado pelo Oxfam América, que levou à

publicação The Global Food System and Nodes of Power, disponível

no site da Oxfam. Robert Gromski também foi coautor deste tra-

balho, publicado em 2008. Estes estudos dos atores dominantes do

75JOHN WILKINSON

agroalimento foram complementados pela minha participação na

equipe consultiva do Instituto de Economia (UFRJ) com o BNDES

sobre as estratégias dos setores dominantes e atores de interesse ao

Banco. Juntamente com Pierina Castelli, preparamos um extenso

estudo sobre a indústria de bebidas, globalmente e no Brasil, e o

atualizamos em diversos momentos para apresentação ao BNDES.

Isto me seria de valia depois, quando realizei um estudo para a

Oxfam América, intitulado Land Rights and the Soda Giants, em

2016.

Embora considerasse valioso o trabalho sobre a concentra-

ção econômica no sistema de agroalimentos e tenha ficado feliz

em participar nestas iniciativas, estava também desenvolvendo o

que considerava ser uma visão mais matizada da estrutura cam-

biante do poder econômico ao longo da cadeia agroalimentar, que

apresentei em uma reunião em Santa Cruz, organizada por David

Goodman, em 2000, ao repensar as relações de produção-consu-

mo nos alimentos. Meu trabalho apareceu

,

como um artigo, “The

Final Foods Industry and the Changing Face of the Global Agrifood

System” (132 citações), juntamente com as contribuições de outros

participantes, numa edição especial da Sociologia Ruralis, em 2002.

Este artigo representou um esforço para atualizar algumas caracte-

rísticas da nossa análise no livro From Farming to Biotechnology.

Argumentei que da perspectiva tanto das novas fronteiras tecnoló-

gicas como dos novos padrões de demanda alimentar, a indústria

dos alimentos finais estava numa posição cada vez mais vulnerá-

vel. Duas tendências com relação à demanda se tornavam aparen-

tes. A primeira era o aumento da importância dos nutracêuticos e

alimentos funcionais que tendia a ser empurrado cada vez mais

numa via substitucionista em direção às indústrias farmacêuticas e

76JOHN WILKINSON

cosméticas. A segunda representava um passo atrás dos alimentos

industrializados para o produto agrícola original numa demanda

por alimentos frescos, com prioridade para frutas e legumes. Aqui

as tecnologias de preservação estavam começando a predominar

sobre as típicas tecnologias de transformação que haviam sido a

base distintiva da indústria alimentar. Embora a indústria alimen-

tar tenha sido ambivalente e em grande parte passiva com relação à

biotecnologia, o varejo de grande escala agora estava confirmando

sua hegemonia tanto pela priorização de tecnologias de preser-

vação de alimentos como através do seu uso da informática para

identificar e nutrir a demanda dos consumidores com maior pre-

cisão. Estas tendências não foram tão aparentes à época, e muitos

achavam que os “gigantes da indústria alimentar” estavam mesmo

fortalecendo a sua posição por meio da globalização, mas pesqui-

sas recentes que venho realizando com Ruth Rama, pesquisadora

com quem primeiro trabalhei no contexto do Programa Fast da

Comissão Europeia, confirmaram esta tendência e o surgimento

pela primeira vez de uma nova geração de empresas alimentares.

Isto será discutido mais à frente.

Um convite de Jonathan Murdoch, da Universidade de Cardiff,

para participar de uma Sessão do painel que ele estava organizando

para o Congresso Mundial de Sociologia Rural, em Trondheim, em

2004, foi uma oportunidade para eu reunir os meus pensamentos

numa linha mais acadêmica sobre o dilema micro-macro, que

fora uma preocupação constante minha e que nos estudos rurais

se traduzia numa polarização entre os estudos micro de sociolo-

gia econômica/ator-rede e as perspectivas macro da economia

política. Talvez tenha conhecido Murdoch em Cardiff, quando

apresentei o meu trabalho lá sobre a Teoria das Convenções, mas

77JOHN WILKINSON

o seu trabalho realmente chamou a minha atenção quando li o seu

artigo, “Networks – a new paradigm for rural development” (2000),

texto que eu teria me orgulhado de ter escrito, já que incorporava

tanto a Teoria Ator-Rede como perspectivas neoschumpeterianas.

Encontrei Jonathan Murdoch no Congresso Mundial de Sociologia

Rural no Rio de Janeiro, em 2000, e conversei rapidamente com ele

sobre este artigo.22

Para a reunião em Trondheim, analisei a recente polarização

dos debates agroalimentares e estudos rurais e, particularmen-

te, a oposição entre as análises de rede (relações sociais e ator-re-

de) e de economia política, num trabalho com o título “Network

Theory and Political Economy – from attrition to convergence” (49

citações). Explorei as contribuições das teorias francesas de con-

venções e de regulação e focalizei a forma em que as análises de

Cadeia Global de Valor (CGV) e Rede de Produção Global (GPN)

incorporavam com sucesso as abordagens de redes à sua perspec-

tiva mais de economia política. Ao concluir, chamei a atenção para

a importância do conceito de netchain, cunhado por Lazzarini e co-

legas, mencionado anteriormente, como possível ponto de conver-

gência entre as duas abordagens, conflitantes entre sim até então.

Ao mesmo tempo, declarei uma crescente preocupação de incor-

porar os movimentos sociais à análise de redes, como também as

“redes globais de políticas” a serem promovidas pelos híbridos das

organizações da sociedade civil e organizações governamentais

internacionais.

22 Naquele congresso apresentei um trabalho sobre biotecnologia numa sessão

coordenada por Maria Fonte, colega no Curso de Mestrado Vittorio Marrama, no

CPDA.

78JOHN WILKINSON

Fiquei muito feliz com a síntese que conseguira construir

neste trabalho que foi publicado num volume organizado por Terry

Marsden e Jonathan Murdoch, Between the Local and the Global.

Research em Rural Sociology and Development, v 12., 2006. A dis-

cussão deste estudo me colocou em contato com Stefano Ponte,

que também estava trabalhando em CGVs e a teoria das conven-

ções, como citei anteriormente, e com quem depois me encontrei

em Copenhagen, onde apresentei um trabalho sobre as Cadeias

Globais de Valor que incorporavam explicitamente a minha pre-

ocupação com a necessidade de integrar as dinâmicas dos movi-

mentos sociais e dos consumidores (uma possibilidade já presente

na distinção de Gary Gereffi entre cadeias de commodities/valor

orientadas respectivamente pela demanda e pela oferta). Este tex-

to foi publicado posteriormente como “Global Value Chains and

Networks in Dialogue with Consumption and Social Movements”,

no International Journal of Technology, Learning, Innovation and

Development, 2008.

No Brasil, apresentei uma versão revisado do trabalho de

Trondheim no XII Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia,

(SBS), em Belo Horizonte, em 2005, e ele foi publicado como capí-

tulo no livro Sociedade e realidade: pesquisa social no século XX1,

organizado por Maria Stela Grossi Porto e Tom Dwyer (UNB/SBS).23

23 Em colaboração com Josefa Salete Cavalcanti, coorganizei um Grupo

de Trabalho sobre “Globalização dos Sistemas Agroalimentares e Agendas

Alternativas” em diversos Congressos da Sociedade Brasileira de Sociologia

a partir de 2005. Fui também representante Brasil do Grupo RC40 que reunia

acadêmicos dos estudos rurais de uma abordagem de economia política no

Congresso Mundial de Sociedade Rural e que organizava reuniões regionais nos

intervalos entre Congressos, o que, juntamente com Salete, combinávamos com

o Grupo de Trabalho do SBS.

79JOHN WILKINSON

O declínio dos mercados tradicionais de commodities, iden-

tificado a partir dos anos 1970, impunha um desafio central às

organizações internacionais preocupadas com o desenvolvimento,

especialmente a FAO, o BID e a Comissão Econômica para América

Latina, (CEPAL). Nos países desenvolvidos, a resposta dominante,

como já mencionado, foi a transição para a qualidade nos alimen-

tos e produtos frescos ou artesanais cuja promoção era facilitada

com o desenvolvimento do varejo de grande escala que estava que-

brando o tradicional poder da indústria alimentar sobre as redes de

distribuição, e então, naturalmente, impondo o seu próprio poder.

Para os movimentos sociais e redes alternativas, o Comércio Justo

e os orgânicos representavam novas estratégias globais para o setor

de agricultura familiar. Para as organizações internacionais cita-

das anteriormente, a nova estratégia poderia ser resumida como a

promoção de “exportações de alimentos não tradicionais”. Ao mes-

mo tempo, estas organizações estavam assimilando a perspectiva

da “agroindústria” e “cadeia agroalimentar”, e, especialmente, es-

tratégias de integração vertical para pequenos agricultores. Agora,

no entanto, isto precisava levar em conta a nova hegemonia do

varejo de grande escala, que havia sido uma característica central

da minha cooperação com Raul Green e Roseli Rocha dos Santos,

e que passou a ser objeto de um projeto de pesquisa global focan-

do a transnacionalização do varejo de grande escala nos países em

desenvolvimento coordenado por Tom Reardon da Universidade

de Michegan com base nas redes de pesquisa

,

impressionantes

que ele criou na América Latina, Ásia e África. O varejo de gran-

de escala tornou -se o ator central para a integração vertical com a

mudança para o “não tradicional”, especialmente os mercados de

produtos frescos.

80JOHN WILKINSON

Eu já havia sido exposto a estas tendências através de um

convite para participar do Seminário The Globalisation of the Fresh

Fruit and Vegetable System, organizado por David Goodman e Bill

Friedland, em dezembro de 1991, em Santa Cruz, para o qual pre-

parei o artigo “A Profile of the Brazilian Fruit and Vegetables for

Export Sector”, cujo original ainda possuo, mas desconheço se foi

publicado. Neste trabalho, contrastei os fatores sinergéticos que

caracterizavam a transição do Brasil das plantações de café para

as de laranjas para suco em São Paulo, e de trigo para soja e, de-

pois, para carnes brancas nos estados do Sul, com as rupturas tan-

to em termos de atores, locais e exigências tecnológicas, no caso

na promoção da exportação de frutas não tradicionais no Nordeste

brasileiro. Também analisei o setor de frutas tradicionais no Brasil,

e ainda chamei a atenção para o papel vital das principais firmas

nacionais na consolidação do modelo “fordista” moderno do agro-

negócio brasileiro. Neste período, Salete Cavalcanti criou uma rede

RC40, envolvendo brasileiros, argentinos e Alessandro Bonnano,

importante membro estadunidense do RC40 (que depois seria seu

presidente) e, a partir de então, passou a desenvolver estudos siste-

máticos do setor de exportação de frutas em Petrolina, Pernambuco,

estado natal de Salete, abrangendo apresentações regulares ao

RC40 e em outros Congressos. Eu tinha um relacionamento forte

com esta rede por intermédio da nossa coordenação conjunta de

um Grupo de Trabalho no SBS, conforme já mencionada. Depois,

voltaria a analisar o complexo de exportações de Petrolina com

meus alunos Gilberto Mascarenhas e André Funck, dentro da estru-

tura de um projeto internacional de pesquisa, coordenado por Gary

Gereffi (Universidade Duke) e Stephanie Barrientos (IDS-Sussex),

81JOHN WILKINSON

em 2010-2013, denominado “Capturing the Gains”, desenvolvido a

partir da estrutura analítica de CGV.

Conheci Tom Reardon em 2000, em uma das nossas últimas

reuniões da Pesquisa Procisur Mercosul, Proyecto Global, na qual

ele esteve presente como observador. Nesse período, ele estava re-

alizando pesquisas numa grande rede latino-americana, em for-

te colaboração com Julio Berdegué, então líder da influente ONG

chilena: Centro Latinoamericano para el Desarrollo Rural, Rimisp)

que, por sua vez, fazia parte de uma ampla rede que analisava a

“revolução nos supermercados” no mundo em desenvolvimento. No

Brasil, Reardon trabalhava à época com Elizabeth Farina, membro

fundador do Programa Pensa da USP, e depois com Walter Belik, da

Unicamp. No Chile, Martine Dirven, da Ecla, e Sergio Faiguenbaum,

aluno de Vittorio Marrama, cuja dissertação eu orientara, faziam

parte da rede. O trabalho de Tom Reardon recebeu apoio da Divisão

de Agricultura e Economia do Desenvolvimento da FAO, cujo chefe

era Kostas Stammoulis. Fui convidado a contribuir com um tra-

balho, “Food Processing Industry, Globalisation and Developing

Countries”, que apresentei numa reunião em Roma, coordenada

pela FAO e Tom Reardon, e que incluía um estreito colaborador

dele, C. Peter Timmer. Este trabalho foi publicado como artigo na

FAO no e-JADE Journal, em 2004, e posteriormente, em 2008, se tor-

nou capítulo de um livro, The Transformation of Agrifood Systems,

organizado por Kostas Stammoulis e outros membros da sua divi-

são (100 citações).

Neste período, estava me interessando pelo setor de pesca-

do. Já havia orientado duas dissertações, uma sobre a produção

de truta no Sul e outra sobre tilápia no Nordeste, mas agora o meu

interesse era provocado pela crescente importância dos produtos

82JOHN WILKINSON

da pesca na nova dieta dos países desenvolvidos, e por seu papel

como um produto-chave das “exportações não tradicionais” para

os países em desenvolvimento. Além disso, no Brasil, a produção

de camarão estava se tornando importante em alguns dos estados

nordestinos,24 e a tilápia passava a ocupar um espaço significativo

no setor dos restaurantes “a quilo”, em franca expansão. Depois de

participar de uma reunião da FAO no Rio de Janeiro sobre pesca,

escrevi um capítulo, “Global Food Chain, Retail and Catering: the

case of the Fish Sector”, para o Report of the Expert Consultation in

International Fish Trade da FAO, organizado por Jochen Nierintz,

2004. Fui então convidado por Jochen Nierintz, da FAO, para coor-

denar uma pesquisa sobre os supermercados e o setor pesqueiro na

América Latina. Formei pequenas equipes no Brasil, Chile e Peru

e também realizei trabalho de campo em cada um destes países.

Naqueles dias, o Chile era visto como um caso bem-sucedido para

a estratégia de exportação de “alimentos não tradicionais” pelo seu

desenvolvimento da fruticultura e aquicultura de salmão. Esta pes-

quisa foi publicada em 2006, como Supermarkets and the Artesanal

Fisheries Sector in Latin America. Fiquei absorto com o setor pes-

queiro e me dediquei a um estudo mais acadêmico com base

num diálogo crítico com a análise da Cadeia Global de Valores. Os

resultados foram publicados como artigo na Sociologia Ruralis, em

2006, intitulado “Fish: a Global Value Chain Driven onto the Rocks”

(72 citações), que já recebeu algum reconhecimento na literatura

24 Já havia estudado este fenômeno como parte de um relatório que prepa-

rei a pedido da Diretoria-Geral 1 da Comissão Europeia: “Brazilian North and

Northeast Identification Mission: Opportunities for Economic Cooperation with

Europe”, Relatório Final, 1996, Bruxelas. O turismo, pesca, frutas e pedras semi-

preciosas foram os setores-chave identificados.

83JOHN WILKINSON

acadêmica. Neste artigo, focalizei o conflito de interesses que im-

possibilitavam a efetiva coordenação da cadeia global de pesca e

que ameaçava de extinção a pesca extrativista. A piscicultura, com

todos os seus problemas ambientais e tecnológicos estava agora

se tornando a principal fonte de pescado para consumo. Este foco

num aumento no consumo de peixes fazia parte de uma preocupa-

ção permanente com o lado da demanda do sistema agroalimentar

e, cada vez mais, com a natureza autônoma das práticas de con-

sumo, um tema que se tornaria mais central no momento em que

entrei no Comitê Organizador do Encontro Nacional de Estudos de

Consumo – Enec, em 2006, que vem promovendo encontros bie-

nais desde sua fundação, em 2000, por Livia Barbosa (UFF) e Laura

Graziela Gomes (UFF), e que também conta com a minha colega no

CPDA Fátima Portilho, que viria a exercer um papel cada vez mais

importante.

Já mencionei como comecei a incorporar o consumo na

minha análise das Cadeias Globais de Valor. Em 2004, realizei uma

revisão da literatura sobre estudos de consumo para esclarecer a

minha posição acerca deste tema, que foi posteriormente publica-

do (numa forma revisada) como capítulo, “Consumer Society: what

opportunities for new experiences of citizenship and control?”, no

livro Re-Imagining Growth: towards a renewal of development the-

ory, organizado por Silvana de Paula (uma colega no CPDA) e Gary

Dymski (Zed Books, 2006).

Desde então, tenho continuado meu trabalho sobre consumo

como objeto independente de investigação e não simplesmente

um adjunto aos estudos agroalimentares. Em 2008, fui convidado

por Dwijen Rangnekar, a quem conhecera no contexto do proje-

to Sinergi, para organizar uma conferência que denominamos de

84JOHN WILKINSON

(New) Borders of Consumption, e que ocorreu na Universidade

Warwick, em maio de 2009. Usei esta oportunidade para reunir

acadêmicos que estavam trabalhando na interface entre mercados

e consumo, no setor de agroalimentos – meu colega de

,

longa data,

David Goodman; seu ex-aluno Mike Goodman, agora docente na

Inglaterra e editor de uma importante série de livros sobre agricul-

tura e alimentos, além de perito no Comércio Justo; Mara Miele,

coautora com Jonathan Murdoch de muitas obras e que estava tra-

balhando na área do bem-estar animal; Gilles Allaire, com quem

eu trabalhei no projeto Sinergi; e Stefano Ponte, cujas contribui-

ções para a integração da teoria das convenções à análise de CGV

já mencionei. Preparei um texto, “From Fair Trade to Responsible

Soy: social movements and the qualification of agrofood markets”, e

organizamos uma edição temática com as contribuições da confe-

rência, que apareceu Environment and Planning A, em 2011.

Em 2011 também publiquei “Convention Theory and

Consumption”, na Encyclopedia of Consumer Culture (Sage), or-

ganizada por Dale Southerton. Em 2013, fui coautor do capítulo

“Youth Consumption and Citizenship”, com as colegas do Enec

Livia Barbosa, Fatima Portilho e Veranese Dubeux, que foi publica-

do em Enabling Responsible Living (Springer, 2013), organizado por

Ulf Schrader. E, em 2018, fui coautor de “Consumption in Brazil:

the new field of consumer studies and the phenomenon of the new

‘middle class’”, com Livia Barbosa, que foi publicado no Routledge

Handbook of Consumption.

Em 2006, Julio Berdegue coordenou a produção de trabalhos

que serviram como subsídios para o Relatório sobre Agricultura

e Alimentos, de 2008, da FAO. sob a coordenação-geral de Alain

de Janvry, cujo livro sobre reforma agrária na América Latina fora

85JOHN WILKINSON

um texto fundamental para o meu ensino no Curso de Mestrado

de Vittorio Marrama. Fui convidado para ampliar o artigo que pre-

parara para Kostas Stamoulis sobre o setor de processamento de

alimentos no contexto de países em desenvolvimento. Os termos de

referência exigiam uma pesada análise estatística, que foi elaborada

por Rudi Rocha, à época brilhante aluno de doutorado e agora do-

cente no Instituto de Economia da UFRJ, que se tornou coautor do

texto, o qual, de forma confusa, ostentava o mesmo título do artigo

que eu preparara dois anos antes. Rudi e eu também apresentamos

um trabalho sobre o mesmo tema geral no Global Agroindustries

Forum, Gaif, Nova Delhi, Índia, em 2008, que foi publicado no ano

seguinte como capítulo, “Agroindústria: trends, patterns and develo-

pment impacts”, na edição da FAO, Agroindustries for Development,

organizado por Carlos da Silva et al. Visitei a Índia outra vez como

coordenador do estudo de Biocombustíveis e Segurança Alimentar

em 2102-13 e como integrante da equipe de pesquisa Capturing the

Gains no mesmo ano. Também integrei a delegação do Governo

brasileiro para a Conferência Brics sobre agricultura, que ocorreu

na Índia. Em 2009, fui convidado para apresentar um trabalho no

Congresso Trienal conjunto FAO-IAAE, em Pequim, que preparei

com Clovis Dorigon e Luiz Carlos Mior, intitulado “The Emergence

of SME agroindustriais networks in the shadow of agribusiness con-

tract farming. A case study from the South of Brazil”. Este trabalho

foi publicado como capítulo em Innovative Policies and Institutions

to Support Agroindustrial Development, FAO, outra vez editado

por Carlos A. Silva e visto como desdobramento do livro anterior.

No mesmo Congresso do IAAE, em Pequim, também participei da

sessão que apresentou os resultados finais da rede de pesquisas do

86JOHN WILKINSON

Sinergi, Indicações Geográficas, de cujo Conselho Consultivo eu

fora presidente.

A preparação destes artigos me colocou em contato com a

literatura internacional que tratava de desenvolvimento num con-

texto radicalmente novo, definido pela desregulação e a crescente

centralidade dos novos atores privados, envolvendo produtos não

tradicionais com características distintas de qualidade. Já mencio-

nei como, no contexto brasileiro, isto levou, entre outras coisas, à

criação do Pensa e à centralidade das questões de coordenação

para os atores nas diferentes cadeias agroalimentares, para quem

a nova economia institucional e a análise de custos de transação se

tornou uma estrutura analítica atraente.

A análise de “grades e padrões”, e “certificações”, como me-

canismos de coordenação central, passou a ser uma preocupa-

ção-chave na academia e nas instituições internacionais citadas

anteriormente. Estas questões passaram a ocupar uma importan-

te posição na minha disciplina sobre o Sistema Agroalimentar no

CPDA, e me valia especialmente do trabalho de Larry Busch, que

estava no mesmo centro que Tom Reardon nos Estados Unidos,

mas que fazia uso preferencialmente das teorias das convenções e

ator-rede. Aqui a teoria das convenções e as abordagens de custos

de transação outra vez eram usadas como estruturas interpretativas

competitivas e, às vezes, complementares na crescente literatura

sobre graus, padrões e sistemas de certificação. Em 2010, produzi

um dossiê sobre o tema da qualidade, Gestão de Qualidade, para

um curso de especialização em Gestão do Agronegócio, coorde-

nado pelo Professor Roberto Amadeu Fassarello, da Universidade

Federal do Espírito Santo. A intenção era de publicar o dossiê, o que

87JOHN WILKINSON

lamentavelmente não ocorreu. Mas ele passou a ser uma ferramen-

ta pedagógica útil nas minhas aulas no CPDA.

Renovei a minha colaboração com Ruth Rama num estudo

que empreendemos para a FAO, publicado no Commodity Market

Review, em 2008. Este estudo envolveu uma pesquisa sobre investi-

mento estrangeiro direto (IDE) e seu impacto no desenvolvimento

nas Cadeias de Valor Global nos países em desenvolvimento e me-

nos desenvolvidos, intitulado “FDI and Agrofood Value Chains em

Developing and Least Developing Countries”. Ao mesmo tempo, fui

contratado pela Ecla/Cepal para preparar um capítulo sobre investi-

mentos asiáticos no agro latino-americano. Mais de dez anos antes,

eu havia produzido um relatório para a Ecla/Cepal sobre perspecti-

vas para a agricultura familiar no contexto do avanço da liberaliza-

ção e de novos padrões da demanda global e o potencial dos “mer-

cados não tradicionais”. Isto fora publicado como Documento Ecla/

Cepal, em 1994: “Agroindústria: Articulação com os Mercados e

Capacidade de Integração Socioeconômica da Produção Familiar”.

Agora, no meio da primeira década do novo milênio, o con-

texto internacional mudou mais uma vez, e os investimentos asi-

áticos na agricultura latino-americana passaram a ser uma preo-

cupação importante. Isto foi uma oportunidade para reexaminar

a participação japonesa na ocupação da região do Cerrado no

Brasil e de investigar o papel dos investimentos asiáticos na indús-

tria madeireira na Amazônia, incluindo Guiana e Peru, além do

Brasil. Foi também uma rara oportunidade de visitar a Coreia do

Sul, onde apresentei os resultados do nosso estudo e pude observar

88JOHN WILKINSON

os enormes avanços econômicos que este país havia alcançado.25

Nossa pesquisa foi publicada bem depois como um capítulo, “Asian

agribusiness investment in Latin America with case studies from

Brazil”, no livro The Changing Nature of Asian and Latin America

Economic Relations, em 2012, pela Ecla/Cepal.

O ano de 2003 foi um momento decisivo não só no Brasil

como também nos mercados agroalimentares mundiais. No Brasil,

o recém-empossado Governo Lula priorizou um novo programa de

biocombustíveis para o setor da agricultura familiar ao promover o

biodiesel, derivado de um leque de lavouras oleaginosas adaptadas

às características regionais e aos sistemas produtivos da agricultura

familiar. Ao mesmo tempo, o etanol foi projetado como um novo

mercado agrícola vital, que prometia o desenvolvimento verde para

os países em desenvolvimento e, particularmente, para o continen-

te africano. Enquanto o etanol das culturas alimentares, especial-

mente o milho, rapidamente passou a ser visto com olhos críticos

pelas

,

a aguçar seu interesse

e sua percepção sobre o sindicalismo e a ação sindical e sobre as

transformações em curso no meio rural, com especial atenção aos

assalariados e aos pequenos produtores. Já no CPDA, e no contexto

09PREFÁCIO - NELSON GIORDANO DELGADO

das oportunidades de recursos e de diálogo acadêmico e político

em âmbito nacional propiciadas pelo Projeto de Intercâmbio de

Pesquisa Social em Agricultura (Pipsa), financiado pela Fundação

Ford e inaugurado em 1978, iniciou, de forma sistemática e incan-

sável, um admirável e pioneiro envolvimento com os temas da

reforma agrária, das políticas públicas, das lutas sociais, dos mo-

vimentos e das organizações sociais no campo, cujos desdobra-

mentos nas décadas seguintes – na pesquisa, no ensino, na asses-

soria, no intercâmbio e na construção da memória das lutas sociais

camponesas – representam a contribuição marcante e singular da

professora Leonilde no CPDA e no meio acadêmico brasileiro e la-

tino-americano, o que lhe tornou reconhecida como uma das mais

importantes intelectuais nesses campos de atuação.

Quero, no conjunto das contribuições de Leonilde, chamar

especialmente a atenção para uma que ela mesma considera como

das mais preciosas: a criação no CPDA, em 1994, do Núcleo de

Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e

Políticas Públicas no Campo (NMSPP), que ganhou grande impul-

so a partir de 2003 e representa uma iniciativa pioneira e corajosa

de instalação e manutenção de um centro de documentação que

acumule e organize materiais (de diversa natureza) relevantes tan-

to para a preservação da memória dos camponeses e dos trabalha-

dores do campo e suas lutas, quanto para o estímulo à pesquisa,

acadêmica ou não, no campo abrangido pelo Núcleo.

E não posso deixar de lembrar também que Leonilde esteve

na linha de frente da luta pela sobrevivência institucional do CPDA

no final dos 70 e contribuiu intensamente, desde então – como

John e Sergio –, no trabalhoso, mas memorável, esforço acadêmi-

co e administrativo empreendido coletivamente para conformá-lo

10PREFÁCIO - NELSON GIORDANO DELGADO

e consolidá-lo como um programa público de pós-graduação, de

ensino e de pesquisa, de qualidade.

Ademais, o reconhecimento de seu enraizamento acadêmico

e político nas lutas sociais no campo fez com que fosse convidada

a participar na Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro,

instalada em 2013 para resgatar e esclarecer as graves violações de

direitos ocorridas no meio rural durante o período da ditadura mi-

litar no Brasil.

John, por sua vez, entrou no CPDA em 1982, na transição da

passagem da Fundação Getúlio Vargas (Horto) para a UFRRJ. Vinha

de Salvador/BA e foi apresentado ao CPDA por nosso amigo comum

Prof. Bernardo Sorj, que foi colaborador do programa nesse período.

No início dos 1980 surgiram as primeiras pesquisas e publicações

no Brasil sobre o tema dos Complexos Agroindustriais, como era

então denominado, no qual foram pioneiros o próprio Bernardo,

Geraldo Müller, José Graziano da Silva, Angela Kageyama e vários

outros pesquisadores. A partir daí, e como professor e pesquisador

do CPDA, John foi aprofundando e complexificando a temática do

sistema agroalimentar mundial, e seus desdobramentos na Europa,

na América Latina e no Brasil, em diversas direções e dimensões,

tendo se tornado, reconhecidamente, uma das maiores autorida-

des internacionais nesse campo, fazendo parte de uma rede mun-

dial de pesquisadores de grande importância e visibilidade.

É fascinante acompanhar no memorial a riqueza, a complexi-

dade e a abrangência da trajetória seguida por John ao longo desses

anos, acompanhando seu passo a passo intelectual, seu destemor

em abrir novas frentes de investigação, em participar em redes eu-

ropeias, norte-americanas e asiáticas cada vez mais inovadoras e

diversificadas no pensar o campo do sistema alimentar mundial,

11PREFÁCIO - NELSON GIORDANO DELGADO

em colaborar na criação de redes nacionais e latino-americanas de

pesquisadores, em grande parte mobilizando estudantes brasilei-

ros e latino-americanos do CPDA, cujas dissertações e teses foram

por ele orientadas.

Neste sentido, explorou, empírica e analiticamente, um con-

junto impressionante de temas que cobrem, por exemplo: os es-

quemas interpretativos das relações entre indústria e agricultura,

a partir da recusa em aceitar a concepção de um complexo agroin-

dustrial unificado; a importância do grande varejo na conformação

do sistema alimentar; a crescente relevância da biologia e da infor-

mática no sistema; o surgimento dos movimentos sociais ligados ao

consumo alimentar e ao comércio justo; a valorização da agricultu-

ra familiar brasileira, a construção de mercados cívicos e o direito à

segurança alimentar e à produção de alimentos saudáveis; e, mais

recentemente, o mergulho nos temas desafiadores e atualíssimos

da conformação da nova fronteira tecnológica – confrontada mui-

to mais pelas questões alimentares e de preservação do meio am-

biente do que pelas questões agropecuárias propriamente ditas – e

das novas dinâmicas geopolíticas do sistema alimentar global. Sem

esquecer a contribuição, teórica e empírica, que tem dado ao cam-

po da sociologia econômica e sua aplicação ao estudo do sistema

alimentar, do qual é um dos pioneiros. Não tenho dúvidas de que a

cabeça do John é uma festa de arromba!

Sergio, que é o mais jovem dos três, trilhou um caminho di-

verso, percorrido já na UFRRJ. Fez seu mestrado no próprio CPDA,

tendo defendido em 1992 sua dissertação orientada pelo Prof.

Roberto Moreira. Neste sentido, é um “filho” da tradição originá-

ria do CPDA. Logo em seguida, após um período em que trabalhou

no IBASE (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas),

12PREFÁCIO - NELSON GIORDANO DELGADO

foi contratado como professor e pesquisador pelo CPDA em 1994,

sendo, se não estou enganado, o primeiro ex-aluno a fazer parte da

instituição. A partir daí, Sergio conquistou um enorme e mereci-

do prestígio, no Brasil e no exterior, como um brilhante professor e

pesquisador, como um extraordinário institutional builder e como

um incansável, imaginativo e respeitado construtor de laços acadê-

micos, pessoais e institucionais, com pesquisadores e instituições

no Brasil e no exterior, além de um intenso trabalho de consulto-

ria com ONGs, organizações internacionais e com o governo bra-

sileiro (nos diferentes níveis da federação). Uma leitura atenta de

seu memorial não deixa dúvidas quanto à ênfase colocada nessas

observações.

Não vou mencionar o admirável conjunto de atividades (por

exemplo, de ensino, de pesquisa, de intercâmbio nacional e inter-

nacional, de publicações científicas, de coordenação institucional)

empreendido pelo Prof. Sergio nesses anos - como também não o

fiz para os dois outros colegas -, pois optei pela elaboração de um

prefácio muito breve que apenas sirva para abrir o apetite para a

leitura dos memoriais. Mas não resisto ao impulso de aludir a pelo

menos três dessas atividades, pela importância que considero que

tiveram.

Primeiro, o investimento em pesquisa que foi empreendido

pelo Prof. Sergio, pela Prof. Leonilde e por um grande número de

pesquisadores ligados ao CPDA e a outras instituições acadêmicas

de diferentes partes do Brasil, durante a década de 1990 e o início

dos anos 2000, sobre o tema dos assentamentos de reforma agrária

e seus impactos regionais tanto sobre os próprios assentados como

sobre o entorno econômico e social em que foram implementados.

Esse notável “programa de pesquisa” sobre os assentamentos de

13PREFÁCIO - NELSON GIORDANO DELGADO

reforma agrária no Brasil teve enorme repercussão nacional e in-

ternacional tanto pela qualidade dos resultados obtidos sobre um

tema bastante controverso politicamente, como pela mobilização

de grande parte dos pesquisadores que iriam conformar

,

organizações da sociedade civil, o etanol brasileiro obtido da

cana-de-açúcar foi aceito como combustível limpo, poupador de

carbono e renovável, e tornou -se a bandeira principal de uma di-

plomacia global que projetava o Brasil como modelo para o resto

do mundo em desenvolvimento. De forma semelhante, a União

Europeia estabeleceu metas ambiciosas para os seus programas

de biocombustíveis, basicamente biodiesel, nos quais a África e os

países caribenhos eram projetados para serem grandes fornecedo-

res de matéria-prima, e mais uma vez foram apresentados como

uma nova oportunidade para o desenvolvimento. Esta imagem

25 Visitei a zona desmilitarizada com a Coreia do Norte e fiquei chocado em ver

como Seul ficava perto da fronteira.

89JOHN WILKINSON

deu ao Brasil grande influência no mundo em desenvolvimento e

a perspectiva de um mercado emergente para o bioetanol trouxe

uma onda de investimentos para o setor açucareiro brasileiro.

Ao final dos anos 1980, como mencionado anteriormente, eu

havia feito pesquisas no Centro de Desenvolvimento da OCDE em

biotecnologia e no setor de biocombustíveis. Revisitamos este se-

tor no início dos anos 1990 com a produção de um relatório iné-

dito durante muito tempo acerca do papel das biotecnologias no

Brasil e dos biocombustíveis, em especial,26 que formou a base para

diversos artigos publicados sobre o que à época era denominado

de Programa Proálcool. Por volta de meados da primeira década do

novo milênio, organizações da sociedade civil também estavam se

tornando críticas da expansão das lavouras de biodiesel no mundo

em desenvolvimento. A Oxfam International publicou um estudo

global em 2008 intitulado: Another Inconvenient Truth: how bio-

fuels are deepening poverty and accelerating climate change. Dada

a importância do Brasil, a Oxfam International então contratou a

mim e Selena Herrera para produzirmos um relatório detalha-

do tanto sobre etanol como biodiesel no Brasil, que além de uma

análise geral de cada programa deveria também incluir estudos de

caso. Isto ofereceu uma oportunidade ideal para um trabalho de

campo e nós examinamos a produção de biodiesel do óleo de ma-

mona no estado do Ceará e do óleo de palma no estado do Pará,

além de uma iniciativa envolvendo a produção de etanol no Rio

Grande do Sul, dentro de uma perspectiva de desenvolvimento lo-

cal. Os resultados foram publicados em 2008 num formato bilíngue

26 Odaci Coradini, um aluno de Bernardo Sorj e membro do grupo Pecla da

Universidade de Minas Gerais se juntou a Sorj e a mim neste estudo.

90JOHN WILKINSON

como Agrofuels in Brazil/Agrocombustíveis no Brasil, pela Oxfam

International. No mesmo ano, contribuímos com um capítulo,

“Subsídios para a discussão dos agrocombustíveis no Brasil”, para

uma publicação da Fase/Rebrip, Agrocombustíveis e a Agricultura

Familiar e Camponesa.27 No ano seguinte, fui convidado a preparar

um artigo sobre biocombustíveis no Brasil para uma conferência no

Fernand Braudel Center, que apareceu como “The Emerging Global

Biofuels Market”, na revista deste centro, Review.28 Este artigo me

deu a oportunidade de analisar o mercado de biocombustíveis à

luz da crise financeira global de 2007-8 e os debates sobre o papel

dos biocombustíveis nos aumentos dos preços agrícolas deste pe-

ríodo. Também permitiu uma primeira avaliação do impacto da

crise financeira global sobre o setor de etanol de cana-de-açúcar no

Brasil. No ano seguinte, num artigo escrito juntamente com Selena

Herrera para o Journal of Peasant Studies, “Biofuels in Brazil: deba-

tes and impacts” (166 citações, Google), conseguimos atualizar e

27 Por volta deste período, o Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura

(Oppa), coordenado por Sérgio Leite, foi contratado pela Petrobras para realizar

uma avaliação do Programa de Biodiesel. Fui convidado para apresentar um ar-

tigo em uma das suas reuniões, e o fiz, sendo o artigo denominado “Construção

política do mercado de biodiesel”. Mas que eu me lembre, nunca foi publicado.

Em outras ocasiões, colaborei com as iniciativas do Oppa, produzindo dois arti-

gos, um sobre biotecnologias e, o outro, num livro organizado por Renato Maluf

e Georges Flexor, Questões agrárias, agrícolas e rurais, de 2017.

28 Em 2010, também publiquei outro artigo, “Water and Land in Latin America:

global strategies and policies”, numa edição especial do Review, v. XXXIII, ns. 2/3,

organizado por Philip McMichael. Um ano depois, publiquei um artigo sobre o

mesmo tema com relação ao Brasil, na série: Cindes, v. 1, “Water a Strategic

Global Resource”.

91JOHN WILKINSON

aprofundar a nossa análise dos programas tanto de etanol como de

biodiesel no Brasil29.

Com base neste extenso trabalho realizado sobre a questão

dos biocombustíveis e por intermédio da indicação do meu cole-

ga no CPDA Renato Maluf, à época membro do Comitê Diretor do

Painel de Peritos de Alto Nível sobre Segurança Alimentar (sigla em

inglês, HLPE), fui convidado para ser líder de equipe para a produ-

ção de um Relatório do HLPE sobre Biocombustíveis e Segurança

Alimentar, que apareceu em 2013.30 Os outros integrantes da equi-

pe, não indicados por mim, foram Suraya Afiff, Miguel Carriquiry,

Charles Jumbe e Timothy Searchinger. Esta pesquisa foi auxiliada

grandemente pelo coordenador do HLPE, Vincent Gitz. O Relatório

continha os seguintes capítulos: “Políticas de biocombustíveis”;

“Biocombustíveis e a fronteira tecnológica”; “Biocombustíveis, pre-

ços, fome e pobreza”; “Biocombustíveis e terra”; “Biocombustíveis

e bioenergia: impactos socioeconômicos e perspectivas de

29 Tornei -me coorientador de Selena Herrera, juntamente com Emilio Lèbre la

Rovere, no seu doutorado que ela defendeu no Coppe em 2014: Análise da go-

vernança global da sustentabilidade dos biocombustíveis e proposta para o etanol

brasileiro. Mediante minha indicação, ela passou um período sanduíche com

Mark Harvey na Universidade de Essex, pessoa cujo trabalho eu vinha acompa-

nhando desde as suas publicações inicias sobre biotecnologia e que havia feito

pesquisa sobre biocombustíveis brasileiros.

30 Entre 2013-2015, fui convidado pelo Global Food Ethics Project, da Universidade

Johns Hopkins, para ser parte de uma equipe que, com base em sessões de

brain storming, recebeu a incumbência de produzir uma agenda sobre Ética e

Segurança Alimentar Global, chamada Agenda 7 x 5, porque definia sete prio-

ridades para serem alcançadas em 5 anos. Preparei um artigo para este projeto

que foi publicado na Revista Global Food Security, “Food Security and the Global

Agrifood System. Ethical Issues in a Historical and Sociological Perspective”,

2015. Em uma reunião na Itália, tive o prazer de participar juntamente com Per

Pinstrup Anderson e Michael Lipton, pessoas-chave nos nossos debates rurais.

92JOHN WILKINSON

desenvolvimento”. Esta pesquisa ofereceu uma oportunidade para

debates detalhados com o Comitê Diretor do HLPE em Amsterdã,

Chennai, Índia, e em Pequim, onde expus os resultados em curso do

Relatório a uma enorme plateia de alunos chineses, e consegui me

apresentar em mandarim.31 Também estive presente numa palestra

proferida por Alain de Jainvry no Departamento de Economia

Agrícola, onde lecionava Huajun Tang, o representante chinês no

Comitê Diretor do HLPE, e fiquei surpreso pela abertura das dis-

cussões naquele momento. A redação final do Relatório foi um pro-

cesso controvertido, já que eu não estava convencido de que os bio-

combustíveis eram a causa exclusiva dos aumentos dos preços das

commodities agrícolas, era mais tolerante com os biocombustíveis

do Brasil derivados de cana-de-açúcar, e pensava que com a rever-

são das metas tanto dos Estados Unidos como da União Europeia

para biocombustíveis, estas seriam menos capazes de causar futu-

ros aumentos de preços. Tais posições enfrentaram dura oposição

dentro da equipe, e foi apenas através das excelentes

,

habilidades

de Vincent Gitz que o relatório final foi concluído. Penso que a

evolução subsequente dos mercados de commodities ratificou

31 No meu entusiasmo por tudo (quase) a ver com a China neste período, passei

dois anos com aulas esporádicas em mandarim, mas tive que reconhecer a mi-

nha derrota.

93JOHN WILKINSON

plenamente a minha posição, e, de fato, quando o Relatório apare-

ceu o interesse no tema já estava em declínio.32

O Brasil, como já mencionei, foi um importante promotor

dos biocombustíveis em âmbito global e particularmente dos bio-

combustíveis como estratégia de desenvolvimento para o continen-

te africano, em especial os países lusófonos. No caso específico de

Moçambique, os investimentos previam o desenvolvimento de uma

nova fronteira agrícola tanto para biocombustíveis como para soja.

As organizações da sociedade civil passaram a se interessar bastan-

te por estes desdobramentos, e a Actionaid me contratou para três

estudos, que preparei em 2013-5. O primeiro, Brazilian Cooperation

and Investment in African Agriculture; o segundo, Biodiplomacia do

Brasil na África; e, o terceiro, O Setor Sucroalcooleiro Brasileiro na

Atual Conjuntura Nacional e Internacional. Visitei Moçambique

neste período como parte do acordo entre o CPDA/UFRRJ e a

Universidade de Mondlane, em Maputo, com a ideia de que o

CPDA participaria de um Programa de Doutorado que estava sen-

do preparado. Embora depois não fosse ter qualquer papel no

Programa, a viagem me permitiu realizar um interessante trabalho

de campo entrevistando pequenos produtores e encontrei Mariana

Menezes Santarella Roversi, doutoranda no CPDA, orientada por

Renato Maluf, que estava escrevendo sua tese na região de savana

32 Este período trabalhando no Relatório me colocou em contato próximo com

M.S. Swaminathan, presidente do Comitê Diretor do HLPE à época. Além de ad-

mirar a forma competente e enérgica com que ele presidia as reuniões, tive o

privilégio de visitar os distritos rurais de Chennai, onde a sua notável influência

sobre as comunidades rurais e particularmente organizações de mulheres nas

áreas rurais era evidente.

94JOHN WILKINSON

de Moçambique, focalizando a reação das comunidades tradicio-

nais aos investimentos que estavam sendo feitos lá.

Em 2008, fui convidado por David Kupfer, do Instituto de

Economia da UFRJ e depois do BNDES, para coordenar o com-

ponente agroindustrial de um estudo intitulado “Perspectivas

de Investimentos no Brasil” no médio e longo prazo. O estudo foi

bastante amplo e envolveu pesquisas sobre café, citrus, soja, trigo,

milho, carnes, laticínios e fruticultura. Contratei uma equipe gran-

de, composta por Walter Belik (Unicamp), André Funcke (CPDA),

Gilberto Mascarenhas (CPDA), Eduardo Morais (Unesp), Paulo

Rodrigues F. Pereira (CPDA), Gessuir Pigatto (Unesp), Elson Cedro

Mira (Universidade Estadual de Santa Cruz, Bahia) e Raquel Pereira

de Souza (Unicamp). Os termos de referência demandavam uma

análise dos desafios e das oportunidades globais e nacionais para

estes setores com respeito às mudanças tecnológicas, padrões de

competição, estruturas regulatórias e demanda. Cada setor era

analisado de acordo com a dinâmica global dos investimentos,

tendências para o investimento no Brasil, perspectivas de médio e

longo prazo para investimentos e políticas propostas. O relatório fi-

nal, com cerca de 200 páginas, pode ser acessado em https://www3.

eco.unicamp.br/Neit/images/stories/arquivos/ie_ufrj_sp04_agronego-

cio.pdf. Continha análises bastante ricas dos diversos setores de

commodities, mas suas metas globais foram prejudicadas pela crise

financeira global que ocorreu enquanto a pesquisa estava sendo

realizada e afetou severamente os setores agroindustriais-chave,

dificultando quaisquer previsões de curto e médio prazo para in-

vestimentos. André Funcke aproveitou a sua pesquisa neste projeto

para concluir o seu doutorado sob minha orientação.

https://www3.eco.unicamp.br/Neit/images/stories/arquivos/ie_ufrj_sp04_agronegocio.pdf

https://www3.eco.unicamp.br/Neit/images/stories/arquivos/ie_ufrj_sp04_agronegocio.pdf

https://www3.eco.unicamp.br/Neit/images/stories/arquivos/ie_ufrj_sp04_agronegocio.pdf

95JOHN WILKINSON

O ano de 2008 foi também notável pelo convite que recebi

de Sérgio Schneider para organizar um livro baseado numa sele-

ção dos meus textos, a ser publicado pela UFRGS Editora. Resolvi

me concentrar em textos que escrevera sobre agricultura familiar.

Escolhi dez deles, e o livro foi dividido em três seções, tratando res-

pectivamente dos novos desafios enfrentados pela agricultura fa-

miliar nos anos 1990, das estruturas analíticas da sociologia econô-

mica e teoria das convenções para analisar a agricultura familiar e

do novo conjunto de questões que a agricultura familiar enfrentaria

no novo milênio. O livro foi publicado em 2008, como Mercados,

redes e valores, o título que havia dado ao meu Núcleo de Pesquisas

CNPq. Sérgio Schneider depois me informou que os exemplares

haviam esgotado e, de acordo com Google Academic, o livro até a

presente data tem 290 citações.

Em 2009, publiquei um artigo, “Globalization of Agribusiness

& Developing World Food Systems” (95 citações Google), no Monthly

Review, notável por causa de Huberman, Sweezy e Magdoff, e que

depois seria publicado como capítulo de um livro pela Monthly

Review Press. Este artigo foi uma oportunidade de fazer um ba-

lanço das enormes mudanças que estavam ocorrendo no sistema

alimentar mundial com o crescimento das “economias emergen-

tes”, especialmente os países Brics, como também as implicações

da crise financeira mundial. Embora reconhecesse a dominância

global das empresas transnacionais do Norte, este artigo focou a

mudança no comércio e fluxos de investimento para o Sul e o pa-

pel-chave agora desempenhado pelos países em desenvolvimento

de grande escala, Brasil, China e Indonésia, com enfoque especial

nos dois primeiros. Oferecia uma análise sucinta, mas detalhada,

dos desdobramentos no setor agroalimentar tanto no Brasil como

96JOHN WILKINSON

na China, e mostrou como tão grande número de atores nacionais

como políticas nacionais nestes países estavam modificando a he-

gemonia anteriormente inconteste dos atores globais, e que, em-

bora esses ainda mantivessem a sua dominância, a China especial-

mente estava dando sinais de desenvolver uma estratégia nacional

mais determinada. Nos anos seguintes, eu passaria a focar cada vez

mais no sistema agroalimentar chinês e trabalharia em cima desta

análise inicial em colaboração com diversos alunos e colegas.

Antes disto, todavia, em 2010, fui convidado a participar de

um projeto de pesquisa, Capturing the Gains, coordenado por Gary

Gereffi (Universidade Duke) e Stephanie Barrientos (Universidade

de Sussex e depois de Manchester). Este foi um projeto ambicioso

que cobria todos os continentes e um amplo leque de setores indus-

triais e de serviços. A meta era analisar os efeitos da integração aos

CGVs sobre diferentes atores e para diferentes hipóteses de desen-

volvimento. A novidade especial desta pesquisa era a distinção es-

tabelecida entre os diferentes padrões de upgrading e downgrading

(mobilidade para cima e para baixo) como consequência da inte-

gração em CGVs. Não apenas era reconhecido que downgrading

muitas vezes era associado à participação em CGVs (o nivelamento

por baixo), mas a hipótese era que houve trajetórias contraditórias

com upgrading econômico combinando com downgrading social e

vice-versa. Esta abordagem analítica era especialmente útil na aná-

lise dos diferentes resultados por gênero da participação em CGVs.

Formei uma equipe com meu ex-aluno e agora colega de pesquisa

Gilberto Mascarenhas, e dois alunos de doutorado, André Funcke e

Paulo Pereira, que também haviam trabalhado comigo na pesquisa

PIB-BNDES. Estudamos o setor de hortifruticultura, e isto me

,

per-

mitiu revisitar o polo de exportações de Petrolina, que eu estudara

97JOHN WILKINSON

pela primeira vez em 1991, embora tivesse visitado a região mui-

tas vezes enquanto trabalhava pela Secretaria de Agricultura na

Bahia ao final dos anos 1970 e início dos 1980, e estivesse presente

no primeiro leilão de terras realizado pela Codevasf para as áre-

as irrigadas que posteriormente constituiriam o polo de expor-

tações. Produzimos um Relatório: Social and Economic Up and

Downgrading in Brazil’s Hortifruiticulture, que foi publicado ele-

tronicamente como Working Paper 41 no site Capturing the Gains.

Achamos a metodologia muito útil para a condução do trabalho de

campo, mas penso que nossa principal contribuição foi mostrar

como a conjuntura política mais ampla influencia fortemente a di-

nâmica das CGVs, aumentando, no caso do nosso estudo, as con-

dições de negociação dos trabalhadores dentro do clima favorável

provido pela existência de governos do Partido dos Trabalhadores

nesse período.

Durante os anos 2011-2013, passei a ser coordenador do

CPDA. Mencionei anteriormente que fui a coordenador, em 1984,

mas logo depois fui convidado a ser Visiting Fellow na Comissão

Europeia, e o CPDA, em particular Jorge Romano, que assumiu a

posição de coordenador, generosamente possibilitou este tem-

po em Bruxelas. Fui também coordenador do Curso de Mestrado

de Vittorio Marrama nos seus últimos dois anos, período em que

a demanda estava claramente migrando para o nível de doutora-

do. Negociamos para que as bolsas estudantis deste curso fossem

usadas para atrair alunos do continente africano, mas embora ini-

cialmente tivéssemos alunos de alguns países africanos, esta área

nunca se consolidou. Todavia, a pesquisa sobre a África passou as

ser cada vez mais presente no CPDA na temática de segurança ali-

mentar e biocombustíveis, por meio de atividades de cooperação,

98JOHN WILKINSON

promovidas por um ex-aluno, Francisco Sarmento, atuante na

Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Também negociei e coordenei o Programa Doutoral Dinter

com a Universidade Estadual de Santa Cruz – Bahia (Uesc).

Ministramos cursos na Bahia e os alunos passavam um semestre no

CPDA. Uma das minhas orientandas no mestrado e doutorado no

CPDA, Zina Benavides, se tornou professora nesta Universidade.

Ela foi bastante atuante em promover a rede de pesquisa MRV-

CNPq que eu coordenava e, desde então, tem se tornado elo impor-

tante na pesquisa em mercados de qualidade especial nesta região

cacaueira/chocolateira da Bahia. Outro professor, que veio destes

alunos do Dinter, Elson Mira, também participou do projeto de pes-

quisa Perspectivas de Investimento no Brasil (PIB), que coordenei

neste período. Posteriormente, eu iria ajudar a minha colega Débora

Lerrer na organização de outra iniciativa Dinter, desta vez com o IF

Goiano, cujos alunos estão atualmente concluindo suas teses.

Meu período como coordenador coincidiu com negocia-

ções na esfera da Universidade de uma nova estrutura regulatória

para avaliar os programas de pós- graduação, e tivemos o cuidado

em demonstrar as características especiais de um programa inter-

disciplinar de Ciências Sociais. Minhas habilidades de negociação

não eram muito bem aprimoradas para este tipo de debates, e tive

que depender do apoio detalhado das reuniões plenárias do CPDA

para orientação. Lembro -me que as reflexões de coordenadores

anteriores, bem versados nestes debates – Roberto Moreira, Eli de

Fatima Lima, Sérgio Leite e Leonilde Medeiros –, foram contribui-

ções decisivas para mim nestas reuniões.

Durante este período, Regina Bruno era professora visitante

na Universidade Federal em Fortaleza, e assumi a sua disciplina em

99JOHN WILKINSON

Teoria Social, que era obrigatória para alunos do mestrado. Além

de ter sido uma oportunidade agradável para reler as obras clássi-

cas para fins pedagógicos, foi durante esta disciplina que descobri

Social Theory: twenty introductory lectures, livro escrito por Hans

Joas e Wolfgang Knöbl, que usei em paralelo com o livro bem ante-

rior Twenty Lectures, escrito por Jeffrey C. Alexander. Foi por inter-

médio de Hans Joas que tive minha introdução ao pragmatismo e

seu livro, The Creativity of Action, foi de especial importância por-

que se harmonizava com minha preocupação perene com inova-

ção.33 Esta disciplina também me proporcionou contato com um

ano inteiro de mestrandos num momento em que estavam num

alto nível de agitação que levaria à primeira greve dos nossos alu-

nos de pós- graduação, criando um clima um tanto tenso ao final do

meu mandato. Que me lembre, decidimos suspender as aulas, que

teve o efeito de proteger os alunos de retaliações posteriores.

Foi no meio do meu período como coordenador que a pri-

meira oportunidade de desenvolver um trabalho sobre a China

apareceu durante a Reunião de Cúpula Rio + 20, no Rio de Janeiro,

em 2012. Ministrei uma palestra em uma das reuniões paralelas so-

bre China na PUC-Rio e, após a reunião, fui abordado por alguém

da Austrália com uma proposta de redigir a minha apresentação

para publicação. Alguns meses depois, esta mesma pessoa gentil-

mente me lembrou e convidei Valdemar Wesz Junior, doutorando

no CPDA sob a orientação do meu colega Sérgio Leite, para escre-

ver o artigo comigo. Wesz havia expressado interesse em completar

33 Curiosamente, descobri depois que Hans Joas fora supervisor de Jens Beckert,

que me aceitou no Max Planck em 2017, e há muito tempo vem sendo influência

fundamental na minha pesquisa e ensino em sociologia.

100JOHN WILKINSON

um ano sanduíche na Itália, e eu o coloquei em contato com meu

colega de pesquisa de muitos anos atrás, Roberto Fanfani, em

Bolonha. De fato, mantivemos contato no decorrer dos anos, espe-

cialmente durante o período de Vittorio Marrama, e eu fui convi-

dado como palestrante numa reunião que Fanfani organizara para

lançar uma publicação sobre o perfil da agroindústria da região

de Bolonha. Ele também participara da reunião de biotecnologia

organizada por Maria Fonte e Pascal Byé em Roma, em 1992. Por

intermédio de Roberto Fanfani, fui convidado a ser integrante do

Conselho Editorial da Rivista Economia Agro-alimentare pelo seu

editor-chefe Maurizio Canavari.

Valdemar Wesz Junior aceitou o convite e rapidamente redi-

gimos um artigo útil comparando as trajetórias de longo prazo do

Brasil e China e suas relações de agronegócio num artigo intitulado

“Underlying Issues in the Emergence of China and Brazil as Major

Players in the New South-South Trade and Investment Axis”, que foi

publicado no International Journal of Technology Management and

Sustainable Development, em setembro de 2013.34

Naquele ano, a Initiativa BRICS para Estudos Agrários

Críticos, (Bicas), uma rede de pesquisadores sobre questões agrí-

colas dentro da estrutura dos países Brics, fez uma convocação

para uma concorrência por pequenas subvenções, e preparei uma

proposta juntamente com Wesz Jr. e com Anna Lopane, aluna de

34 Em novembro de 2014, fui palestrante convidado nos Diálogos de Inovação:

Brasil-China, organizado pelo Ibrach no Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro. Em

2015, fui convidado para fazer uma apresentação no Seminário Internacional so-

bre China, organizado pelo Ibase no Rio de Janeiro.

101JOHN WILKINSON

mestrado sob minha orientação no CPDA35. Conseguimos uma

premiação que nos deu ânimo para preparar uma avaliação mais

analítica das relações Brasil-China. Identificamos quatro estraté-

gias principais na relação da China com o Brasil e, particularmente,

com o seu complexo de soja. A China afrouxara seletivamente as

suas políticas de autossuficiência e havia tomado a decisão de

depender das importações de soja na rápida transição para uma

dieta urbana com proteína animal. Ao mesmo tempo, o governo

chinês queria beneficiar a soja na China. A partir de

,

2003, a produ-

ção brasileira de soja expandiu rapidamente, como também a por-

centagem das suas exportações, então direcionados maciçamente

para a China. A insistência em exportações na forma de grãos au-

mentou a flexibilidade da China com respeito à sua demanda, seja

por óleos ou ração. Ainda assim, a China estava criando uma situa-

ção de dependência com relação a um ingrediente-chave das novas

tendências alimentares.

Ao analisar a presença da China no Brasil e nos países do

Cone Sul, identificamos uma estratégia inicial de adquirir terras

para o controle direto da produção de soja. Estas tentativas e as de

outros atores privados neste e em outros setores levaram os gover-

nos do Brasil e Argentina a reativarem controles sobre compras de

terras por estrangeiros, que estavam se tornando uma questão de

preocupação global, batizada como landgrabbing. Uma segunda

estratégia visava assegurar contratos de longo prazo com governos

35 A supervisão da Anna Lopane me trouxe de volta ao setor pesqueiro. Ela es-

creveu uma excelente dissertação, “Bacalhau no Brasil: um mercado sob o im-

pacto da globalização” (2014), que combinava a análise das dinâmicas de consu-

mo com uma abordagem CGV, e que também incluiu uma discussão original da

crescente influência da China neste mercado.

102JOHN WILKINSON

estaduais para a aquisição de grandes parcelas da safra de soja, mas

foi também frustrada. Uma estratégia mais indireta foi investir em

infraestrutura de transportes e portos, o que facilitaria a expan-

são contínua da produção e baixaria os custos. A estratégia final,

que parece estar avançando satisfatoriamente, era expandir o seu

controle direto sobre a cadeia de produção de soja ao celebrar pré-

-contratos com os sojicultores (originating) e desafiar frontalmente

os quatro maiores traders globais: Archer Daniel Midland (ADM),

Bunge, Cargill e Dreyfus (o grupo ABCD), principalmente por meio

de seu trader estatal, a Cofco, cuja parcela da cadeia de soja agora

a posiciona no patamar dos líderes. A aquisição da Syngenta pela

China Chem, outra empresa estatal, confere à China uma posi-

ção decisiva também no setor a montante na cadeia. Nosso artigo,

“Brazil and China, the Agribusiness Connection em the Southern

Cone Context”, foi publicado em 2016, na recém -lançada revis-

ta Third World Thematics, e depois foi escolhido para publicação

como capítulo em Rural Transformations and Agrofood Systems,

B.M. McKay, R. Hall e Juan Liu (eds.), Routledge, 2018.

Em 2016, aceitei Fabiano Escher para um pós- doutorado no

CPDA. Eu já havia participado tanto na qualificação como na banca

final do seu doutorado, orientado por Sérgio Schneider, no PGDR,

em Porto Alegre. Sua tese continha uma ousada comparação dos

sistemas agroalimentares do Brasil e da China, dentro de uma pers-

pectiva de regime alimentar e polanyiana. Escher havia passado

um ano sanduíche na China e consegui incluí -lo na Rede Brasil-

China Network, coordenada por Anna Jaguaribe, com uma bolsa

de um ano de duração que, infelizmente, não pode ser renovada.

Durante aquele ano, realizamos pesquisa de campo sobre a pre-

sença chinesa na soja brasileira e contribuímos com um capítulo,

103JOHN WILKINSON

“Causas e implicações dos investimentos chineses no agronegó-

cio brasileiro”, para o livro Direction of Chinese Global Investments

and Implications for Brazil, 2018, organizado por Anna Juaguaribe.

Além disto, Fabiano Escher apresentou o nosso trabalho na 4a

Conferência Bicas, em Moscou, e eu o apresentei em Berlim, em

2018, na 8a Conferência Anual de Economia Política. Também fiz

uma exposição separada na Universidade Friedrich-Schiller, Jena,

Alemanha, sobre “Brazil China Relations through the Lens of the

Soy Economy”, em novembro de 2017.

Uma questão-chave por trás da expansão da economia de

biocombustíveis, dos investimentos globais chineses no agroali-

mento e dos movimentos de preços para commodities agrícolas na

esteira da crise financeira global, foi a identificação do que parecia

ser um salto em novos tipos de investimentos fundiários, batizados

pela ONG Grain com o termo landgrabbing, e que rapidamente se

tornaram objeto de monitoramento e debate. Dedicamos um capí-

tulo a esta questão no HLPE, “Biofuels and Food Security Report”,

que oferece um panorama detalhado da literatura e dos debates.

Envolvi -me pela primeira vez com esta temática quando fui

convidado, em 2010, para produzir um estudo sobre landgrabbing

no Brasil, para uma pesquisa que estava sendo desenvolvida pela

FAO América Latina, à época liderada por Graziano da Silva. A FAO

havia pesquisado landgrabbing na África à luz dos debates provo-

cados por este tema, com a coordenação de Lorenzo Cotelo et al.,

em 2009, e que depois revisamos no Relatório de Biocombustíveis

e Segurança Alimentar HLPE 2013. O objetivo principal era ava-

liar até que ponto as mesmas tendências poderiam ser observadas

nos países da América Latina e Caribe. Cerca de 17 relatórios por

país foram contratados e, para a FAO, isto marcou um retorno às

104JOHN WILKINSON

questões de propriedade de terra que não haviam sido investigadas

com seriedade desde os estudos históricos do Cida, nos anos 1960

e 1970, coordenados por Solon Barraclough.

Convidei Bastiaan Reydon, perito em questões agrárias na

Universidade de Campinas, e Alberto di Sabbato, da Universidade

Federal Fluminense, perito em dados dos censos agrários que tam-

bém trabalhara com Carlos Guanzirolli na promoção do Pronaf nos

anos 1990, para se juntarem a mim neste projeto. Durante o pro-

jeto, também aproveitamos os conhecimentos de Rudi Rocha, que

havia trabalhado comigo na pesquisa nas empresas de processa-

mento de alimentos em países em desenvolvimento, para destrin-

char os dados do Banco Central sobre investimentos estrangeiros.

Os termos da pesquisa foram discutidos a fundo e os resultados

debatidos em reuniões dos líderes das equipes em Santiago. Nas

etapas finais da pesquisa, peritos também foram convidados para

discutir os Relatórios, e entre estes estavam David Goodman e Jun

Borras, editor chefe do Journal of Peasant Studies e um intelectual

orgânico líder no Movimento Via Campesina. Numa etapa poste-

rior, Jun seria um personagem central da organização e publicação

dos resultados.

Nestas discussões, o conceito de landgrabbing foi sujeito a

um intenso debate e foi decidido que deveríamos considerar as

tendências mais amplas de transformações agrárias envolvendo

concentração fundiária, padrões regionais de investimento fundi-

ário, os diferentes tipos de atores envolvidos e os possíveis impac-

tos de novos investimentos na terra e na agricultura, seja de uma

perspectiva produtiva ou ambiental. A FAO, neste período, esta-

va ativamente envolvida em estabelecer os termos para a adoção

de Diretrizes Voluntárias para Investimentos Fundiários a serem

105JOHN WILKINSON

negociados com atores privados e Instituições Internacionais de

Desenvolvimento e Financiamento. Iríamos também tratar de for-

ma detalhada destas questões e iniciativas similares no Relatório

HLPE sobre Biocombustíveis.

Nosso relatório para a FAO tratou sistematicamente da histó-

ria das relações agrárias no Brasil, da evolução de políticas públicas

e da consolidação da estrutura jurídica e institucional governando

transações imobiliárias. Realizou uma análise detalhada das dife-

rentes fontes de informação sobre concentração fundiária (Incra,

IBGE), e investimentos (Registros de Imóveis, dados do Banco

Central). Uma tipologia de investimentos baseados em fatores-cha-

ve de motivação foi elaborada, na qual distinguimos: 1) investimen-

tos fundiários para expandir a produção dentro do mesmo setor; 2)

investimentos para diversificar em direção a atividades agrícolas

sinergéticas; 3) investimentos em commodities agrícolas não tra-

dicionais, especialmente biocombustíveis; 4) firmas

,

agrícolas es-

pecializadas que transformam terras de fronteira em propriedades

agrícolas; 5) investimentos fundiários por parte de Estados sobe-

ranos ricos em capital, mas pobres em recursos; 6) investimentos/

Fundos Especulativos baseados em pensões e/ou capital privado;

7) investimentos visando aos serviços ambientais. Esta tipologia foi

complementada por um relato detalhado das tendências de inves-

timento nos principais setores de commodities agrícolas – cana-de-

açúcar/álcool; soja; madeira; pecuária; e outras atividades.

Nosso relatório foi traduzido para o espanhol e publicado

como capítulo na publicação FAO, Dinamica del Mercado de la

Tierra en America Latina y el Caribe – concentración y estranjeri-

zación, organizado por Fernando Soto Baquero e Sergio Gomez,

em 2012. Fui convidado depois por Jun Borras para ser parte de

106JOHN WILKINSON

uma equipe editorial, juntamente com Cristobal Kay e Sergio

Gomes, que produziria um número especial do Canadian Journal

of Development Studies, v. 33, n. 4, 2012. Fizemos uma seleção

dos relatórios da FAO, solicitamos artigos baseados nos relatórios

em inglês, revisamos o inglês e organizamos os textos. Além dis-

to, escrevemos uma versão resumida do nosso Relatório em inglês

para inclusão no Journal. O artigo introdutório foi escrito conjun-

tamente por Jun Borras, Cristobal Kay, Sergio Gomes e por mim:

“Landgrabbing and Global Capitalist Accumulation – key features

in Latin America”, que até agora recebeu 4.266 visualizações e 91

citações. Nosso artigo foi publicado com o título “Concentration

and Foreign Ownership of Land in Brazil in the Context of Global

Landgrabbing”, por mim, Bastiaan Reydon e Alberto Di Sabbato, e

até o presente já recebeu 232 citações36.

Em 2012, eu e minha colega Debora Lerrer, recentemente

contratada para o CPDA à época, preparamos uma proposta para

a Land Deal Politics Initiative (LDPI), que foi aprovada, e desen-

volvemos uma pesquisa dos investimentos fundiários estrangeiros

no Brasil no setor florestal e papeleiro, focalizando o líder global

sueco-finlandês Stora Enso, nos estados da Bahia e Rio Grande do

Sul. De acordo com algumas interpretações, investimentos estran-

geiros neste setor, especialmente em regiões de fronteira, foram

também um fator importante na reativação por parte do Governo

36 Em novembro de 2015, fui convidado a falar sobre este tema no III Seminario

Internacional “Cambio Agrario en America Latina: procesos comparados”, IDEAS

I UNSAM, Buenos Aires, Argentina. No ano seguinte, fui palestrante no Taller

“(Neo)Extractivismo en America Latina. Posibilidades, Limites y riesgos, discu-

tindo este tema no contexto da expansão do setor de cana-de-açúcar/etanol no

Brasil. UBA. 31/03-01/04/2016. Argentina.

107JOHN WILKINSON

brasileiro de medidas para controlar investimentos imobiliários

estrangeiros. O trabalho de campo de Debora ofereceu rico mate-

rial sobre os conflitos sociais e os movimentos de oposição provo-

cados pelos investimentos da Stora Enso. Nossa pesquisa também

mostrou a importância de identificar e trabalhar os conflitos e as

oposições dentro do aparato estatal nas instâncias locais, estaduais

e federal, o que significa que mesmo as mais poderosas transnacio-

nais nem sempre podem alcançar apoio automático nos diferentes

níveis do aparato estatal. Nossa pesquisa foi originalmente publi-

cada em inglês pelo Land Deal Politics Initiative (LDPI) em colabo-

ração com o Institute of Social Studies (ISS), em Haia, e o Institute

of Development Studies, na Universidade de Sussex, em 2013. Uma

versão revisada em português foi publicada posteriormente na

Revista do CPDA, Estudos Sociedade e Agricultura, em 2016.

Já mencionei que um dos meus arrependimentos foi não

ter publicado o estudo do setor de carnes que escrevi quando

coordenava o segmento de agroindústria da pesquisa de 1994,

Competitividade da indústria brasileira, realizado pela rede con-

junta de Campinas/UFRJ. A pesquisa que eu havia feito anterior-

mente sobre contratos de integração também tratou do então

emergente setor de carnes brancas. Dois anos após completar este

estudo, Paulo Tigre, do Instituto de Economia/UFRJ, me convi-

dou a reunir uma equipe para com ele estudar a indústria de car-

nes de uma perspectiva mais tecnológica, para o Senai. Convidei

meus alunos Fabio Ramos, Francisco Sarmento, e meu colabora-

dor no setor de processamento de alimentos, Rudi Rocha. Juntos

108JOHN WILKINSON

realizamos a pesquisa, que envolveu uma reunião interessante com

Mario Batalha37 que, à época, estava desenvolvendo um intenso

programa de estudos do sistema agroalimentar, usando o foco da

cadeia agroalimentar com uma orientação nos custos de transação,

na Universidade Federal de São Carlos, São Paulo. O nosso estudo

foi publicado pelo Senai, Série Estudos, Brasília, em 2006 como A

indústria de carnes no Brasil: dinâmica econômica e tecnológica,

organizado por Paulo Tigre. Em outubro de 2008-10, na pesquisa

do PIB-Brasil, mencionado acima, cujo componente agroindustrial

eu de novo coordenei, o trabalho de campo para o estudo de carnes

foi conduzido por Gessuir Pigatto (Unesp), que fez um excelente

trabalho e atualizou todas as informações sobre fusões e aquisições

de empresas.

O setor de carnes, particularmente carnes vermelhas, vem

sendo indissociavelmente vinculado a todos os debates centrais

deste período, seja com landgrabbing, China, a extensão da fronteira

agrícola no Brasil, mudança climática ou a ameaça à Amazônia. Ao

mesmo tempo, o crescimento da indústria de carnes vermelhas no

Brasil no período recente tem sido um fenômeno marcante, com

empresas familiares regionais passando a ser players globais num

espaço de duas gerações. Políticas para a consolidação da com-

petitividade internacional de setores estratégicos receberam alta

prioridade na Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP) do

37 Mario Batalha convidou -me para integrar as bancas de diversas das disser-

tações e teses de alunos seus, e foi também em São Carlos que conheci Roberto

Grun, um dos sociólogos econômicos mais criativos do Brasil e que coordenou

o primeiro grupo de Sociologia Econômica nas reuniões da Anpocs, cujos in-

tegrantes incluíram, além de mim, Ricardo Abramovay e Cécile Raud-Mattedi,

tristemente falecido.

109JOHN WILKINSON

Governo Federal para 2008, e o BNDES passou a ser o instrumento

principal para promover a competitividade das empresas líderes

nestes setores. Em 2014, fui convidado por David Kupfer, que havia

coordenado o estudo do PIB, para realizar um estudo da megaem-

presa frigorífica JBS,38 e para avaliar a contribuição do BNDES via

BNDES-Par, sua divisão de investimentos. Esta foi uma oportuni-

dade notável para mim, e realizei longas entrevistas com ambos os

presidentes e a maioria dos diretores da JBS. Visitei a maior instala-

ção frigorífica da América Latina, com capacidade de abate de dois

mil animais por dia e me reuni com líderes de associações de pecu-

aristas, outras empresas de destaque no setor e com representantes

da Embrapa dedicados ao setor de carnes.

A rápida concentração da indústria de carnes vermelhas,

que levou ao fechamento em grande escala de abatedouros lo-

cais e regionais, era amplamente condenada, especialmente por

pecuaristas que se sentiam ameaçados pelo controle de um mo-

nopólio. No entanto, à luz da nossa análise anterior sobre o pa-

pel hegemônico do varejo de grande escala, não estava claro para

mim que a indústria iria poder facilmente transformar esta con-

centração em poder econômico numa redução de preços aos pe-

cuaristas. A demanda de exportação estava aumentando em 25%

ao ano no período anterior à crise financeira global e a demanda

doméstica estava em alta como resultado das políticas redistribu-

tivas do Governo Lula. Do lado positivo, uma consequência desta

concentração foi uma queda brusca nos

,

abatedouros clandestinos

38 Paulo Tigre, integrante da rede de pesquisas IE-Unicamp/IE-UFRJ, que havia

me convidado para trabalhar com ele no estudo de carnes do Senai, também foi

convidado para estudar a empresa Totvs ao mesmo tempo.

110JOHN WILKINSON

com pouca ou nenhuma fiscalização. Um segundo resultado posi-

tivo foi um aumento na capacidade de monitorar a origem do gado,

e o diretor de sustentabilidade da JBS, que anteriormente fizera

parte do mundo das ONGs, havia implementado um sistema de

compras que automaticamente excluía fornecedores que tinham

problemas com a Funai, Incra e Ibama. Eu, há muito tempo, vinha

sendo favorável à apropriação “doméstica” do “valor agregado” nas

cadeias agroalimentares e, desde meu envolvimento com a pes-

quisa “Competitividade da Indústria Brasileira”, em 1994, apoiava

o fortalecimento de atores domésticos como alternativa à transna-

cionalização, além de ser também favorável à internacionalização

das principais empresas brasileiras.

O apoio dado pelo BNDES à JBS e a todo o setor de carnes

me parecia perfeitamente coerente e alinhado com a política do

Governo Federal. O apoio específico oferecido pelo BNDES-Par

para a internacionalização da JBS no mercado dos Estados Unidos

ocorreu num momento em que a empresa havia recentemente ad-

quirido capital na Bolsa de Valores através de uma IPO, e era alta-

mente improvável que financiamentos mais significativos pudes-

sem ser obtidos desta forma. A avaliação do desempenho da JBS

nas suas plantas adquiridas há pouco tempo nos Estados Unidos

era também bastante positiva, permitindo que a empresa aboca-

nhasse uma fatia decisiva do mercado estadunidense do qual fora

tradicionalmente excluída, e tivesse acesso a outros mercados, par-

ticularmente no Pacífico, que eram fechados ao mercado brasileiro.

Dois setores agroalimentares sofreram pesadamente no Brasil com

a crise financeira global – o setor de cana-de-açúcar/álcool e o setor

de carnes –, e nos anos posteriores à crise o BNDES foi decisivo em

reestruturar a competitividade do segundo setor.

111JOHN WILKINSON

Hoje, encaro a indústria de carnes não sob a perspectiva da

competitividade nacional (a JBS posteriormente tentaria estabele-

cer a sua sede na Irlanda e amanhã poderia bem ser adquirida pelo

capital estrangeiro), mas com foco no consumo e saúde, bem-estar

animal e o meio ambiente/mudança climática. Com base em to-

dos estes critérios, a prioridade parece ser uma redução radical do

consumo de proteína animal.39

Em 2015, fui convidado a participar do seminário organiza-

do por Gilles Allaire e Benoit Daviron, para celebrar o 20o aniver-

sário de publicação do livro La Grande Transformation, que tanto

me impressionara no meu tempo de doutorado na França no ano

de sua publicação, em 1995. Não me foi possível participar, mas fui

convidado a escrever um capítulo no livro dos anais deste semi-

nário. Discuti a proposta com David Goodman e decidimos que

era uma boa oportunidade para sistematizar a visão crítica que

havíamos desenvolvido sobre a teoria dos “regimes alimentares”,

associada acima de tudo ao trabalho de Phil McMichael e Harriet

Friedmann que tinha servido como referência para toda a comu-

nidade de estudos rurais com “orientação de economia política”.

Isto coincidiu com um semestre em que eu estava ministrando

39 Retrospectivamente, penso que minha tendência, conforme já mencionado,

de usar um chapéu de “economia política” ao analisar as tendências dominantes,

deixando meu chapéu de “sociologia econômica” para os mercados de qualidade

especial, cegou -me quanto aos efeitos da acumulação rápido de capital de em-

presas que são essencialmente empreendimentos familiares, os quais, mesmo

quando lançados na Bolsa de Valores, ainda mantêm sua participação majoritá-

ria. Neste contexto, os investimentos, o valor acionário da firma e a riqueza patri-

monial não são facilmente separados, apesar de todos os riscos que isto implica.

A mistura perniciosa e promíscua dos interesses do setor privado, do Executivo,

e do Legislativo, que informam a política industrial no Brasil agravam ainda mais

essas ambiguidades.

112JOHN WILKINSON

uma disciplina em história econômica no âmbito de graduação, e

aproveitei a oportunidade para mergulhar nos debates da “grande

divergência”, associada ao trabalho de Kenneth Pomeranz e ou-

tros. Ao mesmo tempo, voltamos aos nossos estudos da agricultura

europeia, que havíamos investigado anos atrás para From Farming

to Biotechnology. Os resultados foram publicados primeiro como

um capítulo em Transformations Agricoles et Agroalimentaires: en-

tre ecologie et capitalisme, em 2017, e depois numa versão estendi-

da para publicação em inglês em Ecology, Capitalism and the New

Agricultural Economy: the second great transformation, que apare-

ceu em 2018.

O cerne do nosso argumento era que a estrutura de regimes

alimentares fora focada com demasiada exclusividade numa po-

larização simplificada Norte-Sul, em que o Norte fora identificado

com os Estados Unidos e suas empresas alimentares transnacionais.

Argumentamos que, na Ásia, o Japão vinha desenvolvendo seu pró-

prio regime alimentar desde o final do século XIX. Argumentamos

ademais que a resposta do continente europeu ao mercado mun-

dial de commodities agrícolas que emergiu no século XIX, após um

rápido flerte com o livre comércio, foi caracterizada fundamental-

mente pelo protecionismo e uma defesa da agricultura familiar e

do desenvolvimento local/regional/rural. Esta orientação persis-

tiria na Política Agrícola Comum (PAC), após a Segunda Guerra

Mundial, e ajuda a explicar a força de movimentos e políticas opos-

tas ao modelo agroalimentar “dominante”, que são difíceis de en-

tender dentro da visão de “regimes alimentares”. No período mais

recente, as economias emergentes, particularmente a China, não

só reorientaram o comércio e investimento para um eixo Sul-Sul,

como também geraram as suas próprias transnacionais que estão

113JOHN WILKINSON

em posição para confrontar os atuais líderes do sistema alimentar

internacional. Um entendimento dos desdobramentos atuais, ar-

gumentamos, exigirá uma apreciação mais pluralista dos regimes

alimentares desde a segunda metade do século XIX.40

Ao final de 2016, Luciano Coutinho, João Carlos Ferraz, David

Kupfer e a maior parte da equipe de pesquisas IE/Campinas e IE/

UFRJ que estivera em ação periodicamente desde 1993-1994, inicia-

ram um grande projeto de pesquisa financiado pela Confederação

Nacional da Indútria, (CNI) sob minha coordenação mais uma vez

do segmento da agroindústria e, especialmente, da indústria ali-

mentar.41 Esta pesquisa foi intitulada “Projeto Indústria 2027. Riscos

e Oportunidades para o Brasil,diante de Inovações Disruptivas” e

inspirou -se em relatórios da Alemanha, dos Estados Unidos e da

China, todos vislumbrando uma nova revolução industrial no hori-

zonte. Dado o foco na indústria alimentar, tanto globalmente como

no Brasil, e a necessidade de trabalhar com tabulações especiais

de dados da Pesquisa de Inovação, (Pintec), do Instituto Brasileiro

de Geografia e Estatística, (IBGE), o levantamento de inovação

40 Em 2016, fui convidado por Sérgio Schneider e Paulo Niederle para palestrar

sobre este tema aos alunos e colegas do PGDR, Porto Alegre, o que gerou uma

animada discussão.

41 O que a posteriori parece ter sido uma preparação para esta pesquisa, fui pales-

trante convidado para o Seminário “La tierra para quien se conecta? Agricultura e

Digitalización en América Latina y el Caribe, na Argentina, em setembro de 2016,

organizado conjuntamente pela Friedrich Ebert Stiftung e Nueva Sociedad, onde

discorri sobre o tema da agenda para o desenvolvimento tecnológico da agri-

cultura latino-americana. Foi então que me encontrei outra vez com José Maria

Silveira (Unicamp), especialista na indústria de sem*ntes e produtos químicos

,

e mais geralmente na inovação e tecnologia, que me convidaria em 2018 ao

Sober, organizado em Campinas, onde pude apresentar os resultados do Projeto

Indústria 2027.

114JOHN WILKINSON

brasileira que usava a mesma metodologia do Levantamento de

Inovação na União Europeia, sobre o qual ela já trabalhara, convi-

dei mais uma vez Ruth Rama a trabalhar comigo nesta pesquisa.42

Além disto, já havia protocolado um pedido para uma segunda li-

cença de pós- doutorado no Instituto Max Planck para Estudos em

Sociedades (MPIfG), em Colônia, Alemanha, a partir da segunda

metade de 2017, para trabalhar na contribuição da Alemanha à so-

ciologia econômica, e não queria atrasar a minha licença.

Esta foi uma pesquisa interessantíssima para se trabalhar,

pois me levou de volta a minha/nossa preocupação original com

a natureza da inovação no sistema agroalimentar e, em particular,

me permitiu reavaliar as relações entre biotecnologia e informática

que eu debatera primeiramente com Raul Green nos anos 1980 e,

desde então, periodicamente, com David Goodman e comigo mes-

mo. A rastreabilidade sempre foi uma questão crucial nos debates

sobre a qualidade dos alimentos e isto levou a uma crescente incor-

poração da informática em todas as etapas da cadeia de produção-

consumo. Numa visita à IG de queijo “Parmigiano Reggiano”, na

Itália, fiquei impressionado com o grau em que a tecnologia da in-

formação fora incorporada ao controle deste sistema de produção

“artesanal”. Em 2011, Ruth Rama e eu fomos convidados por Mônica

Rodrigues, ex-aluna de Ana Celia Castro e agora pesquisadora na

Ecla/Cepal, para realizar uma pesquisa sobre a adoção e difusão de

tecnologia da informação na agricultura latino-americana. Nossa

42 Ruth Rama é uma pesquisadora proeminente da indústria alimentar e,

enquanto para a maioria dos analistas a indústria alimentar é considerada, jun-

tamente com outros setores, “tradicional”, o seu trabalho tem demonstrado o seu

papel-chave como usuária de inovações e como local para a aplicação de inova-

ções vindas de um amplo leque de fontes de ciência e tecnologia.

115JOHN WILKINSON

pesquisa resultou num capítulo, “ICT Adoption and Diffusion

Patterns in Latin American Agriculture”, no volume Information

and Communication Technologies for Agricultural Development in

Latin America (2011). Tirei duas conclusões desta pesquisa: que

o telefone celular estava transformando o acesso dos agricultores

às informações e aos mercados, e que a Tecnologia da Informação

estava dando aos agricultores em grande escala um conhecimento

íntimo das suas megapropriedades, que anteriormente fora uma

vantagem decisiva dos pequenos agricultores na forma de conheci-

mento tácito e experiência prática.

A meta do “Projeto Indústria 2027” era produzir avalia-

ções de curto e médio prazo sobre a adoção e difusão de oito

grupos de tecnologias “disruptivas”: a Internet das Coisas (IoT),

Produção Inteligente, Inteligência Artificial, Tecnologia de

Redes, Biotecnologia, Nanotecnologia, Materiais Avançados e

Armazenamento de Energia. Curiosamente, todas estas tecnolo-

gias estavam sendo estudadas pelo Programa Fast da Comissão

Europeia na qual trabalhei em 1986-7, com a ausência da Internet

das Coisas, ou mesmo de qualquer internet. Estas tecnologias se-

riam estudadas com relação a dez sistemas industriais, cada um

com um foco setorial especial. No nosso caso: a agroindústria e a

indústria de produtos alimentícios. Foram contratados relatórios

com especialistas em todos os oito grupos como insumos para

orientar a nossa análise industrial.

Nosso relatório foi publicado on-line, como um volume se-

parado, e pode ser acessado, assim como os outros estudos, no site

http://www.portaldaindustria.com.br/cni/canais/industria-2027/siste-

mas-produtivos/, em Publicações – Estudo do Sistema Produtivo:

Agroindústrias, Brasília, 2018. O estudo envolveu uma análise

http://www.portaldaindustria.com.br/cni/canais/industria-2027/sistemas-produtivos/

http://www.portaldaindustria.com.br/cni/canais/industria-2027/sistemas-produtivos/

116JOHN WILKINSON

detalhada dos dados Pintec brasileiros; entrevistas com os atores

principais – players estabelecidos, novas firmas agrotec e grupos

de agricultores pioneiros na adoção de tecnologias; uma revisão da

literatura acadêmica brasileira e internacional; periódicos especia-

listas, sites e literatura cinzenta.

O trabalho nesta pesquisa tem me levado a uma série de con-

clusões (sempre provisórias e abertas à qualificação ou mesmo

contradição), que certamente beneficiarão estudos posteriores nos

anos vindouros. Em primeiro lugar, passei a ter a convicção de que

uma revolução, ou talvez uma série de revoluções complementares/

contraditórias/sobrepostas, está de fato em andamento no sistema

agroalimentar global. Como corolário, creio que o Brasil está mal

posicionado para se beneficiar destas transformações porque ainda

é muito rico em todo tipo de recursos naturais, e atualmente o que

impulsiona as inovações em alimentos é a sua percebida escassez.

Em termos do debate tecnológico, há claramente uma onda de

inovação envolvendo a biotecnologia, que reúne a biologia sintética

e a nanotecnologia, que hoje está baseada em técnicas radicalmen-

te mais baratas e mais direcionadas para manipular o genoma, tais

como a técnica de edição de genes, CRISPR (cas9), de uma forma

que muitas vezes pode contornar a necessidade de incorporação

de genes exógenos. Estes avanços, por outro lado, foram possibi-

litados pelo desenvolvimento de análises de grandes volumes de

dados (Big Data Analytics) com base em algoritmos que envolvem

aprendizado com máquinas e inteligência artificial. Neste sentido,

as biotecnologias ficaram mais assimiladas aos sistemas de infor-

mação e deixaram de ter uma existência separada.

Na nossa análise, desenvolvida em From Farming to

Biotechnology, a natureza como sistema biológico foi identificada

117JOHN WILKINSON

como o desafio central aos avanços tecnológicos no sistema agroa-

limentar. A dinâmica de inovação, portanto, foi vista da perspectiva

de atores que lidam diretamente com os mecanismos biológicos.

De um ponto de vista bastante esquemático, as recentes inovações

no sistema agroalimentar podem ser divididas em três fases. Na

primeira, o sistema público de pesquisa agropecuária foi o prin-

cipal propulsor, com base na inovação genética de variedades de

sem*ntes que respondiam rapidamente a insumos hídricos e quí-

micos, e que inauguraram a “Revolução Verde”. A segunda fase

também tinha na genética o seu eixo, mas foi liderada a montante

pelas empresas privadas de sem*ntes e produtos químicos com a

introdução de sem*ntes OGM em sinergia com novos sistemas de

produção (plantio direto). Hoje, estamos vendo uma nova onda de

inovação agroalimentar, mas agora promovida por atores urbanos

do estilo Vale do Silício, apoiados por capital de risco, cujo progra-

ma de pesquisa não está mais baseado no agro, mas exclusivamen-

te no alimento e, mais especificamente, nos desafios postos pelo

alimento num contexto global urbano. Tais atores são uma exten-

são da comunidade de informática, e suas tecnologias preferidas

são Big Data, algoritmos, aprendizado com máquinas, inteligência

artificial e sistemas de distribuição baseados em protocolos de con-

fiança (blockchain). O biomundo passa a ser parte deste universo e,

nesta perspectiva, fica cada vez mais possível pensar no contexto

urbano como o ambiente “natural” para a produção de alimentos.

Sistemas alimentares de circuito curto e locais passam a ser vistos

como uma alternativa ao sistema agroalimentar dominante basea-

do em cadeias globais de valor. Atualmente é possível vê -los sendo

reproduzidos cada vez mais no contexto urbano.

118JOHN WILKINSON

A internet e aplicativos de smartphone subvertem muitos dos

sistemas de produção e de distribuição que mantinham

,

os atores

tradicionais sob controle e confirmam a fragilidade da indústria ali-

mentar que já havíamos identificado no nosso artigo sobre a indús-

tria alimentar publicada na Sociologia Ruralis em 2002. Em nossa

avaliação dos desdobramentos globais, identificamos o surgimen-

to de uma nova geração de empresas alimentares, cuja estratégia

tem sido desafiar diretamente o que agora está sendo chamados

de empresas alimentares “patrimoniais”, que têm dominado a in-

dústria alimentar há mais de cem anos. Mesmo quando as líderes

tradicionais reagem ao adquirir estas novas firmas, geralmente elas

são forçadas a manter a sua identidade e gestão separadamente.

Relações diretas entre uma miríade de novos atores que fornecem

e consomem os alimentos vão transformar o varejo em formas que

apenas agora estamos começando a discernir; e transformarão a

produção também, na medida em que as impressoras 3D se tornem

tão comuns quanto as micro-ondas e a energia alternativa viabilize

economicamente as novas iniciativas locais.

Se devemos contemplar isto como visão distópica ou utópica

é uma questão em aberto. O que não se dúvida é que as tendências

dominantes de inovação estejam indo nesta direção. Uma preo-

cupação central da agenda de inovação é a busca de alternativas

à dieta tradicional de proteína animal, alternativas que assumem

várias formas e recebem apoio da força inesperada das práticas de

consumo flexitarianas, vegetarianas e veganas. Globalmente, as

políticas públicas estão agora caminhando timidamente nesta di-

reção. Uma agenda de pesquisa inteiramente nova está se abrindo

nesta questão.

119JOHN WILKINSON

Na esteira do fenômeno landgrab e da identificação do papel

de liderança dos fundos de investimento e soberanos não tradicio-

nalmente ligados ao setor de agroalimentos, estes novos investi-

mentos em terras geralmente têm sido assimilados ao fenômeno

mais amplo de financeirização, que é visto como característico da

fase atual do desenvolvimento. Neste sentido, o caráter especula-

tivo dos investimentos fundiários em larga escala tem assumido o

primeiro plano. Embora não contestando esta linha de análise, nos-

sa pesquisa mostrou como a revolução da informática na agricultu-

ra está baixando radicalmente os custos e aumentando a eficiência

e produtividade das megapropriedades agrícolas. Estas não devem,

portanto, ser igualadas com as grandes propriedades empresariais

(bonanza farms) de outrora analisadas por Rosa Luxemburg, que

no contexto da grande crise no final do século XIX se mostraram

incapazes de competir com a propriedade agrícola familiar, como

tão bem analisado por Harriet Friedmann na sua tese de doutorado.

As megafazendas neste sentindo podem bem ser o novo “normal”

para a produção de commodities agrícolas, embora a apropriação

de novas fronteiras agrícolas tenha características tipicamente

especulativas.43

Apresentei esta tese numa forma mais hipotética primeira-

mente numa reunião do ISS, Haia, organizada por Oane Visser, em

2015, baseado em trabalho de campo realizado com Paulo Pereira

para a sua tese de doutorado sobre as implicações estratégicas e

43 Madeleine Fairbairn, aluna de Phil McMichael que passou pelo CPDA para

conversar quando do seu trabalho de campo doutoral, tem feito excelente traba-

lho neste tema. Ver “Like Gold with Yield – evolving intersections between farm-

land and finance”, Journal of Peasant Studies, v.. 41, issue 5, 2014, e Fields of Gold

(2020).

120JOHN WILKINSON

logísticas da expansão da fronteira da soja para o Norte do Brasil.

Este trabalho foi transformado em artigo e preparado para publi-

cação numa sessão especial de Agriculture and Human Values,

organizada por Jennifer Clapp, S. Ryan Isakson e Oane Visser. Na

última hora, decidi que o trabalho ainda não estava pronto para

publicação e apenas em 2018 reescrevemos o artigo, desta vez em

espanhol, agora como capítulo, “Soja Brasileña: nuevos patrones

de inversion y regulación”, para o livro El Fin de la Bonanza, organi-

zado por Martin Ramirez e Stefan Schmartz (Ed. Biblos, Sociedad,

Argentina), com versão em alemão publicada no outono de 2019.

Um trabalho final que preparei antes do meu período de pós-

doutorado na Alemanha, foi um capítulo de abertura, escrito em

inglês, mas traduzido para o alemão como “Der Trend zum Global

Player”, sobre a história do sistema agroalimentar, para uma publi-

cação estilo atlas, organizado pelo Rosa Luxemburg Stiftung, que

foi publicado em 2017, com uma edição em português aparecendo

em 2018, também incluindo o meu capítulo.

Embora tivesse que finalizar o meu trabalho no “Projeto

Indústria 2027”, durante minha estadia no Instituto Max Planck, em

Colônia, pude me dedicar quase que inteiramente ao trabalho sobre

sociologia econômica nesse Centro, que tem se tornado referência

global nesta área, especialmente depois que Jens Beckert assumiu

a direção em 2009. Livia Barbosa foi comigo e nos foram oferecidas

excelentes condições de trabalho, e ficamos absortos num ambien-

te intelectual estimulante. Além do meu próprio trabalho, partici-

pei nos seminários dos alunos de doutorado e nos seminários mais

amplos organizados regularmente no Centro. Já estava familiariza-

do com as literaturas anglo-saxônica e francesa e, embora muitos

acadêmicos alemães publicassem diretamente no inglês e fizessem

121JOHN WILKINSON

parte do debate global, senti que uma imersão no mundo acadêmi-

co alemão e suas pesquisas revelariam perspectivas e questões que

de outra forma não seriam evidentes. A língua alemã claramente

constituía barreira para mim. Nunca tivera quaisquer aulas formais

no alemão (tampouco no espanhol ou português, então, em prin-

cípio, isto não me preocupava), mas havia repetidamente tentado

estudar a língua e, embora tivesse alcançado alguns conhecimen-

tos básicos, nunca galgara o topo da montanha de onde tudo re-

pentinamente fica claro. Felizmente, o MPIfG oferecia um curso na

língua que acabou sendo de grande valia, assim, depois de algum

tempo, e com a ajuda do Google Translator, consegui confrontar o

alemão da literatura acadêmica na minha área.

Além da orientação oferecida por Jens Beckert, o contato com

Andreas Nölke (Universidade Goethe, Frankfurt), recomendado a

mim por Moisés Balestro, adepto da sociologia econômica e econo-

mia política na Universidade de Brasília, proveu -me um mapa ope-

racional da história da Associação Alemã de Sociologia Econômica.

Lisa Knoll (Universidade de Hamburg), figura destacada na sociolo-

gia econômica alemã e também proponente da teoria das conven-

ções, gentilmente convidou -me a participar na Conferência Anual

daquele ano, onde conheci algumas das personalidades centrais

cujas obras haveria de ler nos meses seguintes. Rapidamente pude

perceber como a discussão da financeirização havia se tornado um

assunto central.

Quase fui desviado da minha preocupação com a sociologia

econômica alemã depois de uma conversa ao jantar com Philippe

Steiner na ocasião de uma reunião no Maxpo, uma joint venture entre

122JOHN WILKINSON

o MPIfG e a Sciences Po, em Paris.44 Philippe Steiner é o Granovetter

e Swedberg da sociologia econômica francesa combinados em

uma só pessoa. Formado igualmente como economista e sociólo-

go, Philippe Steiner tem feito importantes contribuições originais

à sociologia econômica em muitos níveis e, ao mesmo tempo, atra-

vés do seu estudo panorâmico L´Économie Sociologique, traduzido

há muito tempo para o português, e seu Manual, organizado junta-

mente com François Vatin, Traité de Sociologie Économique (2009).

Tem sido convidado muitas vezes ao Brasil e nós o convidamos tam-

bém para ser o nosso palestrante principal no 7o Estudos Nacionais

de Consumo, (Enec), dedicado aos Mercados Contestados em

2014. Philippe Steiner acabara de organizar um livro sobre este

tema com Marie Trespeuch, embora eu não soubesse

,

disto no mo-

mento do nosso convite, e sua participação foi decisiva nas mui-

tas animadas sessões plenárias das quais desfrutamos neste Enec.

Posteriormente, produzimos um dossiê de textos deste Enec para

uma edição da Revista Antropolitica. Escrevi um artigo revisando a

literatura e debates sobre mercados contestados, que foi publicado

em inglês nesta revista simplesmente como “Contested Markets”.

Eu havia enviado uma versão preliminar deste artigo a Jens Beckert

44 Em 2015, fui membro do júri, convidado pelo Sciences Po, que concedeu

a Habilitation de se tornar diretor de Pesquisa a Ronan Le Velly (supervisora,

Sophie Dubuisson-Quellier), a quem conhecera numa visita anterior em 2012

ao Laboratório UMR, em Montpellier, onde ele trabalhava. O trabalho dele (ele

é especialista no Comércio Justo) é notável pela sua insistência na essencial hi-

bridez das redes/mercados/movimentos agroalimentares, posição que sempre

considerei fundamental, um contrapeso à polarização: alternativa x convencio-

nal muitas vezes encontrada na literatura. Em 2017 ele publicou Sociologie des

Systèmes Alimentaire Alternatifs (Presse des Mines), no qual desenvolve estes

argumentos.

123JOHN WILKINSON

para seus comentários e ele me encaminhou uma cópia adiantada

da introdução que ele e Matias Dewey haviam preparado para o seu

livro The Architecture of Illegal Markets. Este contato anterior pode

ter sido importante na aprovação do meu pedido subsequente de

passar um período de pós- doutorado no Max Planck.

Quando me encontrei com ele em Paris, Steiner mencionou

a coincidência de uma série de publicações recentes, quase todas

em 2017, por nomes de liderança na sociologia econômica: Luc

Boltanski, Michel Callon, Pierre Bourdieu (suas palestras de 1991)

e Marc Granovetter (seu livro Society and Economy foi anunciado

por 20 anos). No dia seguinte, comprei os três primeiros livros, bai-

xei uma versão em Kindle do livro de Granovetter e durante o mês

seguinte devorei os livros de Boltanski e Esquerre (647 páginas) e

Callon (498 páginas), pensando em talvez escrever uma resenha

comparativa.

Felizmente, reconheci a tempo como pareceria anômalo vol-

tar da Alemanha com um estudo de dois renomados sociólogos

econômicos franceses e, então, os coloquei, com os outros dois, em

segundo plano, e me voltei ao meu estudo da sociologia econômi-

ca alemã. Depois, Philippe Steiner me enviou sua própria resenha,

como sempre brilhante, destes autores e meu projeto saiu até de

segundo plano.

A minha sensação era de que a sociologia econômica ale-

mã era distinta em três aspectos fundamentais. Primeiramente,

ter as grandes obras clássicas da sociologia econômica de Marx

a Schumpeter via Weber, Simmel e Sombart em sua própria lín-

gua materna certamente informa o ponto de partida para pensar

as questões da sociologia econômica. Segundo, ao contrário dos

Estados Unidos, onde, a partir de meados dos anos 1960, a sociologia

124JOHN WILKINSON

em grande parte deu as costas ao parsonianismo, na Alemanha a

teoria de sistemas (Luhmann) e teorias desenvolvidas em diálogo

crítico com a teoria de sistemas (Habermas) continuaram e con-

tinuam centrais ao debate das Ciências Sociais e há uma sociolo-

gia econômica luhmanniana ativa na Alemanha (Baecker). E, em

terceiro lugar, a nova sociologia econômica emergiu na Alemanha

em diálogo ativo com uma “velha guarda” preexistente cuja socio-

logia econômica estava imersa nas obras clássicas de Marx, Weber,

Simmel e Schumpeter. De particular relevância aqui são as obras de

Hans Ganssman e Christoph Deutschmann.

Ao final da minha estadia no Max Planck concluí um estudo

intitulado An Overview of German New Economic Sociology que,

após receber comentário de uma ampla gama de acadêmicos e um

processo formal de revisão, foi publicado na Discussion Paper Series,

do Max Planck. O estudo cobre em algum detalhe, os autores, temas

e publicações da Nova Sociologia Econômica Alemã. Aqui, quero

salientar três tipos de contribuição que creio ser questões centrais

para a sociologia econômica. O primeiro tem a ver com debates

sobre o “núcleo duro” da sociologia econômica; o segundo, envol-

ve uma contribuição ao micro-macro, debate usando a teoria da

performatividade para demonstrar as implicações macro do dese-

nho político dos mecanismos de mercado; e, o terceiro, chama a

atenção a centralidade da financeirização na sociologia econômica

alemã da atualidade.

Em um dos seus primeiros artigos, Jens Beckert levantou a

pergunta, “o que é sociológico na nova sociologia econômica?”, e a

sua resposta foi apontar a centralidade da incerteza na ação econô-

mica e extrair as suas implicações sociológicas. Isto tem sido cru-

cial no pensamento de Beckert em toda a sua carreira e é questão

125JOHN WILKINSON

central no seu livro mais recente, Imagined Futures, que poderia

ser colocado ao lado do quarteto de proeminentes autores da NSE

mencionados anteriormente. Recentemente, em 2015, Jan Sparsam,

então na Universidade de Jena e agora na Universidade de Munich,

publicou a sua tese de doutorado, Wirtschaft em der New Economic

Sociology (Springer), na qual ele vira a pergunta do avesso e inda-

ga o que há de econômico na nova sociologia econômica. Ele exa-

mina as obras de Harrison White, Granovetter, Neil Fligstein e Jens

Beckert e argumenta que nenhum deles vai além da análise dos ele-

mentos fundamentais e influências que afetam a ação econômica

sem conseguir analisar a ação econômica em si como ação social.

Isto também é uma questão central para mim e algo que quero in-

vestigar mais, e é certamente uma das questões por trás da minha

preocupação com a relação entre sociologia econômica e econo-

mia política. Ao que parece, a sociologia econômica é mais forte

quando analisa a “construção social” dos mercados individuais e,

neste caso, a ação econômica é claramente indistinguível da ação

social. Todavia, quando vamos dos mercados individuais aos que

são interconectados, rapidamente nos deparamos com o “mercado

autorregulado” de Polanyi, e mais uma vez a sociologia econômica

parece ficar reduzida a um segundo momento, em que a ação social

é voltada à domesticação da ação econômica autônoma.

Benjamin Braun, pesquisador no Max Planck, tem feito con-

tribuições fundamentais ao debate micro-macro a partir de uma

perspectiva de performatividade à la Callon. Ele argumenta que,

numa visão de cima para baixo, a política leva a políticas que pas-

sam então a informar o perfil e dinâmica das instituições micro. Em

vez disto, de acordo com Braun, os mercados não devem ser vis-

tos como epifenômenos, mas como locais de política nos quais a

126JOHN WILKINSON

implementação exitosa de dispositivos do mercado (não só ideias)

define a dinâmica das próprias estruturas de mercado que dão for-

ma aos diferentes tipos do capitalismo. Ele estuda o caso das ino-

vações financeiras nos fundos de investimentos em índices e mos-

tra que somente quando as inovações neste setor possibilitaram o

rastreamento de índices financeiros com baixo custo, por parte dos

fundos de investimento, é que foi possível oferecer esta opção mais

segura de investimento a longo prazo. Depois que isto ficou pos-

sível, apareceu a figura do “investidor passivo” e, a partir daí, um

afastamento da dinâmica do capitalismo de “ativos gerenciados”.

Finalmente, qualquer panorama na Nova Sociologia

Econômica alemã se depara com uma enxurrada de estudos so-

bre dinheiro e financeirização. Estes estudos vão desde amplas

considerações teóricas sobre a natureza do crédito na sociedade

contemporânea, ao significado da união monetária entre Estados

soberanos – questão de interesse especial na União Europeia, a

financeirização dos orçamentos domésticos e vida cotidiana, pas-

sando à análise de moedas especiais no contexto do desenvolvi-

mento local/regional. Deutschmann, figura-chave da velha guarda,

,

desenvolveu uma ambiciosa análise da sociologia econômica que

vê a financeirização e a crise como consequências endógenas pro-

duzidas pelo longo boom pós- guerra. O aumento do descompasso

entre o crescimento de ativos privados e a falta de empreendedores

que demandam os ativos é interpretado como sendo consequência

de uma desaceleração da mobilidade estrutural e, com isto, da taxa

de inovação coletiva. O crescimento de fundos mútuos e de investi-

mento também tem um efeito negativo sobre a dinâmica inovadora

dos negócios. A análise de Deutschmann oferece um importante

complemento à gama de estudos mencionados anteriormente na

127JOHN WILKINSON

medida em que integra os níveis micro, meso e macro e também

liga a financeirização às transformações na dinâmica da estrutura

social.

De volta ao CPDA em 2018, reajustei a minha disciplina de

sociologia econômica para levar em conta as minhas leituras no

Max Planck, em Colônia, ao enfatizar agora a evolução dos sistemas

monetários na vida econômica. Impactado de forma similar pelas

minhas pesquisas com Ruth Rama sobre tecnologias disruptivas,

ministrei uma disciplina sobre Sistemas Alimentares Urbanos no

primeiro semestre de 2019.

PENSAMENTOS FINAIS

Permanecer na mesma instituição durante a maior parte

da carreira não é incomum e, de fato, tem sido o curso

normal no Brasil. Certamente tem perigos, mas a vida

acadêmica para mim no CPDA sempre possibilitou o envolvimento

com outras redes e em variadas formas de cooperação institucio-

nal, como fica claro no relato anterior. Em diferentes momentos, o

caminho poderia ter sido outro. Quase fui indicado para uma posi-

ção permanente na Comissão Europeia em meados dos anos 1980.

Naquele tempo, uma mudança para a Unicamp também foi aventa-

da. Em ocasiões distintas, fui convidado informalmente a me can-

didatar para posições na Ecla/Cepal e no Instituto de Agricultura

e Política de Comércio, IATP, mas declinei. Até me candidatei

para uma posição na Universidade de Wageningen, com a equi-

pe de Norman Long, mas durante a entrevista me vi defendendo

o Programa Brasileiro Proálcool de cana-de-açúcar/álcool contra

o que eu considerava visões exageradas do seu impacto negativo

sobre a agricultura camponesa, defesa esta que parece não ter sido

bem aceita. Qualquer que tenha sido a razão, não fui selecionado.

129JOHN WILKINSON

O CPDA sempre esteve antenado ao mundo, tanto no seu

ensino como nas suas atividades de pesquisa/consultoria, o que

tem oferecido um antídoto permanente aos perigos da rotinização.

Meu projeto acadêmico de longo prazo – de entender a dinâmica

do sistema agroalimentar global nas suas dimensões históricas,

atuais e futuras – também excluía a repetição tanto no ensino como

na pesquisa.

A perspectiva interdisciplinar de Ciências Sociais promovida

pelo CPDA combina perfeitamente com a minha formação socio-

lógica fundamentalmente preocupada com processos econômicos

amplos. A entrada no mundo da sociologia econômica me oportu-

nizou um apoio perfeito para esta dupla orientação, embora, como

tenho demonstrado, nunca consegui resolver o dilema micro-ma-

cro de forma que me satisfizesse, apesar de ter feito, penso, algumas

contribuições úteis nesta direção. A interdisciplinaridade numa

instituição dedicada à pesquisa aplicada oferece, creio, em geral,

um ambiente ideal tanto para o ensino como para a pesquisa.

Mas quando aprofundamos as nossas posições teóricas e

analíticas vem o desejo de fazer uma “contribuição” para os debates

que definem a subárea que escolhemos. Isto é muito difícil de levar

à frente em face dos compromissos diários com ensino, orientação,

administração e pesquisa, e, para mim, os períodos fora do CPDA

– seja no Programa Fast, na Comissão Europeia, no Inra, Paris, com

Raul Green, ou em Santa Cruz e Paris XIII, ou no Max Planck em

períodos de licença para o pós- doutorado – sempre foram decisi-

vos para a consolidação de avanços teóricos. O mais fundamental

de tudo foi talvez o mundo paralelo de pesquisas e debates que

David Goodman, Bernardo Sorj e eu habitamos durante diversos

anos para produzir From Farming to Biotechnology, quando as

130JOHN WILKINSON

demandas do CPDA, que possuía apenas um curso de mestrado à

época, e minhas supervisões de dissertação estavam apenas come-

çando, e eram bem menos do que viriam a ser em anos posteriores.

Logo no início da minha carreira, estes anos me proporcionaram

uma base bastante sólida para construções subsequentes.

De todos os textos de Granovetter, o que talvez tenha me im-

pressionado mais foi “The Strength of Weak Ties”, escrito em 1973,

mais de uma década antes do seu artigo sobre embeddedness.

Olhando retrospectivamente minha carreira, os laços fracos têm

sido uma influência regular e fundamental sobre minha pesquisa,

mas, ao mesmo tempo, foi no contexto de laços fortes que foram

formadas ideias mais duráveis.

Agosto, 2019, Rio de Janeiro.

131JOHN WILKINSON

ALGUNS DADOS DO CURRICULUM LATTES

• Professor no CPDA/UFRRJ desde 1982;

• Bolsista 1C do CNPq desde 1984;

• Pesquisador visitante na Comissão Europeia, 1986-7,

Programa FA ST/DG12;

• Pesquisador visitante no Inra, Paris, 1989-9;

• Períodos com Pós-doutor:

1995-6 Paris XIII (Supervisor: François Chesnais);

2017-8 Cologne, Max Planck Institute (Supervisor: Jens Beckert);

• Participação em 4 Projetos de Cooperação Capes-Cofecub,

2 como coordenador;

• 73 artigos publicados;

• 18 livros como autor ou organizador;

• 56 capítulos de livros;

• 42 dissertações de mestrado orientadas;

• 27 teses de doutorado orientadas;

• 4 supervisões de pós-doutorado;

• 6142 citações no Google Scholar (h index 35 e i10 index 87);

132LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Percursos acadêmicos e envolvimentos profissionais:

dimensões da questão agrária brasileira

através de uma biografia

INTRODUÇÃO

Mais do que um momento de organização e contex-

tualização da produção para ascender na carreira

acadêmica, escrever este memorial significou para

mim um balanço dos caminhos trilhados, tanto do ponto de vista

teórico e metodológico (opções e diálogos feitos) quanto empírico

(temas abordados). Permitiu, ainda, sistematizar melhor algumas

opções e encontros, vários deles frutos do acaso, mas que me abri-

ram alguns caminhos que, depois, conscientemente persegui.

Ao longo do texto procurei me situar nos debates nos quais de

alguma forma participei, dando breves indicações dos principais

temas e autores, num exercício de aproximação do conjunto de

questões que me foram significativas em cada momento de minha

trajetória e das opções acadêmicas que fui fazendo, sem, no entan-

to, me preocupar com longas digressões sobre textos que escrevi ou

tentativa de sintetizá -los e apresentar suas teses ao leitor.

À medida que redigia este memorial, além da ênfase na mi-

nha formação acadêmica, não pude deixar de mencionar alguns

aspectos de minha vida pessoal, definidores de algumas escolhas.

134LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Um dos aspectos que destaco é a minha longa permanên-

cia no hoje Programa de Pós- graduação de Ciências Sociais em

Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal

do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). Afinal, cheguei ao CPDA em fe-

vereiro de 1979, quando ele ainda era o Centro de Pós- graduação

em Desenvolvimento Agrícola da Fundação Getúlio Vargas. Meu

contrato foi assinado no mesmo dia em que eu completava 30 anos,

ainda sem sequer ter defendido minha dissertação de mestrado.

Tive um momento de dúvidas sobre a permanência, em meados

dos anos 1990, quando completei o tempo necessário para apo-

sentadoria: não valeria a pena sair, fazer concurso em outro lugar e

melhorar minha condição financeira? Depois de dois ou três anos

de muitas interrogações, avaliações familiares, considerei que já es-

tava com a vida relativamente estabilizada,

,

este cam-

po de estudos nas ciências sociais no país.

Segundo, o Prof. Sergio foi um criativo e incansável tecelão

de laços com outras instituições acadêmicas no exterior, especial-

mente na França (mas não apenas), colaborando ativamente para

o que viria a ser chamado posteriormente de “processo de interna-

cionalização” do CPDA. Em diversas estadias na França, entre as

quais alguns estágios pós-doutorais, a partir dos anos 2000, apro-

fundou a colaboração com um número considerável de instituições

e de pesquisadores, entre as quais quero pessoalmente destacar o

Centre de Coopération Internationale en Recherche Agronomique

pour le Développement (CIRAD), com o qual os professores do

CPDA e de outras instituições brasileiras formaram uma rede aca-

dêmica que viabilizou uma estreita colaboração em pesquisas, se-

minários e publicações, algumas vezes através de Projetos CAPES-

COFECUB, em temas como multifuncionalidade da agricultura,

territorialização, análise de políticas públicas etc. Essa parceria

facilitou que o CPDA, em particular, tivesse a oportunidade inigua-

lável de contar com o apoio, como professor visitante, do querido

e saudoso Phillipe Bonnal, que influenciou de forma marcante vá-

rios programas de pesquisa que foram desenvolvidos no CPDA nos

anos 2000.

E terceiro, é impossível não mencionar explicitamente a

enorme importância que o Prof. Sergio tem para o CPDA e para a

UFRRJ como um formulador de ideias inovadoras e como um ope-

racionalizador dessas ideias com engenhosidade, transparência e

14PREFÁCIO - NELSON GIORDANO DELGADO

extraordinária persistência. Basta mencionar as experiências viven-

ciadas com REDES (Rede Desenvolvimento, Ensino e Sociedade),

OPPA (Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura),

GEMAP (Grupo de Estudos em Mudanças Sociais, Agronegócio

e Políticas Públicas) e CEA (Centro de Estudos Avançados). O

Observatório e o Grupo de Estudos, ambos coordenados por ele,

atingiram grande projeção acadêmica e pública a partir, respecti-

vamente, de 2005-2007 e 2014, produzindo um número conside-

rável de pesquisas, seminários, publicações e intercâmbios em te-

mas como políticas públicas de desenvolvimento territorial rural,

análise de políticas públicas (adentrando inclusive na investigação

do desmonte de políticas públicas para o rural a partir de 2016),

biocombustíveis, agronegócio, financeirização da agricultura, land

grabbing, entre muitos outros, mobilizando um número conside-

rável de pesquisadores de diversas universidades no Brasil e no

exterior e contribuindo para a formação acadêmica de um grupo

notável de pesquisadores composto por alunos e ex-alunos do dou-

torado do CPDA, hoje inseridos em universidades por todo o país.

Tenho plena consciência de que este prefácio não faz jus à im-

pressionante trajetória acadêmica e intelectual de Leonilde, John e

Sergio e de que reflete, em suas ênfases, meus vieses de interesse

e meu envolvimento com muitas das atividades mencionadas ao

longo de um extenso e marcante (para mim) período de convivên-

cia com os três colegas no CPDA. Ficarei, no entanto, plenamente

recompensado se este prefácio tiver deixado clara minha profunda

admiração e carinho por Leonilde, John e Sergio e servir também,

de qualquer forma, para estimular a leitura de seus memoriais.

Boa leitura a todas e todos!

15JOHN WILKINSON

JOHN WILKINSON

Reflexões sobre uma carreira

(ou na carreira pela vida)

COMENTÁRIO INTRODUTÓRIO

Preparei este “Memorial” pouco depois de ler To The Lighthouse, de

Virginia Woolf, e, embora houvesse estudado literatura inglesa no

meu curso de graduação, não me lembro de ter lido seu trabalho

antes. O livro me impressionou sobremaneira com a sua técnica de

“fluxo de consciência” que acompanha os pensamentos dos seus

personagens para trás e para a frente e se ramificam lateralmen-

te, mas sem “perder o fio da meada”. Escolhi esta técnica para este

Memorial e, por este motivo, não dividi o texto cronológica ou te-

maticamente. Espero que isto funcione para o leitor tão bem quan-

to funcionou para mim.

17JOHN WILKINSON

Poderia ter sido Lima, Peru, e um trabalho de campo

sobre a marginalidade urbana inspirado por Quijano.

Mas o meu orientador de PhD, especialista na cultura

popular na Bahia, e uma leitura casual de um exemplar do Cebrap

com artigos dos Franciscos – Oliveira e Sá – sobre o Nordeste brasi-

leiro e o papel da agricultura de subsistência, mudaram o meu foco

para o Brasil. Meu “problema” naquele momento era a “articula-

ção dos modos de produção”, tendo a New Left Review e Economy &

Society como referências centrais.

Depois de uma rápida desilusão com os esforços de empur-

rar o Partido Trabalhista para a esquerda por meio dos Grupos de

Manifesto de 1o de Maio, nos quais Raymond Williams era figura pro-

eminente, a radicalização na Inglaterra dos anos 1960 era bastante

Terceiro Mundista. O centro da mobilização em massa era o Vietnã

e da radicalização eram os Grupos da Campanha de Solidariedade

com o Vietnã. Todavia, em termos institucionais, o resultado mais

importante foi a criação de Centros Latino-americanos interdisci-

plinares em muitas universidades. Foi no Centro Latino-americano

da Universidade de Liverpool, associado ao Departamento de

Sociologia, que completei meu mestrado e depois rumei ao Brasil

18JOHN WILKINSON

para iniciar o meu trabalho de campo para um PhD com financia-

mento de uma bolsa da Fundação Ford. A América Latina oferecia

a promessa de revolução para muitos da minha geração, seja como

resultado da luta armada em Cuba, eleições democráticas no Chile

ou regimes populistas, de militares no Peru e civis na Argentina.

Fui atraído ao Grupo Marxista Internacional (IMG) de inspi-

ração trotskista após a leitura dos relatórios da Quarta Internacional

(liderada por Ernest Mandel) sobre a América Latina preparados

para o seu 9o Congresso Mundial. À época, estava na Espanha,1 ain-

da sob o domínio de Franco, para onde eu fora para aprender es-

panhol como forma de me preparar para contribuir na Revolução

Latino-americana. Com a vitória de Allende em 1970, as pretensões

de participar de movimentos de guerrilha ao estilo de Regis Debray

deram lugar à meta mais modesta de uma possível contribuição ao

governo popular do Chile. De fato, voltei à Inglaterra e passei cin-

co anos como militante no IMG e, como parte do seu “entrismo”

para a classe trabalhadora (ao contrário do “entrismo” no Partido

Trabalhista por parte do Grupo de Militantes, um dos numerosos

grupos trotskistas), trabalhei nas siderúrgicas de Sheffield e me tor-

nei um “delegado sindical”, o primeiro trotskista num sindicato do-

minado pelo Partido Comunista.

Um projeto sobre o regime militar reformista no Peru, ela-

borado durante uma curta estada em Paris, para onde fui atraído

pela Ligue Communiste Revolutionnaire (LCR) de Krivine, a mais

importante vertente da Quarta Internacional, com uma reputação

construída em cima das barricadas de 1968, que viabilizou a minha

1 Estes relatórios me foram enviados por um amigo do meu tempo de graduação,

Andy Metcalf, com quem mantive contato desde então.

19JOHN WILKINSON

entrada num curso de mestrado no Centro Latino-Americano de

Liverpool, após o qual fui aceito para um PhD. Meu retorno à uni-

versidade foi acompanhado por um distanciamento gradativo da

militância. O Centro Latino-Americano de Liverpool era bastante

convencional, sendo que o marxismo era mais comum entre os alu-

nos. Formamos um Grupo de Leitura de O Capital, mas não passa-

mos dos primeiros capítulos do primeiro volume. Minha predileção

era mais o marxismo histórico de Perry Anderson, e li avidamente os

seus estudos monumentais, Passages from Antiquity to Feudalism e

Lineages of the Absolutist State, assim que ambos foram publicados

em 1974, e o marxismo cultural da New Left Review, como a análise

econômica oferecida

,

com filhos adolescentes,

e decidi ficar porque sentia o CPDA como mais do que espaço de

trabalho. Não se tratava apenas de uma inserção profissional, mas

também de uma relação afetiva, embora (ou talvez por isso mesmo)

muitas vezes atribulada e tensa. O CPDA tornou -se um importante

lugar no mundo para mim.

Mas este memorial não é apenas reflexo da minha história no

e com o CPDA. Na busca de algumas raízes da minha formação e

de meu interesse por determinados temas, caminhei por diversos

lugares pelos quais passei e que foram fundamentais na minha ma-

neira de encarar o trabalho na universidade. Senti necessidade de

retornar à minha infância, à adolescência, em especial às escolas

pelas quais passei, até chegar ao tema de pesquisa que venho privi-

legiando desde o curso de graduação. Enunciá -lo, por si só, indica

as tensões teóricas presentes na sua definição: “sociologia rural”,

“sociologia das sociedades agrárias”, “sociologia do campesinato”,

135LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

“questão agrária”, “estudos rurais”, “dimensões rurais da sociedade”,

“ruralidades” não são designações neutras, mas traduzem opções

teóricas diferenciadas para o tratamento de um tema que é escor-

regadio e que, como vários outros, implica olhar para a totalidade

que o envolve e as diversas relações nela contidas. Também bus-

quei mostrar como determinadas opções foram sendo estimuladas

pelos meus contatos para além dos muros da universidade: embora

nunca tenha tido relação orgânica com organizações de trabalha-

dores, como sindicatos ou “movimentos sociais”, a participação em

seminários e encontros sindicais, da Comissão Pastoral da Terra,

do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) ou do

Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e as conversas e tro-

cas daí decorrentes instigaram questões e temas de investigação.

Também foram fundamentais as trocas, em situações de pesquisa

de campo, com trabalhadores comuns, assalariados, assentados,

camponeses de diversos tipos: elas sempre me trouxeram (e espero

que ainda tragam) novas indagações e perplexidades.

No decorrer deste texto procurei apontar como minhas op-

ções foram se fazendo em momentos da própria construção de

meu objeto de estudo que, desde que cheguei ao CPDA, centrou -se

fundamentalmente nos conflitos, formação de identidades políti-

cas e movimentos sociais no campo, o que me levou a refletir sobre

as vicissitudes da questão agrária, as políticas fundiárias e também

a uma breve, porém enriquecedora, incursão sobre o agronegócio.

O exercício de recompor minha trajetória intelectual foi, ao

mesmo tempo, instigante e bastante difícil. Alguns momentos de

definição de rumos, vistos com os olhos de hoje, parecem ter perdi-

do significado. Outras experiências que, quando vividas, tiveram até

mesmo uma certa dose de casualidade, posteriormente mostraram

136LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

importantes desdobramentos. Ao longo do tempo parcerias acadê-

micas que marcaram minha trajetória se fizeram, desfizeram, mas

deixaram marcas.

A necessidade de eleger um fio condutor para a exposição im-

plica o risco de lhe dar um tom de linearidade, o que empobrece

a percepção da dramaticidade e angústia de alguns impasses vivi-

dos, como já apontado por Bourdieu (1986). O impulso de recor-

rer abundantemente à bibliografia foi grande: mas isto significaria

reconstruir debates a partir do olhar de hoje. Preferi apenas reler

alguns trabalhos que escrevi e procurar, na medida do possível,

apresentar as discussões o mais próximo possível dos termos da

época. Certamente minhas concepções de hoje embaçam minha

capacidade de recuperar todos os termos do debate. Precisaria de

um investimento muito maior do que o suposto para um memorial.

Como relato de uma trajetória, há muito de não dito. Gostaria

de poder confrontá -lo com o de alguns contemporâneos para per-

ceber como foram vivenciados por outros pesquisadores determi-

nados momentos da produção científica brasileira. Afinal, se estou

falando de mim, em primeira pessoa, necessariamente estou me

referindo a um campo de reflexões, construção de temas e investi-

mentos acadêmicos que são, em grande medida, coletivos.

Escrever este texto constituiu -se também num exercício de

homenagem a pessoas que passaram pela minha vida intelectual e,

de alguma forma, a marcaram. Os seus nomes aparecem ao longo

da narrativa.

Apesar de tantos impasses, este tipo de reflexão me foi ex-

tremamente útil, na medida em que me ajudou a desvendar o que

eu entendia, quando ingressei no doutorado, como uma “crise de

identidade” e a acertar algumas contas com a minha formação

137LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

acadêmica. Prossigo nesse ajuste, buscando fechar um círculo, mas

está difícil. A escrita me ajudou também a explicitar para mim mes-

ma meus constantes atrasos no que se refere aos tempos da vida

acadêmica: quase oito anos para finalizar a dissertação de mestra-

do, quase dez para me doutorar e mais de quatro para fazer concur-

so para titular... Como procuro mostrar no texto, se demorei bastan-

te para cumprir as formalidades acadêmicas, foi porque me deixei

levar por vários caminhos de pesquisa, de orientação, de escrita e

de relação com os movimentos sociais, trabalhadores do campo

e organizações de apoio. Esses envolvimentos me deram “régua e

compasso”, além de inspiração para pensar as questões teóricas.

Mas os atrasos também têm uma raiz nas dificuldades com o exer-

cício solitário que as demandas formais da academia impõem.

Este memorial é um ajuste de contas comigo mesma. Dei -me

o direito de explorar minhas lembranças, a maior parte delas bas-

tante prazerosa. Iniciada a redação em 2014, quando a passagem

de nível foi regulamentada pela legislação pertinente, interrompi

completamente o trabalho por dois anos. Nesse meio tempo, uma

pesquisa que coordenei sobre os conflitos no campo no estado do

Rio de Janeiro, durante a ditadura, me tomou todo o tempo e a alma.

Valeram todos os atrasos... Que meus orientandos não me julguem,

mas se eu ficasse apegada aos meus tempos institucionais, não te-

ria enveredado por tantos caminhos tortuosos e carregados de des-

cobertas empíricas, teóricas e afetivas... Claro que perdi muito com

minhas demoras, mas, colocando na balança, o saldo foi positivo e

estou conciliada com minhas angústias a respeito dos atrasos.

Retomei o memorial no início de 2019. Nova interrupção, para

nova investida em janeiro e fevereiro de 2020. Quando o finalizei,

veio a pandemia da Covid 19... Fiquei aguardando, achando que

138LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

seria curto o tempo de recolhimento. Quando fui indagada pela

minha amiga Sonia Bergamasco por que não fazia por via remota,

levei um susto. Realmente, por que não?

Agradeço à banca que avaliou o trabalho, composta pelo co-

legas e amigos Elina Pessanha, Marilda Vilela Iamamoto, Moacir

Palmeira, Sérgio Pereira Leite e Sonia Maria Bergamasco, pela

leitura cuidadosa e pelos comentários. Todos os nomes foram es-

colhidos com muito cuidado, porque representaram momentos

importantes de minha vida acadêmica. Muitos outros foram citados

ao longo do texto. A todos agradeço pelas parcerias e aprendizados.

A FORMAÇÃO

MOMENTOS INICIAIS: O PERCURSO ATÉ A CHEGADA

À GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS NA USP

Começo, de forma pouco convencional num ritual acadêmico,

falando de mim e do meio em que nasci e fui criada. Afinal, não

comecei a vida a partir de meu título acadêmico de bacharel e li-

cenciada em Ciências Sociais. Momentos iniciais do meu percurso

tiveram a ver com a busca de recusa a um destino que parecia ir me

sendo imposto pelo meio em que vivia.

Nasci e cresci na periferia da Zona Leste paulistana, entre

filhos de operários. Meu pai, migrante do sertão potiguar, cursou

até o segundo ano do ensino primário e minha mãe chegou até a

quarta série. Frequentei o Grupo Escolar

,

(termo usado para desig-

nar as escolas que ofereciam o que hoje corresponde ao primei-

ro nível do Ensino Fundamental) do local onde vivia, o bairro de

Engenheiro Goulart, relativamente isolado dos bairros limítrofes

e com crescimento mais lento em relação à periferia paulistana.

Brincava com as crianças vizinhas em rua de terra batida. A energia

elétrica só chegou quando eu tinha cerca de cinco anos de idade, o

140LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

asfalto quando completara 17... Água encanada e esgoto bem de-

pois. Nosso transporte para o bairro mais próximo era feito por um

ônibus que passava de meia em meia hora (nos horários de pico) e

que era carinhosa e ironicamente chamado de “poeirinha”, por ra-

zões óbvias: sua aproximação era sinalizada pela terra que levanta-

va em ruas sem calçamento. Vivi assim a experiência de um bairro

de trabalhadores, onde se desenhava fortemente um horizonte de

ascensão social pela educação.

Um importante diferencial no meio em que vivi marcou mi-

nha infância e creio que minha vida: meu avô de criação, Benedicto

Bonato, companheiro de minha avó materna, tinha sido professor

primário e já estava aposentado quando me conheci por gente. Ele

me contava histórias e comprava livros; alfabetizou -me antes do

tempo escolar, introduziu -me na literatura, na poesia. Escrevia ver-

sos, tocava violão, desenhava, pintava, e fez de mim uma parceira

no jogo de xadrez, nas palavras cruzadas. Estimulou meu gosto pela

leitura e ajudou, com sua irreverência em relação a alguns valores,

a quebrar o que parecia ser o destino das meninas com quem eu

convivia: aprender a bordar, costurar, limpar casa, fazer comida e

estudar um pouco para, depois, arrumar um “bom marido”. Para

escândalo de minha mãe, dona de casa exemplar, eu resistia a

qualquer aproximação com as tarefas domésticas e gostava de fi-

car por longas horas na cama ou numa rede, sempre lendo. Minha

avó materna, Judith, uma feminista precoce, embora sem qualquer

discurso militante, apoiava minhas pequenas rebeldias. Meu pai,

Sebastião, sempre respaldou fortemente minha vontade de estu-

dar e lamentava profundamente o Exército não aceitar mulheres

(se aceitasse, provavelmente eu teria ido para um colégio militar...).

Lembro dele, às noites, após o dia estafante de trabalho, com um

141LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

caderno de caligrafia, fazendo um esforço para seguir meus passos

na leitura e escrita. Fazia o possível e o impossível para me comprar

os livros que eu pedia e apostou fortemente, por meio do estímulo

afetivo, na minha educação escolar.

A política tinha um lugar secundário em nossas vidas. Antes

do golpe de 1964, no bairro onde fui criada, vivia -se intensamen-

te o “tempo das eleições”, para evocar estudos de Moacir Palmeira

(PALMEIRA, 1996), em especial a disputa entre “janistas” e “ade-

maristas”. Minha família era “janista”, em especial meu avô, que

chegou a escrever um soneto para uma das campanhas eleitorais.

Cansei de ouvir o “varre, varre vassourinha” no disco tocado inú-

meras vezes na vitrola que ele comprara. A disputa era pontuada

por valores morais: os “janistas” se viam como sérios, trabalhado-

res, portadores de princípios éticos e acusavam os “ademaristas” de

serem o oposto.

Na capela do bairro, predominantemente católico, lembro

que às vezes os moradores eram convidados para assistir exibição

de filmes (diversão irresistível, pois, à época, a maioria das famílias

do local sequer tinha televisão em casa). Tenho vagas lembranças

de filmes falando dos horrores do comunismo. Também me recor-

do da professora de religião do ginásio (muitas escolas públicas

tinham religião como disciplina obrigatória) dizendo que a terra

na Rússia era adubada com sangue: os comunistas enterravam as

pessoas, deixando só a cabeça de fora e passavam trator em cima...

Em casa, não havia discussão política para além da críti-

ca moral aos “ademaristas”. Meu pai, que tinha integrado a Força

Expedicionária Brasileira aos 20 anos, na condição de voluntário,

e ido para a Itália combater o fascismo, era fervoroso defensor

da ordem e, paradoxalmente, admirador de Mussolini. Quando

142LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

sobreveio o golpe militar de 1964, deu -lhe apoio: na sua concepção,

os militares iriam organizar o país, que estava, segundo ele, com-

pletamente caótico por conta das greves e da corrupção reinante.

Essas digressões tão pessoais são apenas para dizer que nossa

vida não era exatamente despolitizada, mas a família era marcada

por valores conservadores. Grande parte do meio em que eu vivia

viu o golpe com indiferença. A derrubada de Goulart não parecia

impactar o cotidiano. Nenhum operário das nossas relações par-

ticipava de atividades políticas, de manifestações e nem foi preso.

Muitos vizinhos só frequentavam o sindicato para buscar atendi-

mento médico. Já no início dos anos 1980, investindo em pesquisas

sobre sindicalismo rural, surpreendi -me muito com a literatura que

apontava esse comportamento como uma marca dos sindicatos

dos trabalhadores rurais. Minha experiência, especialmente com

meu tio e vizinho, metalúrgico, e também com os pais de amigos

de infância, mostrava o sindicato como o lugar ao qual se recor-

ria para buscar soluções para necessidades várias do cotidiano. O

grande valor para as pessoas com quem eu partilhava esse universo

era manter o trabalho nas fábricas próximas onde se chegava rapi-

damente de trem (caso da Fábrica de Tecidos Ermelino Matarazzo

e da Nitroquímica, em São Miguel Paulista) ou mesmo de bicicleta

(Vidraria Cisper), e gozar dos benefícios que um emprego estável

fornecia: assistência médica, pequenos empréstimos, festas de

Natal com distribuição de brinquedos aos filhos de operários.

143LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Terminado o primário, em 1960, numa Escola Popular do

Serviço Social da Indústria (Sesi),1 o caminho para continuar os

estudos era buscar uma vaga no Colégio Estadual mais próximo.

No meu caso, na Penha, bairro vizinho e também limite de meu

conhecimento da geografia da capital paulistana até mais ou menos

os 12 ou 13 anos.2

Coincidências definem, por vezes, os destinos individuais:

consegui uma vaga para fazer o curso de admissão (um preparató-

rio necessário para entrar no ginásio, atual segundo segmento do

Fundamental) no Instituto de Educação Nossa Senhora da Penha

(Estadual da Penha, como era chamado).

No final do ginasial, aos 14 anos, era necessário definir mini-

mamente uma perspectiva de futuro. Meus amigos do bairro que

frequentavam o IEP, apesar de filhos de operários, eram estimula-

dos a estudar. Eu era a única menina do meu grupo de infância que

tinha continuado naquele Colégio, que era extremamente exigente.

Estudava muito, era excelente aluna e, por isso, olhada com certo

estranhamento pelos vizinhos.

1 Fiz as três primeiras séries no Grupo Escolar do bairro e a quarta no Sesi, con-

siderada uma escola “mais forte”. No verso de meu diploma do curso primário

consta: “Os Cursos Populares Infantis do Sesi dedicam -se a ministrar aos filhos

dos trabalhadores nas indústrias e atividades assemelhadas o ensino primário,

base da educação popular. São organizados para servirem às necessidades do

grupo social a que os educandos pertencem. Visam a estimular e orientar as ten-

dências das crianças, desenvolvendo -lhes o sentimento de responsabilidade in-

dividual e de trabalho, de solidariedade e de cooperação, a fim de bem formá -las

intelectual, física, moral e civicamente”.

2 Algumas raras vezes, esse isolamento foi quebrado pela visita a algum parente

ou pela ida, de trem, com meus pais, à praia, em Santos, lazer típico dos traba-

lhadores da época.

144LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Tínhamos três opções: Clássico (ênfase em Letras e Ciências

Humanas), Científico (ênfase em Ciências Exatas e Biológicas) e

Normal (formação de professores primários). Minha intenção

,

era

fazer o Científico (adorava matemática e em especial biologia e so-

nhava fazer Medicina), mas acabei optando pelo clássico, pois tam-

bém adorava História, Geografia, Línguas. Pensei na possibilidade

de fazer Letras ou História e, posteriormente, tornar -me professora,

mas, como insistia, “não de crianças”. Tratava -se de negar o destino

desejado por minha mãe e seguido por várias das minhas amigas

de infância: fazer Normal e me tornar professora primária.

Como eu estudava à noite (o curso Clássico tinha menor de-

manda e só era oferecido nesse período) e não trabalhava (meu pai

fazia questão absoluta de que eu me dedicasse integralmente ao

estudo), passava o dia lendo e estudando. Dava também aulas par-

ticulares em casa, de Português e Francês, para colegas de séries in-

feriores que “iam mal”. Assim, conseguia ter algum dinheiro para os

cinemas, teatros, comprar livros da Livraria Francesa, na rua Barão

de Itapetininga, centro de São Paulo.3

Já cursando o Clássico, vim a saber que o colégio era conside-

rado uma das melhores instituições públicas de ensino da cidade

de São Paulo. Lá lecionavam professores que marcaram minha vida

e definiram meus rumos acadêmicos. A professora de Biologia,

3 Interessante pensar que nesses tempos tínhamos uma certa liberdade de ir e

vir. Num bairro periférico, para fazer as pesquisas que a escola demandava (e não

eram poucas) tinha que ir a bibliotecas, e já no último ano do ginásio, aos 14 anos,

frequentava bibliotecas públicas, o que exigia tomar ônibus sozinha e ter alguma

desenvoltura para andar no centro de São Paulo, onde ficavam a Biblioteca Mário

de Andrade, a Livraria Francesa, os cinemas dos finais de semana (sempre à tar-

de, para chegar em casa antes das 19 ou 20, por imposição de meu pai).

145LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Walburgis, nos estimulava a fazer experiências em casa e sempre

nos levava ao laboratório do Colégio; Vera de Athayde Pereira, pro-

fessora de Geografia, falava das Ligas Camponesas para crianças de

13 ou 14 anos, que pouco sabiam do mundo; José Chalita, exigen-

te, sempre de cara fechada, me despertou verdadeiro fascínio pela

História; Dirce Morse, professora de Português, que além de, já no

Ginásio, nos fazer decorar Os Lusíadas, de Camões, no Clássico mar-

cava com grupos de alunos idas ao teatro aos sábados, estimulando

a abertura de nossas perspectivas culturais e horizontes de reflexão.

Mário Argentini, professor de francês, nos estimulava a ler os clássi-

cos da literatura francesa e nos obrigava a ir ao cinema: aficionado

por filmes franceses, tornava-os objeto das aulas de conversação.

Foi assim que tive contato com a Nouvelle Vague, com Godard e

outros. Maria da Penha Villalobos, professora de Filosofia, nos

introduziu não só em alguns dos temas básicos de teoria do conhe-

cimento como na literatura universal, estimulando-nos a ler clássi-

cos como Dostoiewski, Tolstoi, Sartre, Camus. Achava um absurdo

que aos 16 anos não conhecêssemos estes autores. Gerava assim

uma carinhosa e provocativa emulação. Lúcia Biojone, de Inglês,

nos introduzia aos clássicos americanos. Neusa Monteferrante nos

ensinava Latim e nos obrigava a ler Cícero... Havia ainda o teatro do

Colégio, onde se abria oportunidade de participar do coral, do gru-

po de teatro. Impossível traduzir a riqueza de discussões que esse

colégio público nos proporcionou e a excelência da formação que

nos deu, em especial considerando os limites que a origem social

de boa parte dos alunos impunha.

Foi somente no terceiro ano que decidi fazer Ciências Sociais.

Para essa opção foi decisivo um vago sentimento de oposição ao

regime (iniciei o Clássico em 1965, terminei em 1967) e uma ideia

146LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

bastante ingênua de que o curso forneceria os instrumentos teóri-

cos e práticos necessários para “mudar a sociedade”. Também me

influenciou a paixão pela História e o estímulo do inesquecível José

Chalita. Não tinha muita ideia de onde poderia trabalhar depois,

fazendo o quê, mas tinha a certeza de que era necessário buscar

ferramentas para fazer a crítica do mundo em que vivia.

Só prestei exame vestibular para a Universidade de São Paulo,

na época a única universidade pública na cidade. Entrei muito bem

classificada, num momento em que o curso era bastante procura-

do e tinha concorrência próxima à da Medicina e das Engenharias.

Se isso foi motivo de orgulho para minha família, pois eu seria a

primeira a ir para um curso Superior, também foi motivo de preo-

cupação, uma vez que não entendiam bem “para que servia” essa

carreira pela qual eu optara.

A EXPERIÊNCIA USPIANA

A GRADUAÇÃO

Iniciei a graduação em Ciências Sociais, na então Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em 1968.

As características peculiares desse momento, dada a conjuntura

política que o país atravessava, foram marcantes para mim. Lidar

com a nova situação e a particularidade do momento foi difícil. Era

uma jovem da periferia paulistana, que havia lido muito (literatura

nacional e internacional, história do Brasil), tinha bom preparo aca-

dêmico, mas pouca experiência de vida e bagagem política: nunca

fora sequer a uma assembleia estudantil do grêmio do meu colégio,

que, por sua vez, não era muito ativo em termos políticos. Quando

147LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

comecei a frequentar assembleias na universidade, espantava -me

o reducionismo das análises políticas dos dirigentes estudantis.

Mas, obviamente, não tinha a mínima coragem de contestá -las pu-

blicamente. Simplesmente ouvia, entre perplexa e fascinada por

aquela energia que jorrava na crítica ao regime e que parecia cheia

de certezas sobre a eficácia do grito “abaixo a ditadura!”.

Embora em 1968 já estivesse em construção, no bairro do

Butantã, uma cidade universitária, os cursos de Ciências Sociais,

Filosofia e Economia da USP ainda estavam em Higienópolis, perto

do centro da cidade, na rua Maria Antonia, que se tornaria famosa

em 1968 pela batalha campal contra um grupo de estudantes do

Mackenzie, ligados ao Comando de Caça aos Comunistas.

Logo nos primeiros dias percebi que entrava em outro mundo

e me sentia um tanto estranha nele. Encontrei a Faculdade ocupa-

da pelos estudantes, em luta pela admissão dos excedentes (os que

haviam conseguido nota mínima no vestibular, mas não estavam

classificados para ingresso pela escassez de vagas), por reforma uni-

versitária, pelo fim da cátedra (eu sequer sabia exatamente o que

isso significava). As aulas demoraram para começar, os estudantes

estavam em greve e a Maria Antonia era um turbilhão. A maioria

de meus colegas havia feito curso preparatório para os exames ves-

tibulares e isso fazia uma enorme diferença: além de um lugar de

formação acadêmica para enfrentar as provas, os “cursinhos” eram,

naquele momento, antes de mais nada, um espaço fundamental de

socialização política.

O que ocorria nos corredores da antiga Faculdade de Filosofia

era surpreendente e impactante para mim (e também para uma co-

lega de colégio, Madalena Pedroso, que fizera a mesma opção de

curso que eu). Enquanto eu não tive “aula” no sentido convencional

148LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

do termo, a inquietação e o aparvalhamento cresciam. Obviamente

não percebia que as aulas estavam ali, na experiência dos corredo-

res da casa centenária, nas assembleias e discussões e na rua, ponto

de início de várias passeatas e protestos.

Nosso primeiro semestre foi bastante conturbado do ponto de

vista acadêmico. As aulas começaram tarde em relação ao que era

o calendário letivo usual e eram frequentemente suspensas para

reuniões e assembleias, onde se faziam intensas discussões sobre

reforma universitária, fim da cátedra, necessidade de comissões

paritárias para rever relações de poder bastante hierarquizadas que

marcavam a universidade. Também nelas se fazia a crítica

,

ao regi-

me e o chamado para participação nas manifestações. Começava aí

uma nova frente de tensão com a minha família, em especial com

meu pai, que temia que eu participasse de mobilizações e fosse

presa. Enfim, que eu me envolvesse na “baderna”.

Durante uma nova ocupação da universidade, que ocorreu

em julho, alguns professores decidiram dar cursos de curta duração

como forma de manter a constante presença dos alunos no prédio

num período que normalmente era de férias. Não sei bem por qual

razão, escolhi o módulo oferecido pela professora Maria Isaura

Pereira de Queiroz, sobre messianismo. Possivelmente, em função

de leituras anteriores e mal digeridas de Guimarães Rosa e Euclides

da Cunha. Ela publicara havia pouco tempo seu livro Messianismo

no Brasil e no mundo (Queiroz, 1965), muito comentado nos cor-

redores. Encantei -me com o tema, com os estudos sobre o rural e

com a figura carismática de Maria Isaura. Não mais abandonei o

tema desde então, embora abordando-o, ao longo de minha traje-

tória, por diferentes lentes.

149LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Em 1968 e 1969 fiz as disciplinas obrigatórias do curso (Teoria

Sociológica I e II, Teoria Antropológica I e II, Ciência Política I e II,

Métodos e Técnicas de Pesquisa, Estatística, Introdução à Economia

e História). Fui aluna quer de jovens, quer de renomados professo-

res. Dos que mais fortemente me influenciaram neste momento,

destaco, entre os jovens, José de Souza Martins, com quem cursei

Sociologia I e que me impressionou pela seriedade com que condu-

zia a disciplina e a rigidez nas avaliações de trabalhos e seminários.

Entre os já reconhecidos, Fernando Novaes, que dedicou o curso

de História, frequentado por mais de cem alunos, ao estudo da

Revolução Francesa; e o carismático Fernando Henrique Cardoso,

com quem, em Sociologia II, tive algumas aulas brilhantes sobre

Weber. Após a quarta aula, o curso mal começando, ele foi compul-

soriamente aposentado. Fomos informados disso pela professora

Eunice Duhram, em prantos, quando esperávamos a chegada dele

na sala de aula.

A orfandade intelectual a que eu e meus contemporâneos fo-

mos condenados em 1969 pelos efeitos do AI-5 teve repercussões

profundas sobre a formação acadêmica de toda uma geração. Não

apenas perdemos a possibilidade de ter como professores os gran-

des mestres da Sociologia e da Ciência Política (Florestan Fernandes,

Otavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Paula Beiguelman,

Emília Viotti da Costa, entre outros), aposentados compulsoria-

mente no início de 1969, como também tivemos que conviver com

a decorrente desestruturação relativa do curso e a mudança, no

final do ano de 1968, da rua Maria Antonia, com todo seu simbo-

lismo, para a Cidade Universitária, localizada do outro lado do rio

150LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Pinheiros, distante do centro e de seu burburinho.4 A perplexidade

se abateu sobre os corredores da universidade que construía e pre-

zava a imagem de maior centro de pesquisas e geração de conheci-

mento do Brasil, em especial no curso de Ciências Sociais.

Nesse contexto, ao longo do curso, o trabalho com as grandes

correntes de pensamento das Ciências Sociais foi pouco sistemáti-

co, uma vez que as disciplinas básicas, a serem cursadas nos dois

primeiros anos, foram duramente afetadas pela turbulência do

período. No geral, meu contato com os clássicos deu -se nas dis-

ciplinas optativas cursadas a partir de terceiro ano, o que dificul-

tou um aprofundamento em termos da consistência interna de

alguns dos paradigmas das Ciências Sociais e de suas implicações

metodológicas.

Não por acaso, os cursos optativos de perfil teórico denso eram

os mais demandados pelos alunos que tinham maiores pretensões

acadêmicas. Dentre eles, dois tiveram especial peso na minha for-

mação teórica: Teoria Política e Sociologia do Desenvolvimento. No

primeiro, ministrado pelos professores Francisco Weffort e Lúcio

Kovarick, tive meu contato inicial com Gramsci, autor que leio e

releio até hoje e que foi fundamental fonte de inspiração teórica

na minha formação. No segundo, o professor Luiz Pereira intro-

duzia uma reflexão sobre o caráter do capitalismo nas sociedades

4 Em outubro de 1968, a Maria Antonia foi palco de uma verdadeira guerra entre

os uspianos e o Comando de Caça aos Comunistas, que tinha uma de suas ba-

ses na Universidade Mackenzie, situada bem em frente à Faculdade de Filosofia,

Ciências e Letras. Após esse episódio, a mudança para a cidade universitária foi

acelerada, embora ainda não houvesse nela estrutura para receber os cursos de

Ciências Sociais, Filosofia e Economia. Barracões (literalmente) foram construí-

dos às pressas e neles passamos a ter aulas. Ali ficamos até o início dos anos 1980,

pois o prédio que hoje abriga a faculdade demorou bastante para ficar pronto.

151LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

periféricas e apresentava criticamente o debate entre as diversas

correntes sobre o tema. Naquele momento, ele terminara um de

seus livros de maior repercussão (Ensaios sobre sociologia do desen-

volvimento) e trazia para as aulas as reflexões que estava fazendo e os

textos com os quais dialogava (PEREIRA, 1970). Líamos Mannheim,

Baran, Sweezy, Magdoff, entre outros. Para Luiz Pereira, a questão

era superar as abordagens econômicas e produzir, como diz o título

do livro, uma sociologia do desenvolvimento, buscando caracte-

rizar o subdesenvolvimento (categoria em voga na época), como

realização de um tipo macroestrutural, o capitalismo. Revendo

hoje esse percurso, chama -me a atenção o fato de, apesar da am-

plitude das leituras, não lermos sistematicamente nesse momento

aquele que já então era reconhecido como o grande sociólogo bra-

sileiro e o criador do que depois veio a ser chamada de “Escola de

Sociologia Paulista”: Florestan Fernandes. Em 1970, ele já estava

no exílio e amadurecia o livro que marcaria as reflexões posterio-

res sobre o Brasil: A revolução brasileira (Fernandes, 1975). Mas

tinha publicado Fundamentos empíricos da explicação sociológica,

um esforço hercúleo de reflexão sobre Durkheim, Weber e Marx,

matrizes consideradas clássicas do pensamento sociológico e dos

métodos fundantes da sociologia: o método funcionalista, o com-

preensivo e o dialético (Fernandes, 1959), bem como outras obras

marcantes como Mudanças sociais no Brasil (Fernandes, 1960) e

Sociedade de classes e subdesenvolvimento (Fernandes,1968), livros

nos quais a questão das particularidades do desenvolvimento do

capitalismo no Brasil já estava sendo esboçada. Florestan pairava

como uma sombra e uma referência nos corredores, mas era, inex-

plicavelmente, pouco lido por nós, como bibliografia dos cursos.

152LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Uma terceira disciplina marcou minha trajetória, mas por ou-

tro viés: a Sociologia Rural, oferecida pela professora Maria Isaura

Pereira de Queirós, então a grande especialista sobre o tema na

USP. Essa opção, em 1970, significou, para mim, mais do que a

perspectiva de um aprendizado teórico, a possibilidade de viven-

ciar uma experiência de pesquisa empírica e de retomar o contato

com o tema que me encantara por ocasião de meu ingresso na uni-

versidade. Graças a um convênio entre o Centro de Estudos Rurais

e Urbanos da USP, então dirigido por Maria Isaura, e o Serviço do

Vale Paraíba e o Serviço do Vale do Ribeira, instituições ligadas ao

governo do estado de São Paulo, os estudantes inscritos na discipli-

na, de caráter anual, realizavam no decorrer do ano uma pesquisa

de campo, sob orientação da Professora Maria Isaura e de orien-

tandas suas de mestrado ou doutorado,5 participando ativamente

de todas as suas fases: desde a “elaboração do quadro teórico” até

o preparo dos questionários, sua aplicação, análise de resultados e

redação do relatório final. A pesquisa de campo propriamente dita

era realizada em julho, mês de férias. Os temas

,

tratados eram prin-

cipalmente a organização do trabalho no meio rural, a “racionali-

dade” do produtor (em especial pequenos e médios), o significado

social da produtividade por eles obtida no cultivo da terra. O inte-

resse pelo tema foi tão grande por parte de um grupo de alunos6

que a professora se dispôs, no ano seguinte, a nos oferecer uma

nova disciplina, para abordar as concepções desenvolvidas pelos

5 Destaco em especial Sisue Imanishi Rodrigues, de quem me aproximei bastante

e com quem trocava muitas ideias.

6 Entre eles, amigos Maria Helena Antuniassi e Candido Vieitez, com quem eu

estudava, discutia textos e ideias para pesquisas futuras.

153LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

agricultores sobre o seu trabalho, sobre o Estado, suas relações com

os demais setores da sociedade, entre outros temas.

Nas duas oportunidades, o interesse central era repensar o

suposto atraso da agricultura, provocando a reflexão sobre o sig-

nificado social da adoção ou não de inovações tecnológicas no

processo de produção. Estávamos no início dos anos 1970 e a dis-

cussão fazia eco aos debates dos anos 1960, em especial ao livro de

Caio Prado, a Revolução brasileira (Prado Jr., 1966). Mas também

repercutia a modernização que se adensava no campo e colocava

questões-chave sobre os impasses da adoção de tecnologias em es-

pecial por pequenos agricultores, como os produtores de arroz nos

polders do Vale do Paraíba.7 Não por acaso, na segunda edição da

disciplina, em 1971, o tema foi “Formação da mentalidade coletiva

no meio rural”, mas tendo por objeto de estudo os produtores de

chá no Vale do Ribeira, no município de Registro e entorno.

Se as questões referentes ao meio rural desde logo desper-

taram meu interesse, havia uma evidente contradição entre a

problemática desenvolvida especialmente por Luiz Pereira e a forma

como as questões eram tratadas na disciplina Sociologia Rural, de

caráter mais empírico. No curso de Sociologia do Desenvolvimento,

a partir dos grandes paradigmas da sociologia, representados

por Durkheim, Weber e Marx, bem como da leitura de Mannhein

(1963), procurava -se o instrumental teórico para entender o tema

do desenvolvimento/subdesenvolvimento e optava -se pela aná-

lise deste último como categoria histórica, realização de um tipo

7 Polders são terrenos baixos, planos e alagáveis, protegidos por meio de diques que

controlavam o fluxo das águas e a utilização da terra para fins agrícolas.

154LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

macroestrutural: o capitalismo.8 A pergunta básica era: o que faz

com áreas ou regiões capitalistas economicamente atrasadas se

determinem como subdesenvolvidas? Essa era a porta pela qual era

introduzida a problemática das classes sociais, dos movimentos po-

líticos e do planejamento, entendido, sob a ótica de Mannheim, ou,

na perspectiva de Luiz Pereira, como “forma histórica de controle

social inovador, racional, indireto, especializado, centralizado e

inclusive multidimensional” (PEREIRA, 1970, p. 15), capaz de per-

mitir a construção deliberada da história, a partir, como afirma-

va Pereira, de possíveis historicamente dados. Por aí chegávamos

também ao marxismo, apreendido não nas suas formulações gerais

e abstratas, mas como caminho para entender a desigualdade de

desenvolvimento entre países e regiões distintas, o papel do Estado

e da planificação, entre outras questões. Fiel à tradição uspiana, no

entanto, esse modelo não deixava de ser mesclado por elementos

de outros paradigmas, especialmente Weber, no que se refere à

8 Se fizermos um levantamento da produção sociológica da época (anos

1960/1970), é fácil perceber o quanto o tema do desenvolvimento ganha cen-

tralidade na literatura. Destaco, na USP, os estudos de Juarez Brandão Lopes,

Fernando Henrique Cardoso, Maria Célia Paoli, José de Souza Martins, Paul

Singer. Fora da USP, ressalto as obras de Costa Pinto, Celso Furtado, Helio

Jaguaribe, Rui Mauro Marini (que não eram indicadas nas disciplinas que cur-

sávamos). Tratava -se de um tema que era então objeto de discussão em toda a

América Latina, como se pode observar pelas referências contidas nesses estu-

dos, em especial Gunnar Myrdal, Andrew Gunther Frank, Osvaldo Sunkel, Jorge

Graciarena, Raul Prebish, além Hirshmann.

155LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

construção de “tipos ideais”.9 Ao mesmo tempo, adentrávamos na

leitura de Althusser e, paradoxalmente, no famoso livro de Marta

Harnecker (Harnecker,1970), que fazia uma simplificação chocante

(na minha leitura de hoje) não só do marxismo mas também do es-

truturalismo, mas que nos era indicado como guia para a complexa

leitura de Althusser.

A forte influência que toda essa discussão exercia sobre mim

e sobre alguns outros colegas trazia a necessidade de pensar nossos

interesses de pesquisa empírica tendo por base as relações entre

o meio rural e o capitalismo, em esquema semelhante ao que se

poderia utilizar para pensar os binômios desenvolvimento/subde-

senvolvimento, centro/periferia. Nossa questão era: como explicar

a relação entre o rural que estudávamos, as ambivalências dos pro-

dutores que entrevistávamos nas pesquisas de campo dirigidas por

Maria Isaura Pereira de Queiroz e o capitalismo?10

9 Os trabalhos de Luiz Pereira de maior influência eram: Ensaios de sociologia do

desenvolvimento, editado pela Pioneira em 1970, Estudos sobre o Brasil contem-

porâneo, pela mesma editora, em 1971, além é claro, de suas aulas, verdadeiros

monólogos, carregados de erudição. Cursei a disciplina em 1970, no momento

em que o livro Ensaios ainda estava no prelo. Quando o livro saiu, percebi que ali

estavam as nossas aulas. Foi um privilégio ter Luiz Pereira como mestre.

10 A preocupação que guiava as duas pesquisas que fizemos nos cursos de Maria

Isaura Pereira de Queiroz era a emergência da “mentalidade empresarial”. Uso

sempre a primeira pessoa do plural porque se tratava de impasses coletivos, que

recortavam o grupo que girava em torno de Maria Isaura. Parte dele buscava alar-

gar os horizontes de reflexão a partir de um aprofundamento da abordagem mar-

xista que nos chegava em especial pelo estruturalismo althusseriano e que fazia

grande sucesso nos corredores da USP naquele momento.

156LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

OS DESAFIOS DE ESTUDAR E TRABALHAR: DESCOBERTAS

Desde 1969, ainda no segundo ano da graduação, comecei a dar

aulas de História no ensino secundário, inicialmente no mesmo

colégio onde havia estudado, depois num curso de madureza11 e,

após, em mais dois outros colégios públicos: Escola Estadual Barão

de Souza Queiros (1971 e 1972) e Colégio Estadual Presidente Altino

(1973 a 1975). Naqueles anos ocorreu uma substantiva ampliação

das escolas públicas em São Paulo e, como não havia professores

concursados em quantidade necessária, a Secretaria de Educação

permitia aos colégios a contratação de estudantes como professores

a “título precário”, por meio da CLT.12 Sem dúvida, precisava buscar

condições de me manter e ajudar minha família. No entanto, para

além da questão econômica, as aulas me descortinaram um novo

universo de atuação, a importância da prática pedagógica em gru-

po, a necessidade de investimentos coletivos no ensino e de formar

gente com capacidade de ler criticamente seu mundo.

11 Cursos de madureza eram bastante comuns na época. Voltavam -se para o pú-

blico adulto, que havia abandonado os estudos (normalmente pela necessidade

de trabalhar) e que sentia necessidade de a eles retornar. Em um ano ou, no má-

ximo, ano e meio, os alunos recebiam aulas intensivas à noite, preparando -se

para um exame, feito pelo governo do estado de São Paulo, que dava aos aprova-

dos um certificado de conclusão do ensino colegial.

12 O “precário” do nome do contrato referia -se ao fato de que não éramos con-

cursados e, portanto, não tínhamos estabilidade. Como celetistas, podíamos ser

despedidos se chegasse à escola um professor concursado

,

na disciplina ou se a

direção da escola decidisse nos despedir por uma razão qualquer. No contexto em

que vivíamos, era comum o rompimento contratual no final do ano, sem maiores

justificativas, de professores considerados mais à esquerda no espectro político.

157LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Em 1970 cheguei a fazer um novo vestibular, desta vez para

o curso de História, visando à possibilidade de dar aulas depois de

formada, uma vez que, naquele momento, era bastante instável a

situação de pessoas que, cursando Ciências Sociais, lecionavam

História. Fui aprovada, mas era impossível fazer bem os dois cursos

e, além disso, trabalhar. Acabei o abandonando ainda no primeiro

ano, mas, como se poderá ver no decorrer da minha trajetória e de

tudo o que escrevi ao longo da vida acadêmica, minha paixão por

essa disciplina foi permanente e muito marcante sua influência na

minha formação.

Na sala de aula, descobri o que posso dizer ser uma forte vo-

cação. Quer trabalhando com crianças de quinta e sexta série, quer

com adolescentes, no colegial, em geral trabalhadores que faziam

curso noturno, o desafio era aproximá -los da história brasileira de

forma mais viva. Foi um momento muito rico pessoal e profissio-

nalmente. Numas das escolas, um grupo de professores, todos estu-

dantes como eu, conseguiu traçar linhas de ação conjunta, produzir

material didático, criar uma biblioteca, fazer cruzamentos entre

disciplinas distintas (História/Geografia/Português), realizar ativi-

dades culturais nos fins de semana (idas a cinema, teatro, seguidas

de discussão em grupo sobre as percepções dos alunos). Em outra,

chegamos a criar um grupo de teatro. Obviamente, tudo isso era

muito difícil em tempos de intensificação da repressão. Os diretores

não apoiavam as atividades e queriam nos trazer para o padrão tra-

dicional de ensino... E nós, grupo ativo de professores, estávamos

lendo Paulo Freire, tentando adaptar seu método, dizendo que pro-

fessor não ensina, só ajuda aluno a aprender, estimulando os estu-

dantes a ler jornal, a discutir questões de conjuntura na sala de aula,

escolhendo livros didáticos que propunham uma nova leitura da

158LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

história brasileira. Buscávamos estimular e exercitar a curiosidade

e criatividade das crianças e adolescentes.13 Guardadas as devidas

proporções, animava -me a possibilidade de atuar em escolas onde

se pudesse fazer uma formação de qualidade, não para a elite, mas

para os trabalhadores e seus filhos.

No entanto, acabei seguindo para outros rumos...

O MESTRADO E O RURAL BRASILEIRO SOB OUTROS ÂNGULOS

Em 1971, já no último ano da graduação, tinha claro que faria o

mestrado para minha profissionalização como professora e pesqui-

sadora, e buscava uma opção de tema de pesquisa.

Tinha claro o desejo de continuar estudando o meio rural

mas sob uma outra ótica, distinta da que vinha exercitando com

Maria Isaura Pereira de Queiroz. Buscava um olhar que partisse da

abordagem marxista e me colocasse no campo de debates trazidos

pela minha experiência com a Ciência Política e a Sociologia do

Desenvolvimento. Por isso, procurei para me orientar o professor

José de Souza Martins.

Martins, nesse momento, era bastante jovem (tinha pouco

mais de 30 anos) e acabava de ser credenciado como professor da

pós- graduação. Era ligado a Florestan Fernandes, a Luiz Pereira e às

preocupações desses pesquisadores referentes às particularidades

do capitalismo brasileiro. Embora já tivesse sido aluna de Martins

na disciplina Sociologia I, quando do meu ingresso na FFCL/USP,

13 Nesse momento foi importante e estimulante o uso de um livro didático bas-

tante inovador (e, por isso, talvez não reeditado) escrito por Ilmar Rohloff de

Mattos e colegas (Mattos; Dottori; Silva, 1972).

159LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

e conhecido seu rigor, por vezes mesclado com rispidez em relação

aos estudantes, ele se tornou uma possibilidade concreta de orien-

tação quando o vi expondo, em 1971, numa reunião da Sociedade

Brasileira para o Progresso da Ciência, em Curitiba, um trabalho

sobre frentes de expansão e frentes pioneiras, depois publicado no

livro Capitalismo e tradicionalismo (Martins, 1975). Na comunica-

ção se desenhava a abordagem que me fascinava e se contrapunha

àquela de Maria Isaura Pereira de Queiroz: tratava -se de, a partir de

um ponto de vista sociológico, entender “quais as relações sociais

que tornam singular o sistema social na zona pioneira” (Martins,

1975, p. 44). Esta era compreendida como instauração de um em-

preendimento econômico, que tinha como ponto de partida a

propriedade privada da terra, impondo a “mediação da renda da

terra entre o homem e a sociedade” (Martins, 1975, p. 47). Nessa

concepção estava embutida uma questão que me aparecia como

central: as tensões de classe que emergiam com a transformação da

terra em mercadoria, mas que eu só conseguia perceber, naquele

momento, em termos bastante abstratos.

Aprovada na seleção, comecei o mestrado em 1972. Na USP

não entrávamos no “programa de pós”, mas sim éramos aceitos

por um orientador. Era que ele quem escolhia seus orientandos,

segundo critérios por ele definidos e, dentro da tradição da insti-

tuição, tinha plenos poderes sobre os estudantes. Na sua primeira

seleção, Martins selecionou oito candidatos, alguns de São Paulo,

outros de diferentes partes do Brasil, uma vez que a excelência da

Universidade de São Paulo e a escassez de mestrados no país a tor-

navam um polo de atração para jovens pesquisadores. Dessa turma

fizeram parte, entre outros, Rubem Murilo Leão Rego, Walquiria

Domingues Leão Rego, Élide Bastos, Candido Vieitez (colega de

160LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

graduação e de muitas calorosas discussões teóricas e que havia

feito comigo os cursos ministrados por Maria Isaura Pereira de

Queiroz), José Vicente Tavares dos Santos, Camilo, Mirna.14 Com ex-

ceção dos dois últimos que abandonaram o mestrado em momen-

tos diferentes, por diversas razões (a maior parte delas ligadas ao

“modo USP de ser”), os demais fizeram carreira acadêmica. Mais

do que colegas, nos constituímos em grupo de amigos e de estudo,

de discussão das grandes questões nacionais, das dificuldades que

a vida nos reservava num contexto de forte repressão política, de

jantares e festas inesquecíveis, de idas ao cinema e ao teatro.15

Martins defendia uma Sociologia das Sociedades Agrárias em

oposição à ideia de uma Sociologia Rural, tal como formulada pelo

empirismo norte-americano, disseminado nas escolas de agrono-

mia, por um lado,16 e pela escola francesa, da qual se aproximava

Maria Isaura Pereira Queirós, por outro.17 Voltava -se contra a ten-

tativa de formular o objeto dessa sociologia como uma realidade à

parte, universo sui generis, componente de uma dualidade rural/

14 Infelizmente, não lembro o sobrenome desses dois colegas. Mesmo assim,

acho importante referenciá -los.

15 Desse grupo, não fazia parte Candido Vieitez, que ao longo da convivência no

mestrado era bastante retraído em relação à vida social. Como os anteriormente

citados, abandonou o mestrado na USP e o tema original, caminhando para

estudos sobre assuntos ligados à Educação.

16 O representante dessa corrente com quem tivemos contato de leitura, num

curso oferecido por Martins, era Everett Rogers.

17 Maria Isaura Pereira de Queirós difundiu no Brasil os trabalhos de Henri

Mendras sobre Sociologia Rural. Ver, por exemplo, a coletânea Sociologia rural,

por ela organizada (Queiroz, 1969). Na introdução, ela se posicionava critica-

mente em relação à sociologia americana, mas mostrava também seus pontos de

divergência com Mendras.

161LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

urbano; procurava também mostrar como o que ele considerava,

inspirado em Robert Nisbet, o caráter conservador da origem da

sociologia se explicitava nos temas por ela eleitos e nas dualidades

nela presentes.18

,

O interesse principal das reflexões de Martins era desvendar a

singularidade da realização do capitalismo que, no caso do Brasil,

segundo o autor, reproduzia ou convivia com formas de produção

que não lhes eram próprias, formas não capitalistas. Tratava -se de

uma preocupação derivada das reflexões de Florestan Fernandes

e alimentada pela aproximação de Martins com o marxismo

lefebvriano.19 Ao longo da disciplina, lemos Marx (capítulos de O

Capital, em especial “A Mercadoria”, e a parte referente à renda

da terra, na qual começamos a realmente nos enfrentar quer com

as dificuldades teóricas do texto, quer com a reflexão sobre suas

implicações para entender a questão fundiária no Brasil). Lemos

também Kautsky (A questão agrária), Lenin (O desenvolvimento

18 Esse foi um dos temas centrais do curso Sociologia das Sociedades Agrárias mi-

nistrado por Martins aos seus orientandos em 1973. Grande parte dos textos lidos

está na coletânea Introdução crítica à sociologia rural, editada pela Hucitec, em

1981. Do ponto de vista teórico, os inspiradores de Martins eram Karl Mannheim

(1963), então bastante lido na USP e referência também para Luiz Pereira, e

Robert Nisbet (1969), que analisava o que ele chamava de ideias elementos da

Sociologia, como uma alternativa à aproximação da história dessa ciência pelos

autores ou pelos sistemas. Assim, partia de cinco ideias elementos para analisar a

tradição sociológica: Comunidade, Autoridade, Status, Sagrado e Alienação.

19 Em 2013 participei de um Seminário na USP em homenagem a José de Souza

Martins, no qual apresentei um texto que aborda a continuidade das reflexões

de Florestan em Martins (Medeiros, 2018a). Nele exploro um pouco mais a ideia

de produção capitalista de relações não capitalistas de produção e as influências

sobre esse autor do pensamento de Henri Lefebvre. As apresentações do seminá-

rio, acrescentadas de outros artigos, foram publicadas num livro organizado por

Fraya Frehse, que também organizou o referido evento. Ver Frehse, 2018.

162LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

do capitalismo na Rússia), Rosa de Luxemburg (A acumulação do

capital), Lefebvre (obras que apresentavam conceitos de Marx e

de Lenin e que se constituíram num importante guia para a leitura

desses autores)20.

O desafio que se colocava para assumir essa abordagem como

eixo de reflexão teórica e caminho para a pesquisa era o conheci-

mento do paradigma marxista com o qual, de alguma forma, eu e

meus contemporâneos tínhamos tido contato num nível extrema-

mente superficial na graduação. Falávamos das categorias marxis-

tas, mas não sabíamos bem como utilizá -las em análises “concretas

de situações concretas”. Muitas vezes o fazíamos por meio da versão

didática e de corte estruturalista de Marta Harnecker, com a qual

travei meu primeiro contato nos cursos de Luiz Pereira. Pouco sabí-

amos sobre o método dialético. Dessa perspectiva, Henri Lefebvre

foi uma importante descoberta e contraponto.

Diante dessas dificuldades teóricas, alguns colegas de mes-

trado e eu, em 1973, iniciamos, por conta própria, a leitura de O

Capital. Essa opção, aliás, estava sendo feita por diversos grupos

de estudantes de pós- graduação: os grupos de leitura proliferavam

na USP e na PUC/SP, representando um grande esforço de pesso-

as ansiosas por fazer uma “ciência crítica”, comprometida com a

transformação da sociedade. Sem dúvida, num quadro de extremo

20 Destaco em especial a introdução de Lefebvre ao pensamento de Lenin, es-

crita em 1955 (Lefebvre, 1977) e sua proposta de leitura sociológica de Marx

(Lefebvre, 1969). Também por indicação de Martins, mas não como bibliografia

de curso, li outro livro de Lefebvre, que me marcou muito, sobre as transfor-

mações ao longo de 400 anos da região de Campan na França, publicado pela

Presses Universitaires de France em 1963 e mais recentemente traduzido pela

Edusp (Lefebvre, 2011).

163LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

fechamento político, com intensa repressão, essa era uma opção

política ou, pelo menos, assim o percebíamos na época. Ler O Capital

aparecia-nos, para além da apropriação das categorias centrais do

pensamento marxista, como forma de resistência, como caminho

para a produção de conhecimento por meio de um modo de pensar

a realidade que implicava ação sobre ela.21 Essa opção era, eviden-

temente, eco do lendário grupo de leitura de O Capital que reuniu,

no início dos anos 1960, José Arthur Gianotti (Filosofia), Fernando

Henrique Cardoso (Sociologia) e Fernando Novais (História) e que

agregou, entre outros, Octávio Ianni (Sociologia), Bento Prado Jr

(Filosofia), Roberto Schwarz (Literatura), Paul Singer (Economia),

Ruth Cardoso (Antropologia), Michel Lowi (Filosofia).

Para os que tinham a “questão agrária” como objeto de estudo,

muitos eram os problemas trazidos por essa leitura. Em primeiro

lugar, tratava -se de dar conta de conceitos básicos como valor,

mais valia, trabalho concreto, trabalho abstrato, capital constante,

capital variável, entre outros, e, por meio deles, obter o instrumen-

tal necessário para entender as reflexões de Marx sobre a renda da

21 Um diálogo com os tempos atuais: apesar do contexto repressivo, das recor-

rentes notícias de colegas e mesmo de professores que haviam sido presos, nos

corredores e nas salas dos barracões, tínhamos liberdade de diálogo. Apesar de

sussurros sobre a presença de “infiltrados” nos corredores, parece que a ditadura

estava mais preocupada com ações concretas. Após a cassação de uma série de

professores em 1969 e de algumas prisões nos anos que se seguiram, os cursos

prosseguiam dentro de uma certa “normalidade possível”. Claro, possivelmente

havia um medo introjetado, mas o fato é que tínhamos acesso à literatura mar-

xista e, cada vez mais, em português. Chamo a atenção para a publicação, ainda

no final dos anos 1960, da tradução de O Capital e também das obras de Gramsci,

pela Civilização Brasileira, uma das editoras mais perseguidas (com negativa de

empréstimos públicos, apreensão de livros, entre outras sanções), mas muito ati-

va no regime militar.

164LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

terra e responder a um conjunto de questões. O capitalismo “pene-

trava” ou se “desenvolvia” no campo e, no entanto, não generalizava

as relações de produção “tipicamente” capitalistas, ou seja, o traba-

lho assalariado. A “pequena produção” parecia ter “ainda” um sig-

nificado econômico e social importante, em todas as suas formas

(pequena propriedade, posse, parceria, arrendamento), apesar das

profecias sobre seu desaparecimento.22 O assalariamento tendia a

crescer, mas sob forma de trabalho temporário, gerando um con-

tingente que alternava trabalho agrícola com “biscates”, trabalho

urbano ou mesmo desemprego.23 A forte concentração da proprie-

dade da terra permanecia ou até mesmo se intensificava, ao longo

do processo de crescente modernização tecnológica. As relações

de produção, salvo em áreas onde se verificava um processo mas-

sivo de expropriação e expulsão, mantinham o mesmo padrão que

uma década antes provocara sua classificação como “semifeudais”.

Essa complexidade nos instigava, mas a ênfase era colocada nas

categorias produção e reprodução das relações de produção, lidas

estritamente sob a ótica da reprodução do capital. Só mais tarde

consegui perceber melhor as dimensões de poder, das formas de

dominação envolvidas nesse processo, que não se explicavam

22 As aspas referem -se a termos correntes no debate da época. Ganhava espe-

cial relevo a discussão sobre a “pequena produção” que se referia a uma forma

considerada não capitalista, presente na sociedade brasileira, e que muitas vezes

era identificada com o campesinato, categoria destinada à extinção para autores

como Marx, Lenin, Kautski.

23 Um dos livros de grande sucesso na época e que causou grandes polêmicas foi

O boia-fria. Acumulação e miséria, de Maria Conceição D’Incao (D’Incao,

,

1975).

Nele, a autora procurava analisar o surgimento do boia-fria como uma manifes-

tação histórica da contradição básica do capitalismo e apontava a possibilidade,

no seio desse contingente, de uma “prática negadora do sistema”.

165LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

somente a partir do desvendamento da dimensão capitalista (ou

não) dessas relações.

Tratava -se de dar conta do não “típico”, sem entendê -lo como

resquício de um modo de produção anterior ou como algo irremedia-

velmente condenado ao desaparecimento. Desenvolvia -se então (e

Martins era um dos que mais avançavam nessa direção) a tese da re-

produção capitalista de relações não capitalistas de produção, dife-

renciando -se enfaticamente o não capitalista de pré-capitalista.24 O

debate era ainda alimentado pela discussão sobre o caráter desigual

desse desenvolvimento, sempre tendo como fonte os clássicos mar-

xistas: Lenin (que tratava da necessidade histórica da diferenciação

do campesinato), Rosa de Luxemburgo (a reprodução ampliada do

modo de produção capitalista depende de um meio não capitalista

para dele se alimentar) e o próprio Marx, por meio das discussões

sobre as condições para que o trabalho se antepusesse livremen-

te diante do capital. Essas eram leituras obrigatórias para os que

buscavam entender a complexidade das relações de produção no

campo, tema por excelência do início dos anos 1970. A elas se so-

mava o seminal texto sobre as formações econômicas pré-capitalis-

tas de Marx que nos chegava por meio de uma edição do Cadernos

Passado y Presente e que continha uma importante introdução es-

crita por Eric Hobsbawn (Marx; Hobsbawn, 1972).

Outra dimensão da nossa reflexão era a teoria da renda fun-

diária, caminho para entender o significado econômico e político

24 O termo pré-capitalista, recusado por Martins, supunha que o capitalismo ten-

deria a hom*ogeneizar as relações de produção no campo. O seu interesse maior,

na trilha de Florestan Fernandes, era justamente pelos fenômenos singulares,

marcados pela historicidade das formas concretas de realização do capitalismo.

166LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

da propriedade da terra e do que entendíamos como “bloqueio” ao

desenvolvimento das relações capitalistas no campo. Também so-

bre essa discussão Martins tinha uma influência muito grande, na

medida em que talvez tenha sido pioneiro no Brasil em retomá -la

para, a partir dela, refletir sobre alguns aspectos de história agrá-

ria brasileira (a constituição da propriedade capitalista da terra no

país e as tensões sociais decorrentes).25 O problema central que se

colocava era o de entender a renda absoluta, vista como resultado

da apropriação privada do solo e da baixa composição orgânica do

capital aplicado nas atividades agrícolas. Tratava -se de um debate

com duas dimensões: de um lado analisava -se a existência da pro-

priedade privada da terra como fator de elevação dos preços dos

produtos agrícolas e entrave para a livre aplicação de capitais na

agricultura. De outro, com base em Lenin, destacava -se o poder

político dos proprietários fundiários e a dificuldade da nacionali-

zação do solo, à medida que esta passava a se constituir, a partir de

um determinado momento histórico, em ameaça a todas as formas

de propriedade (Lenin, 1973 e 1978).

Todo esse conjunto de questões teóricas (com implicações

políticas) permeavam minhas tentativas de construir um obje-

to de pesquisa para a elaboração da dissertação de mestrado, até

então vagamente definida como sendo o estudo das condições do

desenvolvimento do que se considerava um dos bolsões de atraso

do estado de São Paulo: o Vale do Ribeira. Este tema era diretamente

derivado da problemática “desenvolvimento/subdesenvolvi mento”,

tal como colocada por Luiz Pereira.

25 Esse foi o tema de um livro seminal: O cativeiro da terra (Martins, 1979).

167LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

As dificuldades com a forma de orientação dos estudantes

adotada por Martins (marcada ao mesmo tempo pela autonomia

que nos era concedida e pela falta de um diálogo mais intenso), a

ruptura da quase totalidade dos orientandos com ele, com pedido

de tutela coletiva provisória à Comissão de Pós- graduação da USP

em início de 1974, me levaram à mudança de orientador.26 Não es-

tava colocada em questão nem a qualidade acadêmica de Martins

nem o meu desejo de fazer mestrado, mas a constatação de que o

diálogo tanto acadêmico como pessoal ficara travado.

Para os que optaram por orientadores da Sociologia, a pas-

sagem foi direta. No meu caso, optei por um professor da Ciência

Política e precisei fazer nova seleção, com garantia de que, se apro-

vada, teria reconhecidos os créditos em disciplinas. Reingressei no

mestrado em 1975, sob orientação de Braz José de Araújo. Recém-

chegado de Paris, onde fizera o doutorado com Nicos Poulantzas, ele

estava muito interessado nas discussões sobre o agrário no Brasil.

A essa altura, eu já havia abandonado as preocupações com

o tema original e cada vez mais me aproximava de uma aborda-

gem mais propriamente política do rural, sem deixar de lado as

antigas preocupações. Ainda em diálogo (indireto) com as teses

de Martins, defini o debate em torno da reforma agrária nos anos

26 Como já apontado, compunham esse grupo, além de mim: Elide Rugai Bastos,

Walquíria Domingues Leão Rego, Rubem Murilo Leão Rego, Candido Giraldez

Vieitez. Já havia sido desligada, em 1973, de forma compulsória, a colega Mirna.

Sobre esse episódio pairava um silêncio sepulcral, mas ele refletia a forte hierar-

quia e os resquícios do peso da cátedra na cultura uspiana. O fato de todo o grupo

ter prosseguido na vida universitária indica não só que tínhamos algum poten-

cial, mas que também resistimos juntos às relações de poder que eram parte da

cultura institucional da universidade. Aziz Ab’Saber, então diretor da FFCL/USP,

referendou nossa demanda e garantiu nossa continuidade na pós- graduação.

168LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

1950/1960 como tema da dissertação. Inspiraram -me suas afirma-

ções de que “através de procedimentos políticos e legais, portanto,

as classes dominantes podem submeter a questão agrária ao rótulo

de demanda social por reforma agrária. Isto é, o problema real é

reduzido à visão que aquelas classes têm sobre os conflitos sociais”

(Martins, 1975, p. 54), o que me conduziu para outras questões teó-

ricas e exercício de novas metodologias de pesquisa.

Continuei o esforço de operar a partir de categorias marxis-

tas, mas tentando atualizá -las e problematizá -las, ainda sob forte

influência das reflexões de José de Souza Martins, para responder

à complexidade das relações sociais no campo e entender o lugar

da agricultura no desenvolvimento do capitalismo. Duas linhas de

interpretação se configuravam então e polarizavam os estudiosos

com quem tínhamos contato mais direto na USP. Uma delas apon-

tava para uma tendência à expansão do assalariamento no cam-

po, à unificação dos custos de mão de obra e, em consequência,

à modernização da agricultura e à proletarização. Nessa corrente

ganhavam destaque Vinicius Caldeira Brant e Maria da Conceição

D’Incao. A outra defendia a vitalidade da “pequena produção” e

procurava refletir sobre as condições de sua reprodução, entendida

como produto do próprio desenvolvimento do capitalismo. Ambas

tinham como interlocutores, de forma mais ou menos explícita, os

autores que, na década anterior, apontavam para o caráter semi-

feudal do campo brasileiro (como Alberto Passos Guimarães, por

exemplo); os que recusavam essa tese, enfatizando o caráter capi-

talista das relações de produção no campo (Caio Prado Jr) e os que

discutiam as particularidades do capitalismo brasileiro, em espe-

cial a “produção capitalista de relações de produção não capitalis-

tas” (José de Souza Martins). Neste momento eu desconhecia, uma

169LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

vez que pouco discutidas

,

na USP, as pesquisas e debates realizados

no Programa de Pós- graduação em Antropologia Social do Museu

Nacional sobre campesinato.

Se esse era o debate na sua forma acadêmica, é essencial assi-

nalar seu recorte político: qual a natureza da questão agrária brasi-

leira? Seria possível pensar em aliança operário-camponesa se esta

última era uma classe irremediavelmente condenada ao desapare-

cimento? Não estaria se constituindo no campo uma classe operá-

ria que anunciava uma era de transformações mais profundas? Se

estava em curso um processo de proletarização no meio rural, fazia

sentido ainda falar em reforma agrária? Quais segmentos tinham

sido os protagonistas das lutas no campo no período que antecede-

ram o golpe?

Sob orientação do professor Braz Araújo, comecei a refle-

tir sobre as relações entre Estado e agricultura, especialmente do

ponto de vista do que era então pensado como “inviabilidade” do

desenvolvimento do capitalismo no campo, tendo em vista a “troca

desigual entre agricultura e indústria”, tema fartamente discutido

pelos estudiosos do rural. Mais uma vez minhas preocupações se

dirigiam para as questões de caráter estrutural e que eram sinteti-

zadas na discussão em torno dos obstáculos à acumulação de capi-

tal na agricultura.

Constituímos, sob orientação desse professor, um novo grupo

de leitura de O Capital, no qual as indagações antigas sobre o cará-

ter das relações de produção se somavam às novas, sobre as condi-

ções da acumulação capitalista no Brasil. Esse grupo era composto

por orientandos de Braz Araújo: além de mim, José Manoel Baltar,

Leila Maria Blass, Maria Alice Setúbal de Souza e Silva, Ricardo

170LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Abramovay, Volia Regina Kato e Walquíria Domingues Leão Rego,

esta também ex-orientanda de Martins.27

Neste momento, eu já havia elaborado um longo texto intitu-

lado Síntese das análises das classes sociais no meio rural brasileiro,

apresentado num seminário da PUC/SP. Nele percorri uma vasta

bibliografia e discuti centralmente o tema da natureza das relações

de produção, em especial o lugar do campesinato, definido como

produtor simples de mercadorias e proprietário de seus meios de

produção. A conclusão a que chegava era a da presença constan-

te do dualismo nas análises: tradicional/moderno, campo/cidade,

feudalismo/capitalismo, semicapitalismo/capitalismo. Apontava

ainda que a superação desse dualismo só se dava quando a ótica

privilegiada era a da reprodução do capital e as classes eram es-

tudadas como um sistema de relações contraditórias produzidas

no interior do modo de produção capitalista. O trabalho também

fazia crítica ao modelo em que muitas vezes se transformou o modo

de produção capitalista, sendo que tudo o que não se enquadras-

se no binômio salário/capital era considerado “impuro” ou “atí-

pico”. Ou seja, também aí retomava a reflexão sobre a necessidade

de dar conta das relações que escapavam aos modelos analíticos e

que cada vez mais demandavam uma problematização. Num tex-

to seguinte, O desenvolvimento do capitalismo no Brasil, avançava

27 Mesmo após o professor deixar de acompanhar o grupo, continuamos nos

reunindo, uma vez por semana, discutindo, a cada encontro, alguns capítulos.

Nesse processo conseguimos fazer a leitura de todos os volumes editados pela

Civilização Brasileira, mas não tivemos fôlego para prosseguir e explorar outros

textos de Marx. É interessante notar que Martins também constituiu um pou-

co depois um grupo de leitura do mesmo autor. Destaco esse fato, para mostrar

como, em meados dos anos 1970, conhecer o pensamento de Marx era visto

como fundamental em nossa formação teórica.

171LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

incorporando um debate mais contemporâneo europeu, em espe-

cial autores como Louis Perceval (1969), Pierre-Philippe Rey (1973)

e Álvaro Cunhal (1968), autores a que tive acesso por meio de

Braz Araújo.

A revisão da bibliografia também me trouxe para o tema da

reforma agrária. Esta era vista por vários autores consultados como

o caminho para superar os restos feudais da agricultura e promo-

ver a “liberação das forças produtivas” e o desenvolvimento do

capitalismo no campo. Tratava -se de uma discussão essencialmen-

te política e normativa.

Não foi difícil constatar como o debate sobre a reforma agrária

foi decisivo na conjuntura que precedeu o golpe empresarial mili-

tar de 1964 e como diversas forças sociais se mobilizavam em torno

dela. Foi por esse viés, cruzado com a problemática das condições

em que se dava o desenvolvimento do capitalismo no campo, que

defini o tema da minha dissertação de mestrado: a luta em torno da

reforma agrária nos anos 1950 e início dos anos 1960. A pesquisa

para a dissertação foi iniciada em 1976, mas só foi finalizada em

1982. Os compromissos profissionais por mim assumidos (tratados

mais adiante) retardaram bastante seu término. Do ponto de vista

que interessa aqui, isso significa que ela atravessou um largo perí-

odo de amadurecimento profissional, contato com novos temas e

abordagens, novos grupos de pesquisa, o que implicava que cada

retomada da dissertação me obrigava a uma revisão crítica do que

já fora feito.

Na construção do objeto de estudo, retomei minhas preocupa-

ções teóricas, mas procurei lê -las sob a ótica das relações políticas.

Chamou -me a atenção o debate, de inspiração leninista, que come-

çava a tomar corpo no Brasil, sobre as “vias” de desenvolvimento

172LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

capitalista. Nesse momento, as leituras que havia feito de e sobre

Gramsci, tanto na graduação quanto no mestrado, mostraram -se

particularmente frutíferas.28 Trabalhando com os conceitos de he-

gemonia e correlação de forças, procurei escapar das teses que

utilizavam as “vias” como modelos estáticos de desenvolvimento.

Em Gramsci, consegui perceber um caminho para a recuperação

da história, a necessidade de trabalhar com o particular, de veri-

ficar, em cada conjuntura, os desdobramentos das lutas de classe.

Tentava abrir caminho para pensar os resultados do desenvolvi-

mento do capitalismo no Brasil fora do dilema “via prussiana” ou

“via farmer” e, assim, manter a reflexão sobre as particularidades

do Brasil, que, desde o contato com Martins, me era muito cara.

Que latifúndio era esse que fazia demandas ao Estado que

levavam à modernização tecnológica? Que burguesia era essa que,

no seu desenvolvimento, tinha um pé fortemente preso nas ativi-

dades agrícolas? Interessava -me recuperar a dimensão política da

questão agrária. No decorrer da pesquisa apareceu -me a questão

de como, em algumas conjunturas, determinadas classes podem

se apropriar das demandas de outras, redefinindo-as. Sob essa óti-

ca, procurei equacionar o significado da questão agrária para cada

uma das forças presentes, sua transformação em projetos de re-

forma agrária e o seu desdobramento numa conjuntura bastante

particular, de crise de hegemonia, em que eu procurava mostrar os

limites conjunturais das alianças políticas. O movimento operário

28 Neste período (1976-1977) o estudo de Gramsci era recorrente na USP, sendo

utilizado como crítica em relação ao estruturalismo althusseriano. Meu contato

com esse autor, como já explicitado, se deu por meio das disciplinas ministradas

por Francisco Weffort e que cursei tanto na graduação como no mestrado.

173LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

lutava dentro de organizações que a literatura dizia serem tuteladas

pelo Estado: os sindicatos. Procurava -se, do ponto de vista interpre-

tativo corrente, enquadrar o movimento camponês dentro desses

mesmos limites. Ao mesmo tempo, a burguesia industrial mostrava

na sua prática de classe que transformações na estrutura da pro-

priedade da terra não lhe eram particularmente importantes. Foi

na elaboração desse trabalho que a questão das lutas no campo co-

meçou a me despertar interesse. Voltei -me mais sistematicamente

,

pelo recentemente publicado Late Capitalism

de Ernest Mandel, numa versão revisada no inglês em 1976.

Tudo isto convivia desconfortavelmente com a literatura de

segunda geração das teorias de dependência que dominava os es-

tudos latino-americanos e que oferecia uma continuação mais so-

ciológica à análise da CEPAL da Raul Prebisch do subdesenvolvi-

mento estrutural na América Latina que, na sua análise, resultava

da integração com os mercados globais por meio da exportação de

matérias-primas. Os textos curriculares fundamentais neste caso

eram de Teotônio dos Santos, Cardoso e Faletto e, sobretudo, de

Gunder Frank, que se inspirava no marxismo de Baran e Sweezy, e a

Monthly Review. No IMG, formamos um Comitê Latino-Americano,

cujos nomes principais eram David Booth e Ronnie Munck, e publi-

camos uma análise “trotskista” do desenvolvimento/subdesenvol-

vimento latino e contribuímos com artigos ao periódico do grupo,

que à época era chamado “Black dwarf” ou “Red mole”, não exata-

mente títulos ideais para o nosso “entrismo”.

20JOHN WILKINSON

Fernando Henrique Cardoso apresentou as suas perspectivas

sobre o capitalismo dependente num número da New Left Review,

em 1972, mas o principal debate neste periódico focalizava a in-

sistência de Bill Warren (1973) sobre a importância do desenvolvi-

mento capitalista na periferia, parcialmente confirmada por Arghiri

Emmanuel (1975), mas contestada por Phil McMichael, James Petras

e Robert Rhodes, (1975). Phil McMichael seria depois uma perso-

nagem-chave nos estudos agrários com o seu trabalho, juntamente

com Harriet Friedmann, sobre a teoria dos “regimes alimentares”

que empregava a Teoria Francesa de Regulação e a abordagem de

Wallerstein sobre Sistemas Mundiais. Robert Brenner (1977) ofere-

ceu o que muitos consideravam ser um panorama decisivo da aná-

lise de Gunder Frank, Sweezy e Wallerstein do desenvolvimento do

capitalismo, que ele caracterizou como sendo “smithiana”, inter-

pretação esta rebatida com vigor por Sweezy (1978).

Em 1972, uma edição da New Left Review dedicou dois arti-

gos críticos ao trabalho de Althusser, escritos por Norman Geras e

André Glucksmann. No mesmo ano, houve o nascimento do pe-

riódico Economy and Society, sob a liderança de Barry Hindess,

promovendo as tradições marxistas estruturalistas francesas de

Althusser e os debates marxistas sobre antropologia econômica –

Claude Meillasseux, Emmanuel Terray e Harold Wolpe. O próprio

Hindess, com Hirst, publicou Pre-Capitalist Modes of Production,

em 1975. Quijano também escreveu para a Economy and Society

sobre o tema “The marginal pole of the economy and the margina-

lized labour force”, em 1974. Enquanto me fascinava a ideia da arti-

culação dos modos de produção e embora tenha tido dificuldades

21JOHN WILKINSON

com Hindess e Hirst,2 fiquei empolgado ao ler o que para mim era a

crítica devastadora de Althusser por E. P. Thompson em The Poverty

of Theory, que saiu em 1978, e que me libertou de qualquer sensa-

ção de obrigação em tentar desvendar as sutilezas conceituais do

estruturalismo marxista.

Antes de chegar à Bahia, em maio de 1977, fiz uma parada

de duas semanas em Belo Horizonte, onde me reencontrei com

Bernardo Sorj, com quem cruzara rapidamente em Liverpool ou

Manchester, ocasião em que tivemos um típico debate marxis-

ta, com um defendendo Rosa Luxemburg e, o outro, Trotsky. Sorj,

posteriormente, seria uma grande influência na minha carreira e

parceiro na pesquisa e em numerosas publicações. Na Bahia, rapi-

damente me fiz parte da rede de extensão rural Emater, e comecei

a trabalhar na Secretaria de Agricultura e com a sua equipe de

Planejamento Agrícola, Cepa. Por razões não muito claras a mim

nem na época nem agora, nunca me integrei no ambiente da

Universidade na Bahia. Já sabia espanhol, depois de um ano em

Barcelona e em Madri, e consegui começar o trabalho de campo

em português três meses depois.

Quando apresentei o meu “problema” à equipe da Cepa, fi-

cou claro que a minha ideia de investigar a funcionalidade da

agricultura de subsistência na acumulação de capital precisaria

enfrentar a sua política central de levar crédito e assistência técni-

ca ao setor agrícola de baixa renda. O Banco Mundial estava bem

2 Poucos anos antes de iniciar o meu Mestrado, fui aceito por Barry Hindess para

um PhD sobre Merleau Ponty, mas não consegui obter uma bolsa. Este interesse

em Merleau Ponty era mais filosófico (e presunçoso, como rapidamente percebi)

e àquela altura não representava um afastamento meu do marxismo.

22JOHN WILKINSON

ativo no Nordeste do Brasil com os seus programas de desenvol-

vimento – Polonordeste e Projeto Sertanejo –, cuja meta central

era transformar o setor de pequenos agricultores por meio da mo-

dernização tecnológica e integração aos circuitos financeiros e de

mercados. Embora a funcionalidade da agricultura de subsistência

para a acumulação do capital fizesse sentido teórico, claramente

não era o objetivo das políticas que estavam sendo implementadas

no Nordeste rural.

Naquela altura, Bernardo Sorj, que havia montado um

Programa de Estudos sobre a América Latina (Pecla), com enfo-

que sobre a agricultura, convidou -me a visitar o seu grupo (que

incluía Odaci Coradini, Antoinette Fredericq, M. J. Pompermayer

e João Maia), e apresentar o meu “problema” que, neste contexto

mais acadêmico e com menor enfoque sobre políticas, foi recebido

como uma questão relevante.

O ano de 1978 marcou uma ruptura fundamental nos estu-

dos rurais na América Latina. Duas atividades de pesquisa em âm-

bito continental foram desenvolvidas, uma por Gonzalo Arroyo,

um ex-jesuíta chileno, e a outra por Raul Vigorito, esta como parte

de um programa mais amplo de pesquisas coordenado por Raul

Trajtenberg. Os dois projetos de pesquisa se originaram no México,

que se tornara refúgio para os perseguidos das muitas ditaduras no

continente, mas tinham filiações diferentes. Vigorito e Trajtenberg

se inspiravam explicitamente na tradição econômica filière, de-

senvolvida na França, que remonta a Perroux e se preocupava

com as dimensões espaciais dos componentes interdependentes

dos subsistemas econômicos. Embora as considerações teóricas

de Gonzalo Arroyo fossem semelhantes, a sua pesquisa focaliza-

va mais especificamente a relação da indústria alimentar com a

23JOHN WILKINSON

agricultura. Ambos os programas de pesquisa tiveram uma pro-

funda influência sobre os estudos rurais no Brasil. Gonzalo Arroyo

convidou a equipe de Bernardo Sorj para desenvolver estudos, que

posteriormente foram publicados numa série da Zahar, organizada

por Bernardo Sorj e Otavio Velho, dentro da estrutura do seu pro-

grama de pesquisa. Geraldo Müller, então na Cebrap, integrou -se à

pesquisa desenvolvida por Vigorito/Trajtenberg.

A ideia central que unia as duas pesquisas era que a agricul-

tura não deveria mais ser analisada como uma esfera econômica

autônoma. Em vez disso, a “agroindústria” passaria a ser o conceito

organizador, com as atividades agrícolas sendo vistas como deri-

vadas das estratégias da agroindústria, sejam elas a montante ou a

jusante. Arroyo e Pecla focalizavam principalmente as indústrias a

jusante, sobretudo nos setores de carnes e de laticínios. Em vez de

um setor agrícola independente que suprisse o mercado, o concei-

to de integração vertical foi desenvolvido para capturar a maneira

como a produção agrícola estava sendo cada vez mais determinada

e controlada pelas exigências das indústrias a jusante, assumindo a

forma de uma cadeia agroindustrial. Aqui, também, o foco não era

tanto na política agrícola, mas sim na estratégia corporativa priva-

da, nacional ou multinacional.

A tradição da filière francesa foi amplamente incorporada

aos estudos da economia industrial brasileira, especialmente na

Universidade de Campinas e na Universidade Federal do Rio de

Janeiro. A

,

DE MEDEIROS

em 1967 e 1972.33 Tal trabalho fora encomendado à equipe pela

Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag),

entidade cuja existência eu desconhecia até então. A interlocução

da equipe com a Contag era feita por meio de José Gomes da Silva,

fundador e presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária

(Abra), que mantinha estreitos vínculos com a entidade sindical e

que era pai de Graziano; de Ossir Gorenstein, assessor de Políticas

Agrícolas da Contag, e, menos intensamente, com Vera Echenique,

assessora educacional e originária do mestrado em Antropologia

Social do Museu Nacional/UFRJ.

A experiência dessa pesquisa foi muito importante para

mim. Foi meu primeiro contato com uma equipe de tradições

distintas de pensamento e multidisciplinar (agrônomos, econo-

mistas, sociólogos, extensionistas).34 Novidade absoluta para quem

se acostumara à rigidez da sociologia uspiana e suas barreiras às

interlocuções interdisciplinares para além do campo das Ciências

Sociais e História.

A necessidade de estabelecer uma linguagem comum entre

os participantes abriu espaço para um debate extremamente rico,

que me obrigava a retomar, de forma cada vez mais indagativa, a

33 Não tínhamos clareza sobre o que podia ser considerado como “pequena pro-

dução”. Usando dados das estatísticas cadastrais do Incra, buscávamos apenas

perceber o que se produzia e quanto nas unidades produtivas por estratos de

área de propriedade.

34 Participavam da pesquisa, além do coordenador (José Graziano da Silva),

Angela Kageyama, Elias José Simon, Fernando de Andrade e Souza, Flávio

Abranches Pinheiro, Maria Helena Rocha Antuniassi, Sonia Maria Pessoa Pereira

(depois Bergamasco) e Toshio Nojimoto, todos do Departamento de Economia

Rural, com exceção de Angela, recém mestre e contratada, assim como eu, so-

mente para a pesquisa.

179LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

bibliografia que eu já percorrera, com questões de caráter teóri-

co, agora interpelando-a à luz de reflexões com base em pesquisa

empírica. Precisei trabalhar exaustivamente com dados quantita-

tivos (algo novo para mim), num esforço de desvendar tendências

(dentro dos limites das preocupações teóricas já apontadas e das

dificuldades inerentes aos próprios dados) que eles indicavam.

Analisamos os dados cadastrais de cada um dos estados do Brasil e

fizemos uma síntese nacional, publicada logo a seguir (Graziano da

Silva, coord., 1978).35

Nesse exercício ficaram patentes os profundos contrastes

que marcavam a agricultura brasileira e o significado da proprie-

dade da terra. Também se evidenciou a importância econômica

da “pequena produção”, seja na forma de propriedade, seja como

arrendamento ou parceria, na produção de gêneros básicos para

alimentação e, em alguns casos, de produtos para exportação.

Ficou ainda explícita a intensa exploração a que esses agricultores

eram submetidos.36 Nossa análise mostrava que ela estava longe

de ser uma produção de “subsistência” e nos indicava algo que, à

época, diagnosticávamos como “debilidade” das transformações

capitalistas na agricultura: “o capital não tem conseguido realizar

35 Em 1980, houve nova edição, indicando a boa repercussão que o trabalho

teve. Os relatórios estaduais foram publicados mimeografados, pelo próprio

Departamento.

36 Desde os anos 1990 o tema voltou à pauta política, procurando -se enfatizar

o peso da agricultura familiar na produção de alimentos. Agricultura familiar e

pequena produção não são exatamente a mesma coisa, mas as aproxima o fato

de ganharem relevo como categorias políticas nos debates sindicais e políticos.

O tema permanece como central nos dias atuais, perante o peso do agronegócio,

mas ganhou uma nova complexidade que não tenho como explorar aqui.

180LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

a expropriação completa do trabalhador, nem revolucionar o pro-

cesso de produção de modo amplo e dinâmico” (Graziano da Silva,

coord., 1978, p. 252). Essa dificuldade era traduzida pelo papel de-

terminante da propriedade da terra; pela persistência e recriação

da pequena produção; pelo peso das políticas de modernização

do Estado, que criavam condições para a capitalização da grande

propriedade; o alto grau de exploração da mão de obra empregada,

seja de assalariados, parceiros, arrendatários ou pequenos proprie-

tários. Coerentes com o debate dominante na época, tentávamos

fugir ao dualismo (compreendido como a existência de dois setores

na agricultura: capitalista/não capitalista) e ao funcionalismo (tese

de que a pequena produção existia somente enquanto servisse aos

interesses do capital), afirmando que, incapaz de gerar lucro e ren-

da da terra, o capitalismo brasileiro abria no meio rural um espaço

para a pequena produção, voltada especialmente para a geração de

alimentos, com forte inserção nos mercados, como nossos dados

claramente demonstravam. Mas reduzíamos os impasses a uma

debilidade do desenvolvimento do capitalismo no campo, sem dei-

xar de apontar os efeitos da desorganização que o golpe represen-

tou para a incipiente articulação dos trabalhadores rurais, mas não

lhe dando a importância que anos depois procurei tematizar.

Naquele momento, investimos muito no trabalho com os da-

dos estatísticos, fizemos um enorme esforço de elaboração teórica,

mas não lembro de, em algum momento, nos termos perguntado e

conversado sobre as razões que levaram a Contag a demandar esse

estudo. Só bem mais tarde, no início dos anos 1990, numa aproxi-

mação com o Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais da

Central Única dos Trabalhadores (DNTR/CUT), é que fui perceber

a importância política da questão, tanto no sentido de afirmar o

181LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

peso econômico da categoria e buscar seu reconhecimento e políti-

cas públicas que a protegessem quanto no que ela refletia de esfor-

ço político interno de unificação da diversidade de segmentos que

compunham o sindicalismo rural e de afirmação da importância

da distribuição de terra, bandeira que a Contag alimentou desde o

final dos anos 1960.

Concluída a pesquisa, apresentamos (em especial Graziano,

liderança incontestável da equipe) os resultados em diversos semi-

nários, levando as reflexões para algumas arenas que alcançámos,

incidindo em especial sobre os debates com agrônomos e econo-

mistas. Diria que nas Ciências Sociais a discussão foi bastante limi-

tada ao âmbito da Sociologia Rural, sem grandes possibilidades de

incidir para fora dele. Afinal, todos participávamos da construção de

um campo de debates bastante fechado em termos de participantes

e de questões. Obviamente, só me dei conta disso muito depois.

Ao mesmo tempo que desenvolvíamos esse esforço de inves-

tigação, o Departamento de Economia Rural da Unesp de Botucatu

polarizava outro tipo de discussão, referente à expansão das

relações de assalariamento no campo. As Reuniões sobre Mão de

Obra Volante na Agricultura, de caráter anual e iniciadas em 1975,

lideradas pela chefe de Departamento, Sonia Maria Pessoa Pereira

(depois Bergamasco), deram visibilidade ao tema. Envolviam al-

guns dos mais importantes pesquisadores sobre o assunto e se

constituíam num significativo espaço de reflexão sobre as trans-

formações que o campo brasileiro vinha sofrendo, em especial o

processo de saída dos trabalhadores do interior das propriedades

182LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

onde viviam como “colonos”, “moradores” ou “agregados”.37Delas

participavam pesquisadores de diversas formações disciplinares,

representantes sindicais, advogados, promotores públicos da área

trabalhista, num diálogo bastante plural.

Como membro da equipe da pesquisa “Estrutura agrária e

produção de subsistência na agricultura brasileira” e ficando em

Botucatu alguns dias na semana, participei desses encontros, aju-

dando inclusive na organização, sob a coordenação da incansável

Sonia Bergamasco.

,

Nesses momentos, também tive um rico apren-

dizado sobre organização de eventos, atividade em que Sonia, até

hoje, é imbatível. Vivenciei, então, duas experiências que poste-

riormente iriam ter muito significado no meu trabalho. Uma delas

foi o contato direto com sindicalistas rurais que frequentavam as

reuniões, em especial os do Rio de Janeiro, o que começou a me

trazer um novo tipo de inquietação, ligada de modo mais imediato

à ação sindical e, de modo mais geral, às práticas de classe. A outra

foi o conhecimento de algumas das pesquisas realizadas no Museu

Nacional, que faziam uma abordagem antropológica de questões

que eu vinha tratando sob uma ótica histórico-estrutural. Até então,

mantinha -me bem distante da Antropologia, área de conhecimento

pela qual não fui atraída ao longo da minha graduação na USP.

Pouco ouvira falar dessa instituição carioca (o que indica, como

37 Quando cheguei a Botucatu, logo me incorporei à equipe que preparava o

segundo encontro. O material desses encontros era publicado, mimeografado,

pelo Departamento. Inicialmente centrados na questão do trabalho rural e na

figura do boia-fria, aos poucos abrigou debates sobre o sindicalismo e sobre re-

forma agrária. A última reunião foi em 1980. Uma seleção desses trabalhos foi

publicada pela editora Polis (Departamento de Economia Rural, FCA/ Botucatu/

Unesp, 1982).

183LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

comentado anteriormente, um certo fechamento dos uspianos às

pesquisas sobre temas afins realizados em outros espaços), mas fi-

quei bastante impressionada com as reflexões que desenvolviam.38

Lado a lado com as pesquisas, tive contato com uma experiência

interessante que era a de professores do Museu Nacional que asses-

soravam os sindicalistas, em especial Afranio Garcia, assessor edu-

cacional da Federação dos Trabalhadores da Agricultura no Estado

do Rio de Janeiro (Fetag/RJ). Essa possibilidade de relação direta

com as organizações sindicais parecia -me algo muito interessante

do ponto de vista acadêmico, pelas novas questões, interpelações e

desafios teóricos que produzia.

Em 1977 foi aberta uma vaga para professor na Unesp de

Botucatu. Candidatei -me e fui aprovada no concurso. Em setembro

de 1977 assumi o cargo e abandonei as aulas na PUC de Campinas.

A partir de então fui morar de vez em Botucatu e tive a oportunidade

de experimentar outras questões, que não elaborei teoricamente,

mas que foram importantes para pensar o modelo de desenvolvi-

mento brasileiro.

No plano mais imediato, as Reuniões sobre Mão de Obra

Volante resultaram, para o Departamento, na elaboração de um

projeto de pesquisa sobre a mobilidade do trabalhador rural e a

progressiva transformação da força de trabalho em mercadoria.

38 Eu já conhecia a tese de doutorado de Moacir Palmeira, cuja leitura me havia

sido indicada por Maria Isaura Pereira de Queiroz, quando ainda era graduanda,

mas não localizava bem o autor na academia brasileira. Não sabia, por exemplo

que ele, voltando do doutorado na França, ligara -se ao Programa de Pós- gradu-

ação em Antropologia Social do Museu Nacional e coordenava uma ambiciosa

pesquisa no Nordeste, sobre emprego e renda que, só bem depois, já trabalhando

em Botucatu, vim a conhecer justamente pela participação de alguns membros

da equipe nesses seminários sobre trabalho assalariado.

184LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Tratava -se de uma demanda do Ministério do Interior (Minter),

interessado em conhecer melhor o tema das migrações internas

e assalariamento.39 Por meio dessa investigação, pude retomar a

experiência de trabalho de campo e fiquei mais atenta a questões

ligadas à organização e à reivindicação desses trabalhadores. A

pesquisa foi realizada em Mato Grosso (municípios de Dourados e

Terenos) e no sul de Goiás, áreas que estavam sendo intensamen-

te transformadas pela entrada da soja. Participei de forma direta e

intensa da pesquisa em Mato Grosso, no ano de 1978, tendo opor-

tunidade então de entrar em contato com situações que não eram

objeto central da pesquisa, mas que me marcaram muito: a peona-

gem e a produção de soja, embora em escala reduzida, em terras

indígenas. No campo, foi possível constatar a rápida transformação

em curso nessas regiões, gerando concentração fundiária, pauperi-

zação e favelização em uma área que fora um projeto de coloniza-

ção no governo Getúlio Vargas no final da década de 1940 (Colônia

Agrícola Nacional de Dourados).

O foco do trabalho era a produção e reprodução das relações

assalariadas, mas com ênfase no tema da mobilidade, uma vez que

as migrações eram constitutivas do perfil da população local. A

mobilidade, como questão teórica, foi tratada a partir das reflexões

39 A relação com o Minter se fez por meio de uma funcionária dessa agência, a

socióloga Ivany Câmara Neiva, que depois fez uma dissertação sobre a Colônia

de Ceres em Goiás e que se tornou uma grande amiga. O trabalho foi coordena-

do por Sonia Maria Pessoa Pereira Bergamasco e contou com a participação de

colegas do Departamento (Elias José Simon, Fernando de Andrade e Souza, José

Matheus Yalenti Perosa) e de pesquisadores contratados exclusivamente para o

trabalho (Alair Molina, por coincidência ex-colega de classe no curso Clássico,

Fernanda Maria Coelho, Isabel de Carvalho, José Amaral Wagner Neto, Leila de

Menezes Stein).

185LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

de Jean Paul Gaudemar (1977). De certa forma, a discussão sobre

a “pequena produção” era retomada por meio da preocupação em

apontar a instabilidade e a dificuldade de acesso mais definitivo à

terra. Parte dos nossos entrevistados era originária de famílias que

tinham tentado os projetos de colonização no Norte, em especial

Rondônia, durante o regime militar, mas não foram bem-sucedi-

dos. Outros vivenciavam a expropriação das condições de trabalho

na própria região, lembrando que, no caso de Dourados, muitos

pertenciam a famílias que, 40 anos antes, tinham ido para a região

em busca de terras, atraídos pela propaganda da Marcha para o

Oeste. Pela primeira vez pude tomar contato com as demandas dos

trabalhadores que acalentavam o sonho de ter terra ou estabilidade

e segurança no trabalho. O trabalho foi publicado (como muitos

outros na época) em formato mimeografado (Departamento de

Economia Rural, FCA/Unesp, 1979).

Além da participação nessa pesquisa, a vivência em

Botucatu me permitiu inúmeros contatos e debates. Estava num

Departamento onde a grande maioria dos professores era cons-

tituída por agrônomos. Ouvia discussões sobre possibilidades de

formas alternativas de agricultura e cheguei a assistir a debates, na

Associação de Engenheiros Agrônomos de São Paulo, em que eram

colocados em questão os parâmetros e os riscos da intensa moder-

nização agrícola que vivíamos, dando sentido histórico e atual ao

tema da sobrevivência e vitalidade do campesinato, mas também

já levantando questões sobre os efeitos perversos da moderniza-

ção. Foi nesse contexto que comecei a tomar contato com um tema

emergente, mas então marginal em especial nos debates socioló-

gicos: o da crítica ao tipo de agricultura estimulado pela revolução

186LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

verde, não só em termos do processo de expropriação que ela gera-

va, mas dos danos ambientais.

Também participava ativamente de um grupo que se reunia

regularmente na Unicamp e discutia questões agrícolas e agrárias.

Dele faziam parte José Graziano da Silva (que havia se transferido

de Botucatu para o Instituto de Economia daquela universidade,

onde fazia o doutorado); Angela Kageyama, que havia sido minha

colega de pesquisa em Botucatu; Renato Maluf, hoje meu cole-

ga no CPDA; Sérgio Silva; Maria Nazareth Wanderley, que estava

então chegando do exterior e depois se tornou minha orientado-

ra de doutorado; Sonia Bergamasco, colega de departamento em

Botucatu. Era um clima instigante de debate, num grupo peque-

,

no (ironicamente chamado por alguns economistas da Unicamp

de “grupo do matinho”) que também realizava reuniões maiores e

seminários com pesquisadores de outras instituições. Nesse gru-

po, aprofundávamos a discussão sobre as mudanças pelas quais o

campo brasileiro vinha passando, as transformações no trabalho e

o aparecimento da agroindústria.

Além disso, ainda frequentava as reuniões na Associação dos

Sociólogos do Estado de São Paulo (Asesp), que estava sendo ativa-

da na época e abrigava um grupo que envolvia jovens acadêmicos

que tinham as questões do campo como seu objeto de pesquisa.

Entre eles, Ana Yara Paulino, Marilda Iamamoto, Paulo Roberto

Martins, Teresa Sales, Vera Chaia. Reuníamo-nos com regularida-

de para discutir textos publicados e também nossos incipientes

projetos de pesquisa. Em 1983 foi realizado, por iniciativa desse

grupo, um importante Seminário, posteriormente publicado pela

própria Asesp, intitulado Revisão crítica da produção sociológica

voltada para a agricultura. Nele apresentei um texto que continha

187LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

algumas ideias desenvolvidas na minha dissertação de mestrado

(Medeiros, 1984).

Menciono todos esses eventos porque eles estão na origem

da constituição de uma rede, ainda hoje bastante articulada, de

pesquisadores do mundo rural. Como já salientei, por vezes era

uma interlocução fechada, que nos levava a um diálogo intenso

entre os estudiosos do tema e pouco aberto à reflexão sobre outras

temáticas. Mas rico, porque desde a origem procurava atravessar os

limites disciplinares.

Obviamente, dando aulas, participando de grupos de estudos,

ajudando a organizar debates e seminários, a dissertação caminhou

num ritmo extremamente lento. Naquele momento, os prazos eram

alongados e não recebíamos cobranças nem pelo orientador nem

pela USP para finalizar o trabalho.

A VINDA PARA O CPDA E OS PRIMEIROS TEMPOS NO RIO DE JANEIRO

Em meados de 1978 fui convidada para ser professora e pes-

quisadora do então denominado Centro de Pós- graduação em

Desenvolvimento Agrícola, que funcionava no antigo Solar da

Marquesa, um local bucólico no final da rua Pacheco Leão, no

Jardim Botânico, aos pés da floresta da Tijuca. Era um curso novo,

que começara a funcionar em 1976, ligado à Escola Interamericana

de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas (EIAP/FGV).

Resultado de um convênio entre a Fundação Getúlio Vargas e

a Secretaria de Planejamento Agrícola do Ministério da Agricultura

(Suplan/MA), era uma experiência pioneira de curso interdisci-

plinar, temático e voltado prioritariamente para dar formação em

nível de Mestrado, a técnicos do setor público agrícola. Grande

188LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

parte dos alunos vinha dessa trajetória e era proveniente, em es-

pecial, das Comissões Estaduais de Planejamento Agrícola, criadas

na década de 1970 em diversos estados do país. Poucos eram re-

cém-formados e sem vínculo profissional. Isso implicava que, além

da formação diversificada (também eles eram “multidisciplinares”,

embora a maioria fosse constituída por agrônomos dedicados ao

planejamento agrícola), tratava -se, em grande parte dos casos, de

pessoas já com experiência de trabalho, em geral voltada para a

ação prática e de planejamento. Vários deles tinham experiência

anterior de militância em organizações clandestinas de esquerda.

O mesmo ocorria com aqueles que não tinham ainda inserção pro-

fissional estável, eram recém-graduados, mas buscavam no CPDA

uma formação crítica, para melhor se inserir em determinados seg-

mentos do mercado de trabalho, seja no setor público agrícola, seja

em universidades.

Em 1978, o curso passava por profundas reformulações de

seu desenho curricular e considerou -se que seria importante refor-

çar a equipe com um sociólogo. Roberto José Moreira, que havia

chegado recentemente dos Estados Unidos, onde fizera o doutora-

do, e tornara -se professor do CPDA, pediu uma indicação de nome

a seu grande amigo e ex-colega da Esalq/USP, José Graziano da

Silva, que, por sua vez, me recomendou para a vaga. Fui contrata-

da, após uma rápida conversa num seminário em Campinas com o

diretor do Centro, professor Nelson Delgado, e uma entrevista mais

longa com ele, na sede do CPDA no final de 1978. Apesar de sequer

ter o título de mestre, pesava a meu favor o currículo, em especial

a experiência de pesquisa no Departamento de Economia Rural da

189LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Unesp/Botucatu e o envolvimento em diversos grupos de discus-

são.40 Além disso, apesar de muito jovem (estava com 30 anos), já

tinha uma razoável experiência docente no Ensino Superior. Fiquei

feliz e desafiada pelo novo compromisso, o que me levou a deixar

um emprego estável numa universidade pública paulista que ga-

nhava crescente visibilidade e prestígio no terreno dos temas rurais.

Como dito anteriormente, o CPDA finalizava uma reformu-

lação curricular: voltado para a formação de técnicos em plane-

jamento, com uma pesada carga disciplinar em microeconomia,

matemática, estatística, entre outras, metamorfoseava -se em um

curso que procurava refletir sobre a realidade rural de uma pers-

pectiva macro histórica, abrindo espaço cada vez maior para os

aspectos políticos do planejamento e, consequentemente, para

as Ciências Sociais: Sociologia, Política, Antropologia. Sua carac-

terística mais marcante era a interdisciplinaridade. Do seu corpo

docente participavam economistas, sociólogos, antropólogos, his-

toriadores, cientistas políticos que traziam contribuições de suas

40 Estar na universidade sem ter o mestrado era então uma situação comum, já

que a pós- graduação ainda estava em processo de expansão no país e a forma-

lização de títulos não era uma exigência. Mesmo na USP, onde a formação de

pós- graduação era mais antiga, havia vários professores que se titularam após a

contratação. No entanto, não podiam ser orientadores da pós- graduação, posi-

ção reservada a doutores.

190LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

respectivas disciplinas para a análise da agricultura.41 Muitos eram

contratados apenas para ministrar disciplinas e cada vez mais havia

interesse em ter professores em tempo integral, que pudessem se

dedicar à pesquisa e possibilitar mais estabilidade institucional.

Além dessa diversidade de formação, também havia uma maior

variedade de paradigmas analíticos do que a minha experiência

anterior vislumbrara. Embora possa se afirmar que o marxista fos-

se dominante, eram diversas leituras do marxismo. Esse paradigma

convivia com a economia neoclássica, com uma abordagem antro-

pológica que, embora recuperando algumas dimensões da “antro-

pologia marxista”, não se reduzia a ela.

Avaliando o quadro de disciplinas oferecidas aos alunos, pa-

receu interessante ao conjunto dos professores a introdução de

uma disciplina que tratasse dos Movimentos Sociais no Campo,

como forma de dar maior concretude à discussão sobre classes

sociais feita em Teoria Sociológica. A disciplina ganhou o nome de

Organização Social no Campo e ficou sob minha responsabilidade.

De alguma forma ela dialogava com o crescimento de conflitos

fundiários, as primeiras ocupações de terra, o aparecimento do

sindicalismo rural como uma força estruturada, o clima de maior

debate que se instaurava no país desde o final dos anos 1970. Na

41 Quando cheguei, eram professores permanentes do CPDA Nelson Delgado,

coordenador; Ana Célia Castro; José Wilken Bicudo; Paulo Beskow; Roberto

Moreira, todos economistas; Antonio Carlos Nogueira e Horácio Martins de

Carvalho, agrônomos; Margarida Maria Moura, antropóloga; Silvana Gonçalves

de Paula, socióloga; Maria Yeda Linhares, Francisco Carlos Teixeira da Silva e Eli

de Fátima Napoleão de Lima, constituíam o grupo de historiadores, com traba-

lhos importantes sobre história do abastecimento. Uma pouco antes de mim,

chegou Ivan de Otero Ribeiro, economista,

,

vindo do exílio, onde trabalhara na

FAO, em Roma.

191LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

montagem do programa, fiel à minha formação, procurei recuperar

toda uma discussão teórica sobre as classes no campo. Imprimi a

ela um caráter histórico, pensando a realidade brasileira e, numa

segunda parte do curso, recuperava os conflitos messiânicos, os

movimentos dos anos 1960, sindicalismo rural, entre outras formas

de ação política. Procurava enfatizar duas ordens de problemas: o

peso dos movimentos na conjuntura do país e as formas de organi-

zação dos trabalhadores.

A revisão da parca bibliografia então existente, o trabalho com

jornais consultados na Biblioteca Nacional, por mim, para elabora-

ção da dissertação de mestrado, e pelos alunos, incentivados a ir

em busca de fontes primárias, as discussões teóricas feitas, mostra-

vam claramente a impossibilidade de se trabalhar linearmente com

o esquema classe/consciência de classe. A classe com que nos pre-

ocupávamos era extremamente diversificada do ponto de vista de

sua inserção no processo produtivo, dos seus interesses imediatos,

dos móveis de suas lutas. Seria correto chamá -la “campesinato”? Ou

melhor seria falar em trabalhadores rurais, termo neutro utilizado

pelo movimento sindical, que definia uma posição na sociedade,

mas que nada dizia sobre as relações vivenciadas pelos grupos

que nos interessavam?42 Estávamos diante de uma classe ou diver-

sas classes? A discussão sobre “consciência” de classe, entendida

como progressiva capacidade desses grupos sociais de perceber

seus “verdadeiros” interesses, muitas vezes a partir da ação da van-

guarda (leia -se partido), mostrava -se difícil de operar. Em diversos

momentos parecia mesmo encobrir formas de luta e reivindicações

42 Palmeira (1985) chama a atenção sobre isso, mas procurando recuperar o uso

que o movimento sindical faz do termo.

192LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

a priori definidas como atrasadas, mas que tinham efeitos impor-

tantes na conjuntura. Para complexificar o debate contribuía a ex-

periência dos alunos, vindos de diversas partes do país, com as mais

diferenciadas experiências com as questões do campo, mas, em

geral, bastante aderidos às categorias classe/consciência/luta de

classes, em razão de suas opções políticas. Uma das situações que

me surpreendeu nos dois primeiros anos foi que, na sala de aula,

praticamente cada aluno correspondia a um grupo político distinto

e sobre alguns deles eu sequer tinha ouvido falar. Obviamente, não

havia declaração pública de posições, mas elas eram explicitadas

nos corredores, em conversas pessoais. Ofertando uma disciplina

sobre movimentos sociais no campo no Brasil, as aulas eram ani-

madas pelo debate entre diferentes concepções políticas. Para mim

foi uma experiência difícil, mas enriquecedora, buscar fazer uma

reflexão que ultrapassasse os limites das afirmações politicamente

posicionadas e os termos em que o debate era então colocado.

O CPDA me ofereceu também outros espaços de discussão

que foram fundamentais na minha formação. Quando cheguei,

estava em fase final de negociação, pela Coordenação do Centro,

um ambicioso e inédito projeto de intercâmbio que tinha por ob-

jetivo agrupar em seminários regulares pesquisadores dos mais

diferentes pontos do país de forma a trocar suas experiências de

pesquisa em torno do tema agricultura. A iniciativa, financiada pela

Fundação Ford, foi batizada de Projeto de Intercâmbio de Pesquisa

193LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Social em Agricultura (Pipsa).43 Foi -me entregue a Secretaria do

Projeto, o que significava não apenas um trabalho burocrático, mas

principalmente de organização e incentivo dos grupos e reuniões.

Ali nascia uma experiência pioneira, que articulava os dife-

rentes polos de produção acadêmica do país, não sem polêmicas:

a proposta era de que nesse espaço fossem discutidos trabalhos

ainda em andamento. Não se tratava de resultados de pesquisa,

prontos para publicação, mas de textos em construção que quises-

sem se beneficiar do debate. Muitos deles eram projetos de disser-

tação ou textos/capítulos preliminares. Não faltou quem achasse

que haveria riscos de “roubo de ideias” em iniciativas como essa.

Mesmo assim, o projeto teve forte adesão de pesquisadores, tanto

pouco conhecidos (os que, como eu, ainda estavam fazendo seus

mestrados e davam seus primeiros passos na carreira acadêmica)

quanto daqueles que já despontavam como nomes notáveis nas

Ciências Sociais voltadas para as questões rurais, como é o caso de

43 No final dos anos 1970, no contexto de luta por democratização, foram várias

as iniciativas de buscar quebrar o isolamento acadêmico e fazer balanços da

produção existente. Os únicos encontros científicos regulares no auge do regi-

me militar eram os da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC),

que se constituíram em raro espaço de exercício de liberdade de pensamento e

discussão. Para eles convergiam os principais intelectuais brasileiros. Havia tam-

bém iniciativas mais locais ou temáticas, como era o caso das Reuniões sobre

Mão de Obra Volante em Botucatu. Os congressos científicos na área de Ciências

Humanas escassearam nos anos 1970, em função da conjuntura repressiva. Na

USP fizera -se uma tentativa de criação de uma associação de alunos de pós- gra-

duação, na segunda metade dos 1970, mas não vingou. Nesse momento também

se iniciava a constituição da Associação Nacional de Pós- graduação em Ciências

Sociais (Anpocs), criada em 1977, e que, salvo engano meu, teve um grupo vol-

tado para temas rurais pela primeira vez em 1980 (Estado e Agricultura). Na

Associação de Sociólogos de São Paulo, como mencionado anteriormente, tam-

bém fazíamos encontros regulares, para discutir questões diversas, mas eram

pequenos grupos, sem financiamento.

194LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Aspásia Camargo, Beatriz Heredia, Lygia Sigaud, Maria de Nazareth

Wanderley, Sonia Bergamasco, entre muitos outros.

Constituíram -se cinco grupos temáticos que refletiam as

principais questões então tratadas pelos estudiosos do meio rural:

Agricultura na Amazônia; Estado e Agricultura; Grande Produção

Agrícola; Pequena Produção; e Movimentos Sociais. Eles expressa-

vam um espectro de questões que polarizavam os debates da época

e que refletiam de alguma forma as categorias e temas dominan-

tes na análise do rural.44 Os encontros, a princípio quadrimestrais,

depois semestrais, ocorriam em diversas cidades do país e não

ao mesmo tempo: cada grupo fazia sua agenda de reuniões. Com

isso era possível levar o debate a centros situados fora do eixo São

Paulo-Rio, em momentos diversificados. Os participantes tomavam

contato com uma riqueza e uma imensa gama de temas que esta-

vam sendo estudados, perspectivas metodológicas diferenciadas,

entre outros. Aos poucos constituiu -se um conjunto de frequenta-

dores mais ou menos constantes que iam às reuniões até mesmo

44 Chamo a atenção para dois aspectos. O primeiro refere -se à importância que

adquiria o tema “Agricultura na Amazônia”, o único com recorte regional entre os

grupos do Pipsa. O segundo, é o uso dos termos “grande” e “pequena” produção

para designar modos de agricultura. Essas nomeações indicavam as dificuldades

do debate e as fragilidades presentes na análise do campo brasileiro que então

sinalizava claramente os efeitos da modernização da agricultura. Posteriormente

o grupo “grande produção” incorporou o termo agroindústria a seu nome.

Enquanto o Pipsa existiu, os dois grupos permaneceram separados. Sem dúvida,

marcas do dualismo que está na raiz de muitas de nossas análises.

195LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

independentemente do financiamento.45 Além dos trabalhos apre-

sentados para debate, os grupos por si mesmos tornaram -se gera-

dores de questões que, na medida do possível, eram levadas de uma

reunião para outra, promovendo continuidade no tratamento

,

dos

conteúdos. Nesse espaço amadureceram inúmeras dissertações de

mestrado e problemas de pesquisa.

Do ponto de vista de minha formação tanto acadêmica como

pessoal, a importância desses eventos foi enorme. Engajei -me,

para além das tarefas organizativas do Pipsa, no grupo Movimentos

Sociais. Num primeiro momento, fui tomada de uma certa surpresa

e até mesmo perplexidade ao perceber que São Paulo, em especial a

USP, ao contrário do que eu fora acostumada a pensar, não era o úni-

co centro de pensamento sociológico do Brasil. Muitos dos que pas-

saram por essa universidade foram alimentados pela crença de que

lá se encontrava o repositório por excelência da produção científica

na área das Ciências Sociais do país. Tomar contato com pesquisa-

dores de outras regiões que nunca passaram por seus corredores e

faziam brilhantes pesquisas e encaminhavam problemas teóricos

45 Os recursos da Fundação Ford eram generosos, mas, para ampliá -los e po-

tencializar a participação de mais pesquisadores, a sistemática adotada nos

primeiros anos em alguns grupos era a de usar os recursos para compra de pas-

sagens. Os pesquisadores locais abriam suas casas para abrigar quem vinha,

economizando -se recursos para hotel e instituindo um sistema de hospedagem

solidária que gerou consistentes e longas amizades. Não me lembro de alguém

ter reclamado da falta de diárias, de reserva de hotel. Tudo era feito com uma

grande dose de voluntarismo. Não faltou quem irônica e maldosamente dissesse

“entre para o Pipsa e conheça o Brasil”, sem se dar conta de que essa troca resulta-

va em conhecimento de diversas faces do meio rural brasileiro. A experiência de

ser “pipseiro” marcou vários colegas de minha geração, que ainda lembram com

saudades do “clima” dos debates. Não por acaso essa herança ainda persiste, na

Rede de Estudos Rurais, apresentada mais adiante.

196LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

e metodológicos com outras abordagens foi de extrema importân-

cia para mim, obrigando -me a relativizar determinadas formas de

pensar de que eu era portadora e colocando por terra uma certa

arrogância intelectual, típica de pesquisadores pouco maduros. Do

ponto de vista acadêmico, pude elaborar as dificuldades que tinha

para trabalhar com as questões referentes à classe/consciência de

classe, de forma a valorizar o movimento dos grupos sociais envol-

vidos em processos de conflito, suas reivindicações, seu papel e po-

sição na conjuntura, não em geral, mas naquela situação particular

que marcava cada conflito. Pareceu -me também rico o caminho de

não tratar substancialmente esses temas, mas enfatizar as relações

em que se envolviam os agentes sociais (Regina Novaes, “pipseira”

de primeira hora, sempre provocava os debates nessa direção).

Um dos eixos temáticos mais significativos com que trabalhá-

vamos no grupo Movimentos Sociais era o do sentido da luta no

campo, os “projetos políticos” que se delineavam, de acordo com a

perspectiva que tinha forte apelo analítico na época. Simplificando

um pouco a riqueza dos debates que ocorriam, era possível dis-

tinguir dois tipos de postura. Alguns pesquisadores davam peso

explicativo muito grande ao “movimento do capital”. Negando a

existência de um verdadeiro campesinato no Brasil, privilegiavam

a contradição capital/trabalho e era sob essa ótica que procuravam

pensar as possibilidades de uma ação de classe transformadora.

Outros enfatizam as reivindicações presentes nas lutas, especial-

mente a da conquista da terra, defendendo que, em determinadas

conjunturas, ela pode até mesmo assumir um caráter “subversivo”.

As perguntas que muitas vezes permeavam essa polarização se si-

tuavam em torno da possibilidade de o campesinato construir um

“projeto político próprio”, o que implicava indagar sobre seu caráter

197LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

de classe, seu estatuto no interior de modo de produção capitalista,

as alianças que poderia fazer.

No processo de discussão do grupo pude tomar contato mais

profundo com a abordagem antropológica dos movimentos sociais

desenvolvida no Programa de Pós- graduação em Antropologia

Social do Museu Nacional da UFRJ e perceber a riqueza de cami-

nhos que ela abria. Sem sombra de dúvida, a pessoa que mais influ-

ência teve sobre mim pelo teor de sua participação nos debates foi

Regina Novaes. Um dos pontos sobre os quais ela constantemente

chamava a atenção era sobre a forma de trabalhar com o discur-

so político, nos forçando a refletir acerca do lugar de onde ele era

enunciado, em que circunstâncias, com que objetivo. Insistia tam-

bém a respeito da importância de perceber as relações em que os

fenômenos sociais concretamente se davam para, a partir daí, in-

terpretá -los. Subjacente, estava a concepção da consciência nas-

cendo na luta e a partir dela. Essas eram questões que me tocavam

diretamente, por estar em fase final de elaboração de dissertação e

sentir falta de um instrumental teórico adequado para trabalhar o

farto material empírico de que dispunha.

Por meio dessas experiências, fui revendo leituras do marxis-

mo, me afastando das leituras estruturalistas, mergulhando cada

vez mais na perspectiva gramsciana, e, principalmente, fazendo

198LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

dialogar minha bagagem teórica com minhas questões de pesqui-

sa, mas também com as trazidas por meus primeiros orientandos.46

Além das aulas e da coordenação do Pipsa, ao chegar ao

Rio, retomei contato com lideranças sindicais que havia conheci-

do nas Reuniões sobre Mão de Obra Volante em Botucatu e pude

adentrar num novo universo: as lutas no campo, para além do que

sabia delas a partir da leitura de textos e de pesquisa em jornais

do período anterior ao golpe. Visitei, acompanhando o presidente

da Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado do Rio

de Janeiro, Eraldo Lírio de Azevedo, várias áreas rurais marcadas

por conflitos, em especial Angra dos Reis, Cachoeiras de Macacu,

Nova Iguaçu e Cabo Frio. Tive ainda a oportunidade de conhecer,

com a intermediação de Eraldo, José Pureza da Silva, liderança de

conflitos de terra nos anos 1950-1960 no estado, que também me

convidou para ir com ele visitar algumas áreas. Em razão dos con-

tatos com a Fetag/RJ, fui chamada a participar como observadora

do III Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, em maio de

1979. Para minha surpresa, ao comentar o fato com o coordenador

do Centro, professor Nelson Delgado, recebi apoio imediato para a

46 Entre eles, Córdula Eckert, com uma dissertação sobre o Movimento dos

Agricultores sem Terra do Rio Grande do Sul (Eckert, 1984); Ana Maria Motta

Ribeiro, que defendeu, anos mais tarde, uma dissertação sobre sindicalismo em

Campos (Ribeiro, 1987); Joaquim Soriano, que estudava projetos do Incra em

Cachoeiras de Macacu; Joaquim Paulo Bandeira, voltado para o estudo dos con-

flitos na Baixada Fluminense em especial em Duque de Caxias, sendo que os dois

últimos seguiram outros caminhos e não concluíram suas dissertações no CPDA.

No entanto, deixaram -me importantes preocupações com os conflitos rurais flu-

minenses. O tema me acompanhou e os retomei recentemente.

199LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

viagem em forma de passagens e diárias.47 Os debates foram surpre-

endentes para uma jovem pesquisadora, que fazia seus primeiros

contatos com a vida sindical rural. Lá conheci antigos militantes

de base das Ligas Camponesas; os “pequenos produtores” que, até

então, só me apareciam como reflexões teóricas e números nas es-

tatísticas cadastrais do Incra; percebi a força e complexidade das

demandas por reforma agrária que percorriam minha dissertação

de mestrado então ainda em elaboração. Tomei conhecimento do

vigor e a capacidade de argumentação de algumas lideranças sindi-

cais e vislumbrava ali um fértil campo de pesquisa.

O fato de eu estar escrevendo uma dissertação cujo tema era

o debate sobre reforma agrária no período

,

anterior ao golpe e meu

contato com a Fetag/RJ também me abriram as portas para par-

ticipar de eventos e discussões em alguns sindicatos e na sede da

Diocese de Nova Iguaçu, em Moquetá, então polo de efervescência

política. Nesses encontros e visitas ao interior do Rio, pude conhe-

cer outros antigos militantes nas lutas por terra no estado (além

de José Pureza e sua esposa, Josefa, Bráulio Rodrigues da Silva48 e

Manoel Ferreira de Lima), bem como alguns dirigentes sindicais

cuja capacidade analítica era aguda. Destaco em especial a figura de

47 A surpresa derivava do fato de que, em Botucatu, por vezes enfrentei resis-

tências à minha participação em eventos por parte do diretor da Faculdade de

Ciências Agronômicas, que sempre dizia que eu tinha é que cuidar de fazer

minha dissertação. Ele tinha suas razões, mas o acompanhamento da conjuntura

naquele momento era também uma necessidade acadêmica (e política).

48 Em início dos anos 2000, quando fazia pesquisa num assentamento em Magé,

reencontrei casualmente Bráulio Rodrigues da Silva, que lá estava morando.

Após uma visita à sua casa, ele me pediu para ajudá -lo a registrar suas memórias.

Desse convite, resultou o livro Memórias da luta pela terra no estado do Rio de

Janeiro (Medeiros, org., 2008).

200LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Raimundo Leoni dos Santos, do Sindicato de Trabalhadores Rurais

de Itaboraí, Sebastião Lan, de Cabo Frio, e Rosa Geralda, expressi-

va liderança na fazenda Campos Novos, em Cabo Frio. Todos eles,

cada a um a seu modo, em conversas eventuais ou em entrevistas

formais, me ensinaram muito sobre o sindicalismo e sobre o coti-

diano das lutas no campo.

Paralelamente, havia no CPDA reuniões sistemáticas para

discussões de conjuntura. Era editado de forma regular, um Boletim

de Conjuntura, para discutir temas que afloravam. Nesse momento,

fiz um primeiro exercício de escrita não acadêmica, produzindo al-

guns pequenos textos, dos quais destaco o que tratou da greve dos

canavieiros pernambucanos de 1980, a partir do que acompanhei

na imprensa e de um evento que fizemos com a presença das lide-

ranças da greve, que vieram ao Rio de Janeiro difundir o movimen-

to e arrecadar recursos para um fundo de apoio aos grevistas.

Para além dessas atividades, participei também da pesquisa

“Trabalho rural e alternativas metodológicas de educação”,

financiada pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar)

e iniciada em 1980. Essa iniciativa reunia dois centros da FGV: o

CPDA e o Instituto de Estudos Avançados em Educação (Iesae),

e era coordenada, no CPDA, por Roberto José Moreira, João

Carlos Duarte e por mim, e, no Iesae, por Candido Grzybowski

201LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

e Maria Julieta Costa Calazans.49 Esta última, nos anos 1960, fora

figura-chave no processo de expansão das escolas radiofônicas do

Rio Grande do Norte, experiência empreendida pelo então bispo de

Natal, D. Eugênio Sales, da qual derivou a criação de vários sindica-

tos de trabalhadores rurais no início dos anos 1960.50

O estudo voltava -se para os processos de transformação do

trabalho rural, o aparecimento de funções especializadas na agri-

cultura, como tratoristas, por exemplo. O locus empírico da pesqui-

sa foi o município de Campos, no Rio de Janeiro. O relatório não

chegou a ser publicado, mas circulou mimeografado (Grzybowski

et al., 1981). Continuando as reflexões que vinha fazendo desde

minha experiência na Unesp sobre trabalho assalariado, agora as

acoplava a uma nova questão: a educação e a formação profissional.

Interessava-nos captar “a tensão existente (aos níveis de consciên-

cia e da prática dos trabalhadores) entre o grau de domínio que ele

acredita ter sobre os processos e ‘modos de fazer’ da produção agrí-

cola e a ‘necessidade’ – apresentada do exterior – de introdução a

outros conhecimentos ou maneiras novas de conduzir a produção.

49 Participaram como pesquisadores, pelo Iesae, Sonia Ribeiro Moreira e Adonia

Antunes Prado e, pelo CPDA, Silvana Gonçalves de Paula e Mauro Cunha Bastos.

Como auxiliares de pesquisa, estudantes de mestrado como Joaquim Calheiros

Soriano, Ana Maria Motta Ribeiro (meus orientandos) e Cristina de Almeida

Borges, Edith Lacerda, Nathercia Neves Lacerda, Regina Doria e Heloisa de Luna

Freire. Como colaboradores, Margarida Maria Moura e Francisco Carlos Teixeira

da Silva.

50 Maria Julieta Calazans, após o golpe, foi para a França e lá escreveu sua tese de

doutorado sobre essa mesma experiência (Calazans, 1970), trabalho que, junta-

mente com o de Aspásia Camargo, sobre ligas camponesas e sindicatos rurais em

Pernambuco (Camargo, 1974), tornou -se referência obrigatório para entender as

lutas dos trabalhadores no período que antecede o golpe.

202LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Em outras palavras, captar, do ângulo do trabalhador, tanto as am-

biguidades expostas acima como a relação que se estabelece entre

os conhecimentos que o trabalhador traz de sua práxis e o conhe-

cimento que lhe é proposto como melhor e mais eficiente, inclusi-

ve em termos de organização de sua estratégia de reprodução (e,

eventualmente, ascensão social)”. (Grzybowski et al., 1981, p. 4)

Embora tenha participado ativamente das fases iniciais da

pesquisa e da redação do relatório, não pude fazer o trabalho de

campo: no início de 1981 nasceu meu primeiro filho e tive um pe-

ríodo não exatamente de afastamento das atividades acadêmicas,

mas da pesquisa empírica, que exigia deslocamentos.51

Obviamente, essas atividades somavam muito estudo com

um acompanhamento das lutas sociais, presença em alguns semi-

nários, sempre que chamada para falar de questões relacionadas

à reforma agrária ou às lutas no campo. Era um momento muito

particular da conjuntura do final dos anos 1970 e início da déca-

da de 1980, num clima de redemocratização, anistia, retomada das

greves, multiplicação das ocupações de terra, enfim, um momento

que instigava o desejo de conhecer melhor situações, em especial

para mim, que recém chegava ao Rio e pouco conhecia de sua

história. Mas o tema circulava amplamente. Situação particular-

mente marcante para mim foi a participação em um seminário na

Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, que discutia a ques-

tão fundiária, numa conjuntura de tensão muito grande em relação

51 Digo isso porque em plena licença maternidade mantive minhas aulas na pós-

graduação, fazendo um acerto com os alunos que se interessavam pela disciplina

Organização Social no Campo: ela seria oferecida aos sábados pela manhã, perí-

odo em que meu companheiro e filho recém-nascido poderiam ir comigo, para

que eu o amamentasse no intervalo da aula.

203LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

ao acampamento de Encruzilhada Natalino. Foi a primeira vez que

tive contato mais direto com as demandas dos sem-terra do estado.

Em que pese essa aproximação tanto com organizações

sociais como com organizações não governamentais (em especial

a Fase e o então recém-criado Ibase), eu tinha clareza de que meu

lugar era mesmo na academia, mas mantendo uma interlocução

constante com as lutas no campo.

A vida trazia novas necessidades e desafios, implicados na

conciliação entre a paixão pelo trabalho como professora e pela pes-

quisa e a família. Creio que conciliei bem essas faces da vida, mas

não o faria sem o companheirismo de Francisco de Assis Medeiros.

NOVOS TEMPOS: O CPDA NA UFRRJ

E O TEMA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS

No final de 1981, ficou clara a impossibilidade de continuarmos

na Fundação Getúlio Vargas que parecia disposta a abrir mão de

duas pós- graduações destoantes de sua linha política: o Iesae e o

CPDA. No caso do Iesae, houve dispersão dos professores por ou-

tros centros de ensino. No caso do CPDA, houve um enorme in-

vestimento político de parcela do corpo de professores, com des-

taque à Coordenação, que continuava a ser exercida por Nelson

Delgado, para manter a unidade do grupo. Isso

,

foi possível pela

negociação de transferência com a até então para mim desconhe-

cida Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, que se dispôs a

aceitar o curso com professores, alunos e funcionários.

A ida para a UFRRJ, por um lado, era uma prova da vitalidade

do grupo que conseguiu sua transferência como um todo, embo-

ra com alguns rearranjos, na medida em que alguns professores

204LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

fizeram opção por não migrar. Nesse momento de transição,

entretanto, outros se incorporaram ao grupo.52 Se isso garantia a

continuidade de nossas atividades de pesquisa e ensino e a titula-

ção dos alunos, no momento em que estavam sendo finalizadas as

primeiras dissertações, por outro nos levava para um campus dis-

tante (Seropédica, hoje município, mas então distrito de Itaguaí,

às margens da antiga Rodovia Rio-São Paulo), o que impunha um

longo trajeto: quase cem quilômetros da Zona Sul do Rio de Janeiro,

onde morava a maioria dos professores. Em que pese estarmos

bem instalados, no prédio que hoje pertence ao Colégio Técnico da

Universidade, algumas atividades se realizavam no Rio de Janeiro,

quer em espaços cedidos, quer em nossas casas. Isso foi particu-

larmente notório para o grupo que se debruçava sobre o tema dos

movimentos sociais.

Foi ao longo dessas mudanças que defendi (finalmente), em

início de 1983, minha dissertação de mestrado. Sem a dívida da dis-

sertação e em pleno processo de migração institucional e adapta-

ção ao novo contexto, constituímos, professores do CPDA (Candido

Grzybowski, Regina Bruno e eu), pesquisadores de outras institui-

ções interessados no tema (Regina Novaes, Beto Novaes, Neide

Esterci, entre outros) e alunos dos professores envolvidos nesse

investimento, um Núcleo de Estudos sobre Movimentos Sociais

52 No total, a UFRRJ nos destinou 20 vagas de professores, além das dos fun-

cionários. Optaram pela não ida para a UFRRJ, entre outros, José Bicudo,

Margarida Maria Moura, Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da

Silva. Incorporaram -se à equipe do CPDA João Carlos Duarte, até então somen-

te vinculado à pesquisa ao projeto “Trabalho rural e alternativas metodológicas

de educação”, e Candido Grzybowski, professor do Iesae, instituição que se dis-

solveu. Além deles, Maria José Teixeira Carneiro, Luiz Flávio de Carvalho Costa,

Armando Barros de Castro chegaram no contexto de transição.

205LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

no Campo, com apoio de uma pequena doação da Fundação Ford.

Nesse grupo, colocando mais intensamente nossas ideias para

discussão, aprofundamos muito dos debates travados no Pipsa.

Definimos como temas centrais de trabalho a questão sindical e

a ação da Igreja, preparando dois seminários com sindicalistas de

diversas origens regionais e filiações políticas. Foram experiências

sui generis. Não abertos a um grande público, mas abrangentes o

suficiente para garantir a participação de professores e alunos, cada

um deles durou dois dias inteiros. O ponto de partida eram as expo-

sições dos convidados (dirigentes sindicais e de movimentos, parte

deles do Rio de Janeiro), no máximo quatro por evento. Eles conta-

vam suas experiências incipientes de organização e seguia -se um

debate aberto com os diversos participantes.53

Na preparação dos seminários, na discussão de trabalhos

nossos, pudemos ir desdobrando o debate sobre classes sociais,

sempre da perspectiva do campesinato, voltando-nos mais siste-

maticamente para a temática das formas de organização e repre-

sentação dos trabalhadores rurais.

À mesma época, alguns membros desse grupo (Regina Novaes,

Regina Bruno, Joaquim Soriano e eu) participaram também de um

projeto de pesquisa cuja sede era o Centro de Estudos de Cultura

Contemporânea (Cedec). O título era “Dez anos de luta pela terra:

53 As transcrições desses seminários encontram -se disponíveis para consulta no

Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e

Políticas Públicas no Campo do CPDA/UFRRJ. Participaram desses seminários

na primeira edição, Mario Gabardo, da região produtora de uva no Rio Grande

do Sul, Valdevino Claudio dos Remédios, recém-eleito para o STR de Parati/

RJ, Jonas Chequetto do Espírito Santo e um dirigente de Santarém, creio que

Ranulfo Peloso.

206LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

1969-1979” e a coordenação estava a cargo do pesquisador José dos

Reis dos Santos Filho. Essa investigação, demandada pela Contag,

com apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), tinha por fonte

principalmente o arquivo da entidade sindical e constituía -se num

exaustivo exercício de levantamento documental no sentido de

perceber como essa instituição, nos anos da ditadura, compreendia

e encaminhava os conflitos por terra. A razão da delimitação tem-

poral da pesquisa, definida pela Contag, embora não explicitada,

não era casual: correspondia ao início do que alguns pesquisadores

e sindicalistas chamavam de “retomada da Contag”54 e se estendia

até o ano em que dois eventos marcaram a história política dos tra-

balhadores rurais: um deles, considerado um marco no sindicalis-

mo, foi a realização do III Congresso da entidade, que consolidou

um chamado para a pressão dos trabalhadores sobre o governo em

torno de suas demandas. O outro não era explicitado claramente,

mas funcionava como contraponto: as primeiras ocupações de ter-

ra realizadas no sul do país, sem a direção de sindicatos e que um

pouco mais tarde dariam origem ao Movimento dos Trabalhadores

Rurais sem Terra. Nesse trabalho, de caráter eminentemente em-

pírico, e que nos obrigou a ficar hospedados, por longos períodos,

no Centro de Estudos Sindicais Rurais (Cesir), localizado no Núcleo

54 Em 1968, José Francisco da Silva foi eleito presidente da Contag. Com isso,

encerrou -se a gestão daquele que fora nomeado interventor da entidade em

1964, José Rotta, e que foi também seu primeiro presidente eleito pós- golpe.

207LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Bandeirantes, em Brasília55, dias e dias consultando documentos,

pude perceber alguns mecanismos internos do funcionamento

do sindicalismo rural e manter conversas informais com antigos e

novos sindicalistas que frequentavam o local.

Responsável pela produção de relatórios sobre os conflitos

em dois estados (Rio de Janeiro e Paraná) comecei a vislumbrar as

diferenças no modo de operação das federações e dos sindicatos.

Diante disso, colocou -se a necessidade de entender como a Contag

percebia a si própria e o movimento que coordenava, quais suas

bandeiras de luta, qual o sentido de suas ações. O esforço de escrita

de um artigo, em parceria com Joaquim Soriano, então mestrando

no CPDA, meu orientando e também pesquisador da equipe, mos-

trou -me quão carente eu estava de aprofundar o conhecimento

sobre o campesinato e a necessidade de problematizar as rela-

ções entre movimentos sociais e formas de organização vigentes

(Medeiros; Soriano, 1984). As perguntas que ficavam eram o que

significavam os mecanismos de representação, no que ela consistia

e como se fazia na dinâmica cotidiana do sindicalismo.

Foi nesse início dos anos 1980, já na UFRRJ, que investi tam-

bém numa pesquisa sobre o sindicalismo no Rio de Janeiro, apoiada

55 Naquele momento, a Contag funcionava no centro de Brasília, num prédio

da W3. No Cesir se desenvolviam as atividades de formação e ficava abrigada a

documentação da entidade. Um dos compromissos nossos era organizar todos

os documentos referentes à pesquisa. Esse material foi ordenado por estados,

municípios e conflitos. Com as mudanças de sede, houve uma certa desorga-

nização da ordem que havíamos estabelecido. Parte das pastas foi localizada

recentemente. Elas se encontram num depósito com outros documentos, mas

não estão disponibilizadas no Centro de Documentação da Contag, que abriga,

principalmente, a documentação publicada pela entidade (anais de congressos,

manifestos, cartilhas,

,

entre outras).

208LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

pelo CNPq, e pude conhecer melhor as áreas rurais do estado, os

conflitos que nela se desenvolviam e, principalmente, a diversidade

da ação sindical, as diferentes concepções no seu interior, as dispu-

tas internas... Difícil, naquela conjuntura de luta política abordar

esses temas sem colocar em questão as próprias práticas sindicais,

o que me trouxe dilemas éticos que acabei enfrentando de uma for-

ma que até hoje me deixa dúvidas sobre sua correção: acabei fazen-

do um relatório minimalista, para prestar contas do uso dos recur-

sos recebidos, mas não escrevi artigos a respeito. No entanto, o que

percebi em campo contribuiu sobremaneira para minha reflexão

sobre dois temas: por um lado, a complexidade do sindicalismo e

de suas disputas internas, os riscos permanentes de endossar as

justificativas dos dirigentes, sempre articuladas e convincentes, e,

por outro, as questões éticas envolvidas nas pesquisas sobre movi-

mentos sociais, que sempre nos impõem cautelas redobradas sobre

o uso das fontes documentais e entrevistas, as interpretações que

delas fazemos e seus efeitos sobre os grupos sociais, uma vez que

não há como desconsiderar o peso social e político dos produtos da

academia e sua capacidade de impor um “efeito de verdade”, como

diria Bourdieu.

Lado a lado com essas preocupações, novos desafios se im-

puseram com a orientação de dissertações sobre o tema. O pri-

meiro trabalho que orientei foi justamente sobre o Movimento dos

Agricultores sem Terra no Rio Grande do Sul, de autoria de Córdula

Eckert, dissertação defendida em início de 1984 (Eckert, 1984).

209LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Nesse momento, já tinha vários orientandos, a maior parte estu-

dando conflitos no Rio de Janeiro.56

Sentindo a necessidade de entrar em contato com outras

linhas de reflexão teórica, que sabia serem base de alguns argu-

mentos que me atraiam nos encontros do Pipsa, cursei, como

ouvinte, em 1983, a disciplina Campesinato e Política oferecida

pelo professor Moacir Palmeira no Programa de Pós- graduação em

Antropologia Social do Museu Nacional. Tive então a oportunidade

de acompanhar discussões que me abriram novos horizontes para

a pesquisa. Temas como o deslocamento do eixo de análise para

as relações, discussão de conjunturas não em geral, mas sim para

grupos determinados, recusa ao substancialismo como caminho

para a análise, busca de uma melhor compreensão do campesina-

to, a partir das relações que esse segmento vivenciava, para explicar

aparentes ambiguidades de sua ação, iam diretamente ao encontro

das preocupações que me apareciam quer nos grupos de discus-

são, quer nas atividades de pesquisa.

Mais do que os autores vistos na disciplina,57 o mais insti-

gante foi a forma de abordar as leituras, a construção que se fazia

sobre elas. O eixo de discussão que mais me marcou, no entanto,

foi o deslocamento feito por Moacir Palmeira do binômio “classe

56 No Anexo 1, apresento a lista das dissertações e teses que orientei ao longo da

minha carreira acadêmica.

57 Parte da bibliografia já me era familiar, mas ganhou uma nova leitura no cur-

so. Cerca de metade dos seminários foi de discussão de trabalhos de alunos, um

grupo extremamente envolvido nos debates, do qual faziam parte, entre outros,

Regina Novaes, Delma Pessanha Neves, Jorge Romano, Mario Grynszpan, Eliane

Cantarino, Aurelio Vianna, Ligia Dabul, Regina Bruno (colega do CPDA que tam-

bém fazia o curso como ouvinte).

210LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

em si/classe para si” para “classe para outro/classe para si”, pro-

pondo uma abordagem relacional, que partia dos agentes em situ-

ação, ocupando posições sociais específicas, num momento dado

da luta de classe.58 Esse tipo de abordagem caía como uma luva no

sentido de encaminhar minhas inquietações pouco amadurecidas

e sistematizadas e que diziam respeito aos limites de uma análise

marxista referenciada na problemática de classe e consciência (ne-

cessária/possível) de classe. Moacir Palmeira também chamava a

atenção dos alunos para os riscos de uma abordagem bastante usu-

al que, na análise política, confrontava uma classe operária ideal

com um campesinato real. Pareceu -me ainda bastante fértil a apro-

priação de Bourdieu (autor que até então eu havia lido muito pou-

co), especialmente no que se referia ao conceito de campo político.

De alguma maneira, minha experiência com esses debates se

refletiram em minha produção acadêmica. Em trabalhos escritos

logo depois, sobre o IV Congresso da Contag, realizado em 1985,

ao qual também tive a felicidade de estar presente, procuro en-

tender algumas posições e resoluções tomadas a partir da relação

entre essa entidade e outras que com ela passaram a disputar a

representação dos trabalhadores rurais (Medeiros; Santos Filho,

1985 e 1986).

A necessidade de aprofundar esse tipo de reflexão, de traba-

lhar teoricamente e de forma consistente em torno dela me levou a

procurar um curso de doutorado, o que também era uma exigên-

cia cada vez maior derivada da minha opção pela vida acadêmi-

ca. Partindo de um desdobramento da dissertação de mestrado,

58 Uma síntese de alguns temas do curso foi elaborada por Jorge Romano, que

naquele momento iniciando o doutorado no PPGAS (Romano, 1986).

211LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

pretendia aprofundar o conhecimento sobre os movimentos cam-

poneses do período 1945-1964, com base em algumas indagações:

quais as circunstâncias que fizeram com que os conflitos desse mo-

mento pudessem se exprimir com um determinado tipo de lingua-

gem, no caso, a das forças de esquerda, configurada pelo Partido

Comunista? Por quais mecanismos essa linguagem procurou dar

conta dos interesses em luta? Como se forjou, nesse momento, uma

identidade entre trabalhadores de inserção aparentemente diver-

sa no processo produtivo, como é o caso de “moradores”, “foreiros”,

“colonos”, “posseiros”, entre outros, fazendo com que de conflitos de

natureza distinta, com reivindicações particulares, emergisse uma

bandeira de luta como “reforma agrária”? Esperava, refletindo so-

bre esses temas, apreender o processo de constituição das classes

sociais no meio rural, privilegiando suas lutas, as identidades con-

cretamente formadas e, principalmente, as formas de organização e

representação que dela surgiam. Do ponto de vista teórico, à medi-

da que me deslocava de uma análise de caráter estrutural, que pro-

curava dar conta das relações de produção, para outra, em que era

privilegiada a prática política de determinados grupos sociais, no-

vas questões me apareceram. Saindo da definição de uma classe

genérica, mergulhando na extrema diversidade dos elementos que

a compõem, preocupando -me com a ação política dos seus distin-

tos segmentos, procurando entender o sentido de suas lutas, não

podia deixar de me interrogar sobre como ou quem os define como

classe. Desvendar a prática política de determinados grupos sociais,

perceber como esses grupos conformam identidades, como se re-

lacionam, no cotidiano, com as diversas instâncias de poder, como

produzem sua representação política, implicava conciliar as refe-

rências marxistas que marcaram minha formação acadêmica com

212LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

outras reflexões, de modo a perceber como a dominação era con-

cretamente vivenciada e que formas de convivência e resistência se

forjavam. Parecia -me então fundamental entender a construção de

uma identidade num processo de conflito e confronto.

Ao mesmo tempo que contribuía para consolidar a temática

dos movimentos sociais no CPDA e recebia cada vez mais alunos

interessados no tema para orientar, foi importante para mim a par-

ticipação em uma série de atividades nesse período de luta políticas

por redemocratização. Entrar em debates públicos sobre os rumos

dos movimentos sociais e sobre as potencialidades da reforma

,

agrá-

ria me aproximou não só do sindicalismo rural, mas também de

organizações não governamentais, em especial da Fase. Menciono

essas atividades porque elas foram fundamentais na definição das

minhas questões de pesquisa, cada vez mais germinadas no e pelo

intercâmbio entre acadêmicos e ativistas.59 Foram essas trocas que

me trouxeram indagações que as teorias que eu manejava não da-

vam conta (ou eu não conseguia desdobrar em temas de pesquisa).

O clima do início dos anos 1980, com uma enorme diversida-

de de atores se colocando em cena, era instigante para colocar em

pauta categorias anteriormente aprendidas e atualizá -las, sobretu-

do quando pensávamos nos debates em torno da reforma agrária,

considerada, por muitos pesquisadores, questão superada pela mo-

dernização que o campo sofrera, mas que emergia com força por

meio das ocupações de terra em diversos pontos do país, inclusive

no estado do Rio de Janeiro. Neste caso, em especial, para além de

59 Não posso deixar de mencionar Maria Emília Pacheco que havia feito mestrado

no PPGAS/MN/UFRJ, sob orientação de Otávio Velho, atuava na Fase e me convi-

dou para participar de alguns debates nessa ONG, sobre o tema reforma agrária.

213LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

conflitos em terras de antigas disputas de posseiros, apareciam as

ocupações por trabalhadores que já haviam sido expulsos da terra,

que tinham uma larga experiência urbana. Camponeses? Lumpem,

como chegaram a ser designados? O fato é que sua presença não

cabia no que as teorias sobre o campesinato e sobre os pequenos

produtores nos diziam.

Nesse período, minha vida, como a de muitos contemporâne-

os, tornou -se uma roda viva: do ponto de vista acadêmico, tratava

-se da adequação às regras da universidade pública, da locomoção

para o campus da UFRRJ em Seropédica, da retomada do contato

com alunos de graduação, principalmente de agronomia, que era

o mesmo público para o qual eu dera aulas em Botucatu, do iní-

cio de pesquisas sobre sindicalismo e conflitos fundiários no Rio de

Janeiro, da vitalidade dos debates e das mobilizações pelas “diretas

já” e pela redemocratização do país.

No que se refere à pesquisa, a orientação de dissertações,

mesmo que algumas delas não tenham sido finalizadas, me fize-

ram conhecer diferentes faces do rural no Rio de Janeiro, na medida

em que minhas indagações muitas vezes me faziam ir às localida-

des com meus orientandos e participar de entrevistas e buscas de

documentos. Naquele momento, visitei a fazenda Campos Novos,

que abrangia parte dos municípios de Cabo Frio e São Pedro

d’Aldeia, onde havia um conflito que se arrastava desde os anos

1950; fiz contato com alguns moradores do antigo condomínio

de Marubaí, em Cachoeiras de Macacu; comecei a me dar conta

da importância dos conflitos fundiários em Duque de Caxias; e

fui algumas vezes a Campos, com Ana Maria Motta Ribeiro, para

214LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

entrevistas que servissem à dissertação dela, mas também à minha

pesquisa sobre sindicalismo no Rio de Janeiro.60

Ao mesmo tempo, eram múltiplos os debates públicos sobre

o tema que haviam sido objeto de minha dissertação de mestrado:

a reforma agrária (Medeiros, 1983). Eu a havia tratado tendo como

referência os anos que antecederam o golpe militar. Com ele, o ter-

mo ganhou novas conotações, particularmente com a aprovação

do Estatuto da Terra. Se ele prometia uma reforma agrária contro-

lada, também ancorou uma proposta de modernização no campo

que ganhou fôlego, ao longo dos anos 1970, apoiada em outros

mecanismos.

A força da demanda por reforma agrária nos congressos da

Contag, a criação formal do MST, em 1984, davam nova dinâmica

às discussões. Tratava -se de refletir sobre a reforma possível num

país de agricultura modernizada, mas onde os conflitos por terra

cresciam e a violência no campo era uma constante. A questão era

entender o caráter dessa modernização e suas contradições, lê -la

numa outra chave que não a estrutural, econômica. Com isso, cada

vez mais eu me deslocava para a perspectiva dos atores, procuran-

do outras óticas para entender a demanda por reforma agrária. Não

se tratava apenas de discutir as contingências do capitalismo no

campo e o processo de expropriação que ele gerava, mas de perce-

ber as novas formas assumidas por esse processo de expropriação

e também pela demanda por terra. Afinal, não se tratava só de fo-

reiros, posseiros, mas agora de um contingente de sem-terra, ele

mesmo produto da intensa modernização da agricultura (no caso

60 As dissertações sobre os conflitos em Caxias, Marubaí e Campos Novos não

foram concluídas, mas a de Ana Motta, sim (Ribeiro, 1987).

215LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

do Sul) ou da intensificação da especulação fundiária urbana (no

caso da Baixada Fluminense). Esses temas traziam para o centro

da reflexão não só questões teóricas, mas também políticas: qual

a reforma agrária possível no contexto de uma agricultura que se

modernizava tecnologicamente e que cada vez mais emergia quer

como capaz de produzir para o mercado externo como para o

interno, de alimentos, tema que os processos de agroindustrializa-

ção, particularmente centrados no sul do país, suscitavam. Esse era

também um assunto que trazia questões centrais sobre a natureza

das relações de produção e trabalho no campo, novos atores envol-

vidos e novas questões levantadas. Ela ganhava corpo em debates

feitos em ONGs (Fase, em especial), na Abra (Associação Brasileira

de Reforma Agrária), nos eventos acadêmicos (Pipsa, Anpocs), na

imprensa falada e escrita. Além de programas em rádio, dos quais

participei por um período com a colega Regina Bruno, havia as dis-

cussões promovidas pela Sociedade Brasileira Para o Progresso da

Ciência (Ciência às Seis e Meia), que trazia pesquisadores para falar

com um público amplo, não só acadêmico. Havia ainda debates em

universidades.

Foi em torno desses assuntos que escrevi os primeiros arti-

gos que publiquei (Medeiros, 1981a, 1981b, 1984; Medeiros; Santos

Filho, 1985).

O DOUTORADO

Decidida a fazer o doutorado, minha opção foi pelo

Programa de Ciências Sociais da Unicamp. Já havia

feito graduação e mestrado na USP e minha experi-

ência acadêmica, a partir da vinda para o CPDA, indicava a neces-

sidade de buscar novos caminhos. Além do mais, a USP cada vez

menos tratava das questões relacionadas ao agrário e ao rural. José

de Souza Martins, por mais que fosse uma referência constante nos

meus trabalhos, não se afigurava como uma opção de orientação.

Cheguei a pensar em fazer o doutorado PPGAS/MN/UFRJ, mas,

embora tivesse muito interesse nos debates sobre campesinato que

lá eram feitos, minha trajetória e minhas preocupações não me le-

vavam a buscar uma formação centrada na antropologia.

Refletindo muito sobre para onde me encaminhar, decidi fa-

zer a seleção para o curso de doutorado em Ciências Sociais, experi-

ência que se iniciou na Unicamp em 1985, que agregava excelentes

professores, com vasta experiência, principalmente na Sociologia e

Antropologia. Não fiz a primeira seleção, pois estava grávida e mi-

nha filha nasceria em agosto, justamente o semestre de início da

217LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

turma. Optei por me candidatar para a segunda turma, que se ini-

ciaria em março de 1986.61

Coordenava o doutorado o professor Roberto Cardoso de

Oliveira, antropólogo que já havia sido figura de proa no PPGAS do

Museu Nacional/UFRJ e na Universidade de Brasília. Para me orien-

tar, escolhi Maria Nazareth Wanderley, que conhecia desde que ela

retornara do doutorado em Paris. Nosso primeiro contato foi na

Unesp de Botucatu e a encontrava com frequência nas reuniões em

Campinas. Sua tese, defendida na França em 1975 e publicada no

Brasil em 1979, tornou -se uma referência para os que se voltavam

para o estudo da questão agrária (Wanderley, 1979). Desde os anos

1980,

,

ela passou a se dedicar ao estudo do campesinato brasileiro

e tínhamos diálogo permanente no âmbito do Pipsa, encontros da

Anpocs, entre outros espaços acadêmicos.

O INGRESSO

Para cursar o doutorado gozei de uma situação privilegiada: pude

me afastar das atividades da Universidade com salário integral e

bolsa do Programa Institucional de Capacitação de Docentes e

Técnicos (PICDT) da UFRRJ, o que criou as condições ideais para a

pesquisa e redação da tese. No entanto, apesar das circunstâncias

61 Nessa mesma seleção foi aprovada também minha colega do CPDA Regina

Bruno já então parceira de múltiplas atividades acadêmicas e não acadêmicas.

218LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

bastante confortáveis, meus investimentos em múltiplas direções

acabaram atrasando a defesa, como já acontecera no mestrado.62

O doutorado em Ciências Sociais da Unicamp era inovador e

propunha -se a provocar o diálogo interdisciplinar a partir de cam-

pos temáticos delimitados. Quando conheci a proposta, pareceu -me

que tinha um perfil plenamente adequado à experiência no CPDA

e a minha trajetória de pesquisa até então. Os candidatos se inscre-

viam no momento da seleção em áreas temáticas, mas havia um

eixo articulador dos diferentes temas, constituído pela disciplina

Teoria e Metodologia em Ciências Sociais, que se propunha a tra-

tar de questões epistemológicas e era ministrada em dois semes-

tres seguidos, no primeiro ano do curso. Funcionava como espaço

integrador de questões teóricas e metodológicas dos diferentes ei-

xos temáticos. Os professores eram Vilmar Faria, Roberto Cardoso

de Oliveira, Juarez Brandão Lopes, que teciam os fios condutores

e eram secundados por outros docentes, muitas vezes externos à

62 Fiz as disciplinas do doutorado morando no Rio e indo toda a semana para

a Unicamp, apenas para as aulas. Mudar para Campinas seria difícil: tinha dois

filhos pequenos, ainda amamentava a caçula e, por razões profissionais, meu

companheiro não poderia ir comigo. Se, do ponto de vista do desempenho no

doutorado essa opção não trouxe maiores problemas, houve perdas importantes.

Deixei de aproveitar a intensidade do ambiente intelectual da Unicamp, onde

sempre havia palestras e debates. Esta universidade se tornara ponto de pas-

sagem obrigatória da intelectualidade nacional e internacional. Por outro lado,

ficar no Rio significou que meu afastamento do CPDA foi parcial. Não por ques-

tões formais, mas por razões estritamente pessoais. Mesmo não dando aula e,

portanto, não tendo que me deslocar para Seropédica, não deixava de participar

das discussões sobre os rumos do Programa e do grupo de Movimentos Sociais

e suas atividades. Também mantinha relações com os grupos externos ao CPDA

com os quais estava envolvida anteriormente. Num contexto de redemocratiza-

ção, debates sobre Constituinte, emergência política dos sem-terra, acabei sendo

bastante absorvida pelo que estava ao meu redor, como indicarei adiante.

219LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Unicamp, convidados para uma aula ou outra. Em especial os dois

primeiros me fizeram interessantes provocações no sentido de que

eu estranhasse minha experiência acadêmica anterior. Roberto

Cardoso, naquele momento interessado em trajetórias intelectuais,

demandou, como trabalho de curso, que fizéssemos nossa biografia

intelectual. Meu texto (Questão agrária através de uma biografia)

foi um esforço de reflexão sobre minha experiência profissional a

partir de uma tentativa de distanciamento, de forma a me debru-

çar sob uma perspectiva crítica sobre minhas opções e caminhos.

Quando apresentei o trabalho ao grupo de professores e colegas,

um comentário de Vilmar Faria me marcou e me persegue até hoje:

ele chamava a atenção para o fato de que nós, “estudiosos do rural”,

nutríamos uma interlocução bastante particular, sempre com nós

mesmos. Tínhamos encontros próprios (caso do Pipsa, que apa-

recia com destaque na minha narrativa), grupos de estudo e uma

literatura de referência comum. Constituiríamos um campo de

conhecimento particular, uma comunidade científica, no sentido

kuhniano, com suas próprias regras? Essa pergunta me acompa-

nhou ao longo dos anos. Sentia -me incomodada e instigada por ela.

Por um lado, estimulava -me a um mergulho na Teoria Sociológica,

campo em que eu considerava minha formação bastante insuficien-

te. Mas também me aproximava da Antropologia, Ciência Política

e História. Por outro, o questionamento me incentivava a refletir

a respeito da enorme riqueza de estudos sobre o meio rural que,

talvez Vilmar Faria tivesse razão, parecia buscar um paradigma pró-

prio, bebendo nas águas do marxismo, nos estudos antropológicos

sobre campesinato e gerando interlocuções teórico -metodológicas

que acabavam submergindo e mesmo se invisibilizando num esfor-

ço exaustivo de pesquisas empíricas.

220LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Além das disciplinas obrigatórias (Teoria e Metodologia I

e II) e das disciplinas do campo temático selecionado, éramos

orientados a fazer pelo menos uma disciplina fora do Programa

de Ciências Sociais. No caso das disciplinas do campo temático,

cursei as oferecidas por Nazareth Wanderley, Theresa Sales e Carlos

Brandão. Nelas pude trabalhar com uma ampla bibliografia nacio-

nal e internacional sobre campesinato, trabalho assalariado rural

e pensamento social brasileiro. Aprendi muito, mas o diálogo per-

manecia dentro de um conjunto de questões que já me eram fami-

liares e que me mantinham numa certa “zona de conforto” teórico

e metodológico.

Quanto à disciplina que deveria ser cursada fora, optei por

uma Metodologia da História, oferecida por Edgar de Decca no

Programa de Pós- graduação em História da Unicamp. Já o conhe-

cia, embora de forma bastante superficial, por termos feito juntos

uma disciplina na USP, com Francisco Weffort, eu no mestrado, ele

já no doutorado. Havia lido alguns trabalhos dele e de Carlos Alberto

Vesentini, nos quais faziam um esforço de releitura da chamada

“Revolução de 30”. Lera com extremo cuidado O silêncio dos venci-

dos (De Decca, 1981), livro resultante da sua tese de doutorado, que

eu usara numa disciplina sobre Estado brasileiro que ministrara no

mestrado do CPDA. Considerava que o curso poderia contribuir

substancialmente para a problematização das questões que esta-

riam na base de minha tese de doutorado e que se voltavam para o

movimento camponês no Brasil entre 1945 e 1964 (Medeiros, 1995).

Com efeito, na disciplina fui apresentada a autores que foram fun-

damentais daí em diante para minha reflexão: Edward Thompson,

Michel Foucault, Carlo Ginsburg, Michelle Perrot. Na sequência, fiz

mais uma disciplina com o mesmo professor e, depois, iniciei mais

221LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

uma, sobre movimento operário (ministrada por Marco Aurélio

Garcia e Claudio Batalha), que abandonei logo no início, pois es-

tava com a nítida sensação que em breve trocaria de curso e me

mudaria definitivamente para a História. Após muita reflexão, achei

melhor permanecer no leito original, das Ciências Sociais, mas arti-

culei de forma mais intensa as reflexões sobre metodologia da his-

tória às minhas preocupações com a Sociologia, Ciência Política e

Antropologia. Ampliava meu olhar interdisciplinar, aprofundando

caminhos que já havia trilhado no mestrado e nas minhas incur-

sões como professora de História no Ensino Fundamental e Médio.

Nesse processo, minha orientadora me deu bastante liberdade

para lidar com minhas angústias teóricas e sempre me encorajou,

aceitando os caminhos que eu delineava.

OS TEMPOS DA PRODUÇÃO DA TESE DE DOUTORADO

E MAIS UMA VEZ OS ATRASOS

Concluídos, em 1987, os créditos em disciplinas, iniciei a pesquisa

para a tese, mas num ritmo bastante lento. Foram várias as razões

para isso. A primeira delas foi que, apesar de formalmente afastada

para fazer o doutorado, continuava orientando e alguns estudan-

tes

,

Unicamp desenvolveu o conceito agroindustrial (o com-

plexo agroindustrial), em pesquisas lideradas por Graziano da Silva

e Angela Kageyama. Todavia, o foco neste caso era na internali-

zação dos insumos agrícolas e das indústrias de maquinário, que

quebraram a dependência da modernização agrícola nos caprichos

24JOHN WILKINSON

do comércio exterior e do câmbio internacional, e ligaram a agri-

cultura à dinâmica do complexo agroindustrial doméstico e da

economia como um todo.

A vantagem específica dos estudos realizados dentro do

contexto da pesquisa Arroyo/Pecla era identificar estratégias por

parte da indústria de beneficiamento de alimentos, no sentido de

desenvolver cadeias agrícolas alinhadas às diversas demandas

alimentares da nova dieta urbana. Isto abriu uma perspectiva bem

diferente do meu “problema” acerca da funcionalidade da agricul-

tura de subsistência para a acumulação do capital. Do ponto de vis-

ta da agroindústria, a agricultura de subsistência não só precisava

modernizar os seus processos de produção, como também precisa-

va priorizar as demandas de uma dieta urbana agora mais baseada

em proteína animal e verduras. Por outro lado, nestas condições, o

pequeno agricultor poderia tornar -se um elo privilegiado na cadeia

agroindustrial. Não havia, portanto, uma relação necessária entre

a modernização, ou o desenvolvimento do capitalismo na agricul-

tura, e o desenvolvimento da agricultura em grande escala com a

resultante eliminação da agricultura familiar.

Este entendimento passou a orientar a minha pesquisa no

Nordeste, e comecei a focar a dinâmica e o impacto do Programa

Polonordeste do Banco Mundial e seus projetos no estado da Bahia.

Meu “problema” poderia agora ser reformulado da seguinte forma:

o setor agrícola de subsistência poderia ser funcional na medida

em que abandonasse a sua lógica de subsistência e conseguisse

tanto modernizar os seus sistemas de produção como integrar -se

aos mercados, de modo a permitir o acesso aos insumos agrícolas

por meio do crédito. Todavia, neste novo cenário, feijão, mandio-

ca e milho não seriam mais os carros-chefes da alimentação dos

25JOHN WILKINSON

assalariados urbanos, e os pequenos agricultores “europeus” do

Sul do país passaram a ser os parceiros privilegiados das cadeias

de carnes brancas e laticínios. Nesta perspectiva, também a pres-

são econômica pela reforma agrária era aliviada por pequenos

produtores de origem alemã assentados no Sul que mostraram ser

parceiros atuantes do emergente complexo agroindustrial.3

Entretanto, antes de recomeçar o meu trabalho de campo, a

Bolsa da Fundação Ford acabou e tive que retornar à Inglaterra,

agora para Londres. Havia alguma pressão e uma certa nostalgia

por um envolvimento renovado na militância, mas durante a mi-

nha estada no Brasil havia me distanciado não só da militância, mas

também, embora menos definidamente, do marxismo. Dois livros

tiveram papel fundamental neste sentido – Stoneage Economics, de

Sahlins (1972), e Mirror of Production, de Baudrillard (1973) –, pois

ambos destacavam a cultura e o consumo. Esta orientação ao con-

sumo me fez focar desde então no papel hegemônico emergente

do varejo de larga escala e confirmou minhas percepções acerca do

consumo alimentar urbano desenvolvido dentro da estrutura de

pesquisa Arroyo/Pecla.

Em Londres, conheci David Goodman, então professor da

University College London, que se tornaria um parceiro intelectual

a partir de então. Goodman fazia parte de uma equipe de pesquisa

liderada por Richard Munton, da qual àquela época Terry Marsden

e Sarah Whatmore eram membros juniores. Ele também dirigia um

seminário sobre o Brasil, do qual participava Maria Jose Carneiro,

que, depois, entraria no CPDA comigo, no mesmo ano de 1982.

3 A dinâmica social e dos direitos da reforma agrária ficariam mais claras com a

democratização a partir de 1985.

26JOHN WILKINSON

Sorj também estava em Londres. Escrevemos juntos um artigo,

“Processos sociais e formas de produção na agricultura brasileira”,

que foi publicado num livro organizado por Bernardo Sorj e Maria

Herminia Tavares de Almeida, em 1983, e Sorj propôs que eu cola-

borasse num livro que ele estava escrevendo que seria publicado

pela Zahar com o título Estado e classes sociais na agricultura bra-

sileira. Entretanto, o meu conhecimento do Brasil ainda era muito

frágil e, em vez disto, dentro da estrutura do Seminário de David

Goodman, nós três começamos a desenvolver as nossas visões

acerca da tese do complexo agroindustrial.

Nosso argumento principal era que o conceito do complexo

agroindustrial, bem como a noção de um “pacote tecnológico” da

Revolução Verde, sugeriu um processo demasiadamente coerente.

Em vez disso, argumentamos que diferentes aspectos do processo

agrícola eram apropriados em momentos distintos, com base em

possibilidades tecnológicas diversas e por capitais diferenciados.

Creio que até usamos o conceito de Poulantzas de “diferentes fra-

ções da capital”, bastante popular à época. Um artigo nesta linha se-

ria finalmente publicado em 1985 na Revista de Economia Política,

com o título “Agroindústria, políticas públicas e estruturas sociais

rurais” (87 citações no Google Scholar).4 Até aquele momento,

todavia, estávamos bem adiantados com a elaboração de From

Farming to Biotechnology, que seria publicado dois anos depois

pela Blackwell.

4 Em diferentes pontos deste Memorial indicarei dados das citações Google

Acadêmico para publicações distintas. Até 13 de agosto de 2019, meu total de

citações na Google Scholar era de 6.051 (com índice-h de 35 e índice-10 de 86).

27JOHN WILKINSON

Na nossa estadia na Europa, Sorj e eu visitamos Gonzalo

Arroyo em Paris, onde também conhecemos seus auxiliares Jean

Marc Van der Weid e Sylvio Gomes de Almeida, que depois funda-

riam a Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa,

(AS-PTA), no Brasil e defenderiam o fortalecimento das redes de

produção e intercâmbio de inspiração especificamente camponesa.

Depois de um ano e meio em Londres, retornei ao Brasil

com a promessa de que trabalharia na Secretaria de Agricultura na

Bahia, com a responsabilidade de avaliar os programas especiais

do Banco Mundial no estado – Polonordeste e Projeto Sertanejo.

Esta posição me ofereceu condições ideais para redesenhar o meu

trabalho de campo, agora beneficiado com excelente apoio logís-

tico e auxiliares de pesquisa. O acompanhamento destes projetos

familiarizou -me com o “interior” da Bahia (que tem as dimensões

da França) e consegui realizar pesquisas em regiões importantes

em termos da presença de pequenos agricultores. A pesquisa mais

detalhada foi elaborada no assentamento de Serra do Ramalho,

para agricultores removidos das suas terras e comunidades para

a construção de barragem hidrelétrica de Sobradinho no rio São

Francisco (“Velho Chico”). Sou eternamente grato pelo apoio da

equipe da Cepa durante esse período e, especialmente, à Cristina

Macedo, que compartilhou o trabalho de campo comigo na Serra

do Ramalho.

À época, infelizmente, mas provavelmente para o melhor no

final das contas, contraí hepatite durante a pesquisa no assenta-

mento e fiquei acamado por uns dois meses. Em repouso forçado

e com a ajuda de doses de “cana de macaco”, um suco de uma va-

riedade de cana-de-açúcar, de um vizinho amável que também me

disponibilizou uma leitura erudita (Elogio da loucura, de Erasmo

28JOHN WILKINSON

de Roterdã), consegui dedicar -me à redação da minha tese. Apesar

do enfraquecimento da influência que tiveram sobre mim desde

o início na universidade, os debates agrários clássicos ainda eram

referência decisiva para a análise da realidade contemporânea, e

mergulhei na leitura de The Development of Capitalism in Russia,

de Lenin, e Peasant Farm Organization, de Chayanov (traduzido

apenas para o inglês em 1966 e lido por mim

,

estavam terminando o mestrado nesse período, exigindo mais

dedicação de minha parte. Além disso, o CPDA estava envolvido

em intensas discussões sobre mudança curricular, reordenação de

campos temáticos, criação de novas áreas de concentração, com

os estudos sobre cultura ganhando mais espaço. Esses debates se

faziam de forma bastante tensa, permeados pelos riscos de desa-

gregação de um grupo cuja marca era a capacidade de sobreviver às

crises (internas e externas). Não era só um investimento de algumas

222LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

horas, mas um permanente envolvimento emocional de todos

nós. Nas discussões estavam em jogo não apenas uma estrutura

de curso, mas subjacente a ela concepções sobre desenvolvimen-

to; relações entre agricultura e meio rural e presença do rural no

urbano, colocando em questão as fronteiras entre esses espaços;

dimensões culturais do mundo rural, chamando a atenção para

outros aspectos desse universo que pouco haviam sido objeto de

tratamento sistemático nas disciplinas existentes até então.

Ao tempo dessas discussões, foram criadas as áreas de concen-

tração “Desenvolvimento e Agricultura” e “Sociedade e Agricultura”

para abrigar os distintos interesses de reflexão e pesquisa. Filiei -me

à área de “Desenvolvimento e Agricultura”. A essas duas áreas de

concentração somou -se uma outra, em “Planejamento e Políticas

de Desenvolvimento Agrícola e Rural na América Latina e o Caribe”,

denominada “Vittorio Marrama”, criada em 1989, sob o patrocínio

da FAO/Roma e da Cooperação Técnica Internacional do governo

italiano.63 Essa área funcionava, por exigência da FAO, na cidade

do Rio de Janeiro, num precário espaço cedido pela UFRJ no seu

campus da Praia Vermelha. Nem todos professores do CPDA parti-

cipavam da experiência latino-americana (entre estes, eu mesma),

provocando novas tensões internas. Por outro lado, essa movi-

mentação trouxe com mais força, para o CPDA, a possibilidade de

63 Após cinco turmas, já sem o apoio da FAO, essa área de concentração se trans-

formou na área de “Estudos Internacionais Comparados”, que deixou de existir,

assim como as demais, na reforma do curso iniciada em 2003.

223LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

mudança de lugar físico. Buscávamos alternativas para nos fixar na

cidade do Rio de Janeiro, o que aconteceria em 1992.64

Tudo isso ocorria num momento em que a pós- graduação

brasileira se consolidava, criava mecanismos gradativamente mais

sofisticados de avaliação, áreas de filiação mais especializadas e

nos obrigava a fazer opções. Cada vez mais nos distanciávamos das

abordagens econômicas e valorizávamos as dimensões sociais e

políticas, o que nos levou desde cedo a escolher como área de ava-

liação a de Ciências Sociais.

Uma segunda razão da demora na minha titulação foram os

investimentos relacionados à inserção na academia, como pesqui-

sadora dos movimentos sociais. O tema me colocava num lugar

ambivalente, com o qual já convivia há algum tempo. Como afir-

mei anteriormente, nunca tive a menor sombra de dúvida de que

minha opção profissional era a academia. Para isso, tinha que ter-

minar a tese e prosseguir as atividades de pesquisa e orientação,

mas não rejeitei possibilidades de diálogo com movimentos socais,

com organizações não governamentais que atuavam com os tra-

balhadores do campo e, mais eventualmente, com instituições

governamentais. Esse diálogo me alimentava como pesquisadora,

colocando -me questões que dificilmente chegariam por outros

caminhos, estritamente acadêmicos.

64 Em maio de 1990, o Instituto do Açúcar e do Álcool foi extinto pelo governo

Collor de Melo. Vários de seus prédios foram cedidos a outras instituições. É o

caso dos quatro andares que funcionavam na avenida Presidente Vargas (6o ao

9o), formalmente cedidos à UFRRJ, após negociação mediada pela FAO, que tinha

interesse em que a área de concentração que financiava funcionasse na cidade

do Rio de Janeiro, dado o perfil latino-americano dos alunos e a necessidade de

que convivessem com as bibliotecas, que abundavam na cidade.

224LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

Continuei envolvida em debates vários. Já em 1987, vivi uma

experiência enriquecedora participando, como representante da

UFRRJ, na Comissão Agrária do Estado do Rio de Janeiro.65 A tare-

fa central era participar de reuniões nas quais eram apresentados

os processos de desapropriação, já devidamente instruídos com

relatórios de vistoria, e discutir sobre a pertinência ou não da desa-

propriação. Essa atividade me ajudou muito a refletir sobre temas

que depois se consolidaram como objetos de pesquisa: a relação

Estado/assentamentos no Rio de Janeiro, a dinâmica dos assenta-

mentos fluminenses considerando a peculiaridade de seu público,

os argumentos patronais (que eu havia estudado no mestrado, a

partir de documentos, mas que agora eram esgrimidos em torno de

uma mesa, num debate no qual estava em jogo a desapropriação

ou não de alguns imóveis), e também meu lugar ali, como repre-

sentante do Estado a partir da universidade. Esse foi um momento

central para entender a multiplicidade de espaços e disputas no in-

terior do Estado.

Paralelamente, participava de reuniões no Instituto Brasileiro

de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), para onde fora Candido

Grzybowski, após um curto período como professor do CPDA. Num

momento de intensas discussões sobre as perspectivas da reforma

65 Após a aprovação do I Plano Nacional de Reforma Agrária, no final de 1985, as

diferentes unidades da Federação elaboraram seus próprios planos e constituíram

suas comissões agrárias, destinadas a analisar os processos de desapropriação de

terras e opinar sobre eles. As comissões eram compostas por três representantes

das entidades patronais, três das entidades de trabalhadores e três do Estado:

o superintendente do Incra estadual, um representante do governo estadual e

um representante da Universidade. As comissões funcionaram por cerca de dois

anos. Em virtude das vicissitudes políticas da reforma agrária no governo Sarney,

acabaram desaparecendo ainda no final dos anos 1980.

225LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS

agrária ante os recuos do governo Sarney e os horizontes que se

abriam diante da instalação da Assembleia Constituinte em 1987,

o Ibase era um fórum importante. Criara, em 1983, a Campanha

Nacional pela Reforma Agrária, que se desdobrou na coleta de assi-

naturas para que a proposta fosse incorporada na nova Constituição.

Nos anos 1980, o seu casarão na rua Vicente de Souza abrigava dis-

cussões e seminários diversos sobre reforma agrária.

Logo depois, fui convidada por Maria Emília Pacheco, uma

das coordenadoras da Federação de Órgãos para Assistência Social

e Educacional (Fase), para um trabalho que representou um enor-

me desafio, que aceitei, fiz com muito prazer, mas exigiu -me um

grande investimento. A Fase, que tinha uma tradição de atuação

em formação de trabalhadores, pedia -me para escrever um livro

sobre a história das lutas dos trabalhadores do campo, destinado a

subsidiar formação de lideranças. Eu tinha muita pesquisa já feita

sobre o tema, tanto para minha dissertação de mestrado, quanto

para a de doutorado ainda em curso, além de coisas escritas sobre

sindicalismo. Tratava -se de sistematizar isso, verificar as ausên-

cias e redigir um texto não acadêmico, ilustrado, com sugestões de

vídeos. De acordo com a proposta, eu me encarregaria do texto e

sugestões de imagens, e a Fase se responsabilizaria pela pesquisa

de vídeos e edição do texto com as ilustrações adequadas. Jean

Pierre Leroy elaborou, a partir de uma versão preliminar que pro-

duzi, uma linha do tempo que foi encartada no livro. O resultado,

História dos movimentos sociais no campo (Medeiros, 1989), além

de largamente utilizado em cursos de formação, acabou sendo

indicado também em algumas escolas de segundo grau e em anos

226LEONILDE SERVOLO

,

em versão espanhola).

Na minha leitura, as estatísticas do próprio Lenin não apoia-

vam a sua tese da diferenciação de classes e do desaparecimento de

propriedades camponesas de tamanho médio em benefício dos tra-

balhadores rurais e grandes propriedades. O que mais me impres-

sionou na leitura de Chayanov não foi o ajustamento da produção

camponesa ao ciclo de vida familiar mas o seu relato da integração

da produção camponesa à cadeia agroindustrial da juta, quando ele

faz uma análise clarividente daquilo que estávamos categorizando

como a integração vertical da pequena agricultura na agroindús-

tria, embora fosse através do sistema de cooperativas, e não das

corporações privadas, que Chayanov projetara como modelo.

Defendi minha tese em 1982, e o PhD concluído acabou sen-

do meu passaporte para a entrada no CPDA/UFRRJ, onde Nelson

Delgado e mais uma vez Bernardo Sorj foram influências decisi-

vas. Antes disso, apresentei a minha pesquisa numa reunião do

CPDA, na qual fiquei impressionado pelo entusiasmo na condução

das discussões. Posteriormente, naquele ano, apresentei um tra-

balho na reunião da Anpocs que foi publicado na Série, Programa

de Estudos de América Latina, (Pecla), da Universidade de Minas

Gerais, com o título “Reflexões sobre o estado e a pequena produ-

ção tradicional”. Minha tese foi publicada pela editora Hucitec, em

1985, com o título O estado, a agroindústria e a pequena produção

29JOHN WILKINSON

(120 citações), numa série organizada por Oriowaldo Queda e João

Carlos Duarte, sendo o segundo colega no CPDA, infelizmente já

falecido.

Em 1980 ou 1981, David Goodman veio ao Rio de Janeiro

como diretor da Fundação Ford e nós, juntamente com Bernardo

Sorj, começamos a ter reuniões regulares nas quais formulamos a

ideia de um projeto de livro. À época, eu estava impressionado com

The Agrarian Question, de Karl Kautsky, que li numa versão em es-

panhol (Partes de The Agrarian Question haviam sido traduzidas

para o inglês por Jairus Benaji e publicadas em Economy & Society,

em 1975.) Para mim, Kautsky capturou, mais do que qualquer outro

autor, o caráter especial da produção agrícola diante do desenvol-

vimento tecnológico e da instrumentalização da agricultura uma

vez sujeita à industrialização. Num tempo em que ferrovias e na-

vios a vapor estavam revolucionando o transporte, a agricultura

continuou dependente da energia animal até a chegada do trator.

Esforços foram feitos para que fossem utilizadas máquinas sobre

trilhos em propriedades agrícolas, mas foram rapidamente abando-

nados e introduzidas apenas máquinas fixas para o beneficiamento

das lavouras já colhidas. Na análise de Kautsky, vemos claramente

como a agricultura constitui um problema para o capitalismo e em

um momento ele exclama que se o capitalismo pudesse produzir

pão de pedras, assim faria.

Desse modo, o nosso ponto de partida era a excepcionalidade

da produção agrícola para o capitalismo. Não podíamos simples-

mente falar da industrialização da agricultura, mas precisávamos

reconhecer o seu caráter parcial e fragmentado que era relacionado

com os avanços da ciência em lidar com processos agrícolas.

Precisávamos voltar aos primórdios da história das transformações

30JOHN WILKINSON

agrícolas na sequência da revolução industrial. Bernardo Sorj, que

passara algum tempo na OCDE em Paris, nos apresentou ao tra-

balho de François Chesnais sobre biotecnologia, que ofereceu um

enfoque mais claro tanto da especificidade da agricultura como da

forma em que convergências tecnológicas na agricultura depen-

diam do grau ao qual os processos biológicos podiam ser sujeitos à

manipulação industrial.

Começou então um período muito intenso de leitura coleti-

va, pesquisa e discussão facilitado ainda mais com a transferência

de Bernardo Sorj para a Universidade Federal do Rio de Janeiro no

mesmo período em que entrei no CPDA. Os textos centrais foram

Agriculture in Western Europe, de Tracy (1982) e uma multidão

de artigos sobre a chamada high farming – “The second agricul-

tural revolution”, o artigo de F. M. L. Thompson, de 1968, seria um

bom exemplo. Food in History, de Tannahill, foi uma fonte útil. O

Escritório de Avaliação Tecnológica do Congresso dos Estados

Unidos (OTA), posteriormente fechado, também foi uma referên-

cia-chave sobre a biotecnologia na década de 1980. D. S. Landes,

cuja obra Prometheus Unbound teve influência decisiva sobre mim,

por algum motivo não foi citado na versão final do livro. O artigo

de Mann e Dickinson, de 1978, “Obstacles to the Development of

a Capitalist Agriculture” estava bastante alinhado com o nosso

pensamento e os autores franceses da década de 1970 – C. Faure,

Agriculture et Capitalisme, 1978; A. Mollard, Paysans Exploités,

1978; C. Servolin, “L’Absorption de l’agriculture dans le mode de

production capitaliste”, 1972 – e ofereceu importantes contribui-

ções sobre a modernização do campesinato.

Além dos relatórios técnicos produzidos pelo OTA, OCDE e a

Comissão Europeia, a biotecnologia começava a despertar a atenção

31JOHN WILKINSON

de acadêmicos e deve -se mencionar os artigos de E. Yoxen, de 1981,

“Life as a Productive Force: capitalising the science and technolo-

gy of molecular biology”; o artigo de 1983, de Kenny, Kloppenberg,

Buttel e Cowan, “Genetic Engineering and Agriculture: socioeco-

nomic aspects of biotechnology R&D in developed and developing

countries”, bem como o livro de P. Byé e A. Mounier, Les Futures

Alimentaires et Energetiques des Biotecnologias, 1984.

Dando continuidade à nossa rejeição à noção de um comple-

xo agroindustrial unificado, argumentamos que a industrialização

das atividades agrícolas a jusante e a montante era radicalmente

diferente e que, dentro de cada processo amplo, dinâmicas tecno-

lógicas distintas poderiam ser identificadas. Os avanços científicos

e tecnológicos com respeito aos processos biológicos definiam o

potencial cambiante de convergências e o grau em que a indus-

trialização da agricultura poderia avançar. A industrialização a

montante teria como base a continuação da agricultura, que seria

transformada em mercados para insumos industriais, equipamen-

tos e maquinaria. Denominamos este padrão de industrialização

de “apropriacionismo”. A jusante, todavia, os produtos agrícolas

eram transformados em meros insumos para a criação de produtos

industriais alimentares e não alimentares. Esta instrumentaliza-

ção da matéria-prima agrícola apontava que, em princípio, depen-

dendo do desenvolvimento tecnológico, dos custos e da aceitação

pelos consumidores, os insumos agrícolas poderiam ser completa-

mente dispensáveis. Sendo assim, a industrialização dos produtos

a jusante era definida como “substitucionismo”.

A agricultura, nesta perspectiva, era o residual, resistente à

industrialização, reduzida às atividades elementares da fotossíntese

que o agricultor precisava gerenciar com base numa multiplicidade

32JOHN WILKINSON

de insumos industriais e fornecedores de máquinas para os quais

a agricultura fora transformada em mercado. Aqui estava o germe

de uma crítica ecológica que não foi plenamente explicitada no

texto final.

Antes de concluir o livro, mas com o rascunho bem adiantado,

David retornou à Inglaterra. Bernardo Sorj estava trabalhando com

a Cube, a Unidade de Biotecnologia da XII Diretoria da Comissão

Europeia, e fui convidado a me candidatar a uma Fellowship na

Unidade de Previsão e Avaliação de Ciência e Tecnologia (Fast, da

sigla em inglês), também da XII Diretoria da Comissão Europeia.

À época, eu estava bem integrado no CPDA, era Pesquisador 1

do CNPq (e continuo sendo),5 e havia sido eleito coordenador do

CPDA nos dias inebriantes que marcavam o fim da ditadura militar

no Brasil. O próprio CPDA estava experimentando um período de

tensão, na medida em que novas temáticas e novos conceitos do

que seria o “rural”

,

começavam a desafiar o seu perfil econômico e

político dominante até então. No governo de transição, um dos nos-

sos colegas estava no Ministério de Reforma Agrária e, com Nelson

Delgado, fomos a Brasília para apresentar uma visão de uma pos-

sível colaboração entre os ministérios relevantes e o CPDA. Foi du-

rante esta difícil conjuntura que recebi o convite para fazer parte

da equipe Fast em Bruxelas. Felizmente, o CPDA foi receptivo e o

professor Jorge Romano, generosamente, concordou em assumir o

meu lugar como coordenador.

Passei quase dois anos trabalhando no Programa Fast, e

fui colocado na direção da pesquisa em biotecnologia e sistema

5 O projeto com o qual me tornei pesquisador do CNPq foi escolhido como me-

lhor projeto de pesquisa de 1984.

33JOHN WILKINSON

alimentar. Já que David Goodman e eu estávamos em constante

contato, rapidamente concluímos e preparamos o texto que es-

tivéramos redigindo com Bernardo Sorj para a publicação, pela

Blackwell: From Farming to Biotechnology (1.009 citações). No

meu tempo no Programa Fast, elaborei um plano de pesquisa so-

bre diferentes elos na cadeia alimentar e biotecnologia e contratei,

além de David, uma pesquisadora uruguaia, Ruth Rama, na época

e ainda hoje, no Conselho Espanhol de Pesquisa (CSIC, sigla em

espanhol) em Madri, que trabalhara com Raul Vigorito no México

e com quem trabalhei e continuo trabalhando numa série de pro-

jetos de pesquisa relacionados à inovação na agricultura e no sis-

tema alimentar. Também estabeleci um contrato com o Institute

National de Récherche Agricole, (INRA), em Paris que proporcio-

nou contatos com o pesquisador Raul Green, com quem iria cola-

borar intensamente nos anos seguintes, e que foi o primeiro a me

apontar a hegemonia emergente do setor varejista de larga escala

sobre o sistema alimentar como um todo, e como corolário, a cen-

tralidade não só da biotecnologia como também da informática no

sistema agroalimentar.

Antes de deixar o Programa Fast, preparei um relatório que

saiu na Série de Publicações do Programa Fast e foi depois traduzi-

do e publicado em 1989 no Brasil, pela Hucitec, que também havia

publicado minha tese, com o título The Future of the Food System

(62 citações). Com base no nosso trabalho na Comissão Europeia

e especificamente na biotecnologia, que rapidamente estava se

tornando uma questão vital de política, tanto eu como Sorj fomos

contratados para produzir uma série de Relatórios para o Centro

de Desenvolvimento da OCDE. No meu tempo no Programa

Fast, havia feito contatos com a Unidade de Pesquisa de Políticas

34JOHN WILKINSON

Científicas (SPRU, sigla em inglês), em Brighton, Inglaterra, e isto

me levou a um contato empolgante com a teoria neoschumpete-

riana da inovação e a teoria de regulação que apliquei à biotecno-

logia. Um contrato com a OCDE abriu as portas para eu entrevistar

empresas startups líderes na agrotecnologia, empresas de sem*n-

tes e firmas químicas e de alimentos nos Estados Unidos, Europa e

Japão. Esta pesquisa deu origem a duas publicações, um capítulo

no livro da OCDE Biotechnology, Agriculture and Food, organizado

por Salomon Wald (1992), e um artigo na revista Agriculture and

Human Values, em 1993, “Adjusting to a Demand Oriented Food

System: new directions for biotechnology innovation”. Este segun-

do trabalho foi a reformulação de uma apresentação feita numa

Conferência de Biotecnologia organizada por Pascal Byé e Maria

Fonte em Roma, em 1992, e seria talvez a mais “neoschumpeteria-

na” entre as minhas publicações. O Centro de Desenvolvimento da

OCDE também foi uma importante fonte de apoio de pesquisa para

estudar biotecnologias no Brasil, e resultou em três estudos publi-

cados pelo Centro de Desenvolvimento da OCDE sobre biotecno-

logias e bioetanol, milho, e os Centros de Soja e Trigo da Embrapa,

respectivamente.

Ao retornar ao Brasil, e com base no meu trabalho no Programa

Fast, fui convidado a ocupar o cargo de assessor/consultor na en-

tão Secretaria de Ciência e Tecnologia, em Brasília, cujo secretário

executivo era Luciano Coutinho, com quem depois trabalharia em

diversos projetos de pesquisa. Fui encarregado de preparar um

documento: “Tecnologias Avançadas e América Latina, 2000”, que

tratava da informática, biotecnologia, novos materiais, química fina

e telecomunicações. A ideia era de engajar os cinco grandes paí-

ses latino-americanos – Argentina, Colômbia, Venezuela, México

35JOHN WILKINSON

e Brasil –, e isto me proporcionou uma oportunidade singular de

visitar esses países e suas unidades mais importantes de ciência e

tecnologia. Recordo -me de que, quando o projeto estava amadu-

recendo bem, passou a ser objeto de atenções, e a coordenação foi

passada à filha de um general boliviano, se não me engano.

Em 1989-90, fui convidado como pesquisador visitante ao

Inra, em Paris, por Raul Green, que trabalhara comigo no Programa

Fast em Bruxelas. Este foi um período bastante formativo e, em cola-

boração com Roseli Rocha dos Santos, da Universidade Federal do

Paraná, estabelecemos um observatório dos principais grupos na

área de agroalimentos, cobrindo publicações em francês, italiano,

inglês, português e espanhol. Ao longo dos anos, reproduzimos

muitos volumes de artigos em periódicos e jornais que proveram va-

liosíssimos materiais para a nossa pesquisa contínua e publicações.

Jorge Schvarzer, um colega argentino de Raul Green, e eu coorgani-

zamos o estudo Mercados, Tecnologia y Empresas, publicado pelo

Inra, Paris, em 1991, resultado de uma pesquisa com financiamen-

to da Cooperativa Europeia, Credal, La Dynamique du Changement

Technique et la Restructuration du Secteur Agroalimentar que reunia

pesquisadores da França, Argentina e Brasil, com trabalhos apre-

sentados em reuniões em Buenos Aires, Curitiba e Paris durante o

biênio 1989-1990. Além de mim, Roseli Rocha dos Santos e Geraldo

Müller proveram as contribuições brasileiras a este volume.

Enquanto estava em Paris, passei a integrar um projeto euro-

peu de pesquisa sobre a Reestruturação da Indústria Alimentar na

Europa, “Changement Technique et Restructuration de l´Industrie

Agroalimentaire”, e fui incorporado como o representante “britâni-

co”, com base na minha associação com David Goodman e a unidade

de pesquisa coordenada por Richard Munton. O componente

36JOHN WILKINSON

italiano foi coordenado a partir da Universidade de Bologna, por

Roberto Fanfani, e de Madri, por Manuel Rodriguez Zuñiga, infe-

lizmente falecido, e do Inra/Paris, por Raul Green. Publicamos um

artigo conjunto em 1991 que esboçou a abordagem teórica e as

principais conclusões da pesquisa no periódico francês Économie

et Sociologie Rurales.

Nos extensos períodos de cooperação com Raul Green, desen-

volvi uma apreciação mais profunda do papel histórico do comér-

cio (sendo ele grande aficionado de Braudel), da centralidade do

varejo em grande escala para a redefinição das relações a jusante,

ao longo da cadeia agroalimentar, e a montante, para a demanda fi-

nal, e, sobretudo, o papel decisivo da logística e informática.6 Já ha-

víamos sido claros acerca da importância tanto do varejo como da

informática nos esboços finais de From Farming to Biotechnology,

mas eu ainda insistia na centralidade das biociências em definir as

relações entre a indústria e os processos naturais do agroalimento.

No CPDA, comecei o meu ensino em 1982 com uma disciplina

acerca dos clássicos debates agrários e, então, preparei uma disci-

plina inicialmente intitulada “Estruturas Agroindustriais” e, depois,

“The World Food System”, que se tornou elemento permanente no

currículo do CPDA. Um desenvolvimento institucional de grande

importância foi a criação do Curso de Mestrado Latino-Americano

Vittorio Marrama, ao final da década de 1980, com financiamento

da Food and Agriculture Organisation (FAO), das Nações Unidas,

em parceria

,

com a Universidade de Portici, na Itália, e também

6 Uma das primeiras dissertações de Mestrado que supervisionei era sobre o

tema dos supermercados – O fenômeno supermercado –, concluída com êxito por

Carlos Alberto Pereira, em 1990.

37JOHN WILKINSON

com a Universidade Autônoma, de Roma. Lá ministrei uma disci-

plina sobre Agricultura e Agroindústria na América Latina, que me

trouxe contatos com autores e pesquisadores da agricultura e agro-

alimentos de um amplo número de países latino-americanos, es-

pecialmente Argentina, Uruguai, Chile, Colômbia e México. Os alu-

nos, especialmente nos anos iniciais, geralmente eram excelentes e

era um prazer e um desafio lecionar e orienter as suas dissertações.

Esta experiência posteriormente seria valiosíssima quando come-

cei diversas atividades de pesquisa para a FAO América Latina,

Ecla/Cepal, IICA e Procisur (um programa de cooperação entre os

Institutos Nacionais de Pesquisa Agrícola dos países do Mercosul).

Já em 1988, começara o meu envolvimento no Mercosul,

quando, com Hector Alimonda (já falecido, infelizmente), e com o

apoio da Fundação Ford, organizamos o que deve ter sido o primei-

ro seminário a analisar a dinâmica da agricultura no contexto da in-

tegração regional dos países do Mercosul. Os contatos de Alimonda

na Argentina foram decisivos para o sucesso do seminário, e os

resultados foram publicados como Anais pela nossa Universidade

(UFRRJ). Pensando retrospectivamente, a qualidade dos trabalhos

apresentados e a originalidade dos temas mereciam uma estratégia

de publicação mais ousada.

Conforme já mencionado, eu havia começado a me distan-

ciar do marxismo ao ler Sahlins e Baudrillard, mas este processo

foi lento e irregular. O capítulo sobre os debates agrários em From

Farming to Biotechnology mostrava o quanto ainda devíamos aos

termos marxistas. Um período de distanciamento ainda maior para

mim foi o tempo no Programa Fast e, nos anos seguintes, quando

cada vez mais busquei inspiração nas perspectivas neoschumpe-

terianas. Technical Change and Economic Theory, quando da sua

38JOHN WILKINSON

publicação, em 1988, organizado por Geovanni Dosi, Christopher

Freeman, Richard Nelson, Gerald Silverberg e Luc Soete, passou

a ser a minha bíblia. Geovanni Dosi foi o comentarista no traba-

lho que apresentei à Conferência de Biotecnologia em Roma, em

1992. Meu neoschumpeterianismo ao mesmo tempo vinha mis-

turado com a teoria francesa de Regulação (também muito bem

representado na “bíblia”), que, por sua vez, mantinha uma relação

ambivalente com o marxismo. Assim seria mais preciso falar de um

distanciamento do marxismo do que de um rompimento.

A obra de Buttel e Newby (eds.), Rural Sociology of the

Advanced Societies: critical perspectives (1981), marcou uma mu-

dança decisiva na disciplina para um foco nas novas relações de

produção que estavam emergindo na agricultura e, também, um

foco mais amplo sobre as questões de política agrícola. Na sua

abertura aos debates marxistas, um enfoque na economia políti-

ca dos sistemas agroalimentares começou a definir o campo dos

estudos rurais no mundo desenvolvido também. Uma nova gera-

ção de acadêmicos surgiu nos Estados Unidos – Fred Buttel, Jack

Kloppenberg, Larry Busch, Martin Kenny, Julie Guthmann, Phil

McMichael e Harriet Friedmann. Os dois últimos, ao combinarem

Wallerstein com a teoria de regulação, ofereceram uma potente es-

trutura macro para analisar o Sistema Alimentar ao desenvolverem

a sua abordagem de “regimes alimentares”. Bill Friedland, um radi-

cal da velha guarda, publicou Manufacturing Green Gold, em 1981,

que se encaixava perfeitamente nas novas preocupações acerca da

cadeia agroalimentar.

Nosso livro From Farming to Biotechnology recebeu uma rese-

nha amplamente positiva de Fred Buttel e foi muito bem recebido,

comentado e citado no mundo dos estudos rurais da língua inglesa.

39JOHN WILKINSON

David Goodman foi da University College, Londres, à Universidade

Santa Cruz, Califórnia, em 1990, o que, em função da nossa conti-

nuada colaboração, significou que eu também me integrei com a

crescente rede de sociólogos rurais “radicais”. O empurra e puxa do

marxismo como referência, portanto, continuava, como continua

até hoje.

Algo decisivo àquela época foi o meu “encontro” com Mark

Granovetter e sua noção de embeddedness (enraizamento) e das

redes sociais como unidades analíticas para entender a ativida-

de econômica. Não me lembro mais do ano exato ou do texto de

Granovetter que me lançou na minha investigação da nova socio-

logia econômica (NSE), mas fui impactado o suficiente para ter

uma troca de cartas com esse autor enquanto ele ainda estava na

Universidade Estadual de Nova York, em Stony Brook. Com a mi-

nha formação marxista, a economia sempre foi elemento central

no meu pensar, mas tive uma convicção weberiana contínua de

que ela deve ser entendida como uma forma de ação social. O foco

sobre inovação, primeiramente com relação à agricultura e, poste-

riormente, na forma do neoschumpeterianismo, me atraía preci-

samente porque envolvia a iniciativa humana e social. Bengt-Äke

Lundvall, um influente neoschumpeteriano da Dinamarca, que

desenvolveu o conceito do “sistema de inovação” e focalizava bas-

tante o aprendizado, passou a ser especialmente importante porque

criou a noção da “inovação induzida pelo usuário”, que colocava a

iniciativa social em vez do desenvolvimento autônomo da ciência

40JOHN WILKINSON

e tecnologia no cerne da inovação.7 O trabalho de Granovetter foi

especialmente importante porque, na minha leitura, ele não se

limitou a identificar as influências sociais sobre a ação econômi-

ca, mas mostrou, especialmente na sua análise da informação e das

redes sociais, como a própria informação que fundamenta a ação

econômica é filtrada e se faz presente através das redes sociais.

Getting a Job e The Strength of Weak Ties foram possantes exempli-

ficações desta abordagem.8

Daquele ponto em diante, sempre me descrevi como um

sociólogo econômico. O Brasil, naquele momento, na esteira da

redemocratização, experimentou uma renovação dos movimentos

sociais rurais tanto pela reforma agrária como para o fortalecimen-

to do setor agrícola familiar. Como parte das iniciativas do CPDA,

ministrei cursos à ala sindical do Movimento dos Sem Terra (MST),

e preparei material didático, Agricultura x indústria: os espaços da

produção familiar (2 vols.), sobre a agricultura familiar, não como

setor de subsistência, mas como componente vital do sistema

agroalimentar moderno, para cursos organizados pelo Instituto

Interamericano de Cooperação para a Agricultura, (IICA), e pelo

Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social,

7 Conheci Bengt-Äke Lundvall quando estava colaborando com o Centro de

Pesquisa sobre Inovação e Competição, (CRIC), em Manchester. Foi neste perío-

do que também conheci Mark Harvey, cujo trabalho em biotecnologia acompa-

nharia depois.

8 Foi neste período que coorientei Glaucia M. Vasconcellos na sua tese de dou-

torado, Laços como ativos territoriais (2005), que daria origem a um artigo con-

junto (incluindo Robson Amadeu o orientador interno), “Empreendedorismo,

inovação e redes: uma nova abordagem”, publicado na RAE Electronic Edition, v.

7, n. 1, em 2008. Glaucia depois se distinguiria não só no mundo acadêmico, mas

também como poeta.

41JOHN WILKINSON

(IPARDES). Esta visão foi poderosamente reforçada com a publi-

cação das teses de Ricardo Abramovay, Paradigmas do capitalismo

agrário em questão (1991), e de José Eli da Veiga, O desenvolvimento

agrícola: uma visão histórica, ambas na mesma coleção Hucitec na

qual eu publicara minha tese e o Relatório do Programa Fast.

Um momento importante nas minhas reflexões acerca da di-

nâmica da agricultura familiar foi possibilitado por um convite para

ser consultor num projeto de pesquisa sobre agricultura

,

familiar na

Região Oeste do estado de Santa Catarina. Eu havia orientado as

dissertações de vários alunos de Santa Catarina, todos eles em po-

sições de responsabilidade nas atividades de extensão rural. Com

meu trabalho sobre as implicações da biotecnologia, também estava

em contato constante com militantes do movimento de Agricultura

Alternativa,9 sendo que alguns dos seus principais expoentes tam-

bém estavam em Santa Catarina. Acompanhar esta pesquisa e re-

alizar extensas entrevistas com agricultores familiares me propor-

cionaram valiosa experiência prática não só sobre a forma em que a

agricultura familiar estava integrada na agroindústria, seja em avi-

cultura e suinocultura ou na produção de laticínios, mas também

sobre as novas formas de mercados artesanais que estavam emer-

gindo para produtos de leite e carnes. A pesquisa foi publicada 1996,

com o título “O Desenvolvimento Sustentável do Oeste Catarinense

(Proposta para Discussão)”, e serviu como referência para debates

subsequentes sobre o desenvolvimento na região. Foi neste con-

texto que consegui desenvolver uma nova análise destes mercados

9 Apresentei uma palestra sobre biotecnologias ao lado de José Antônio

Lutzenberger, no Encontro Brasileira de Agricultura Alternativa, em 1984, no

Hotel Quitandinha, Petrópolis, que foi publicada no mesmo ano.

42JOHN WILKINSON

usando a sociologia econômica, por meio de artigos que aparece-

ram na publicação do CPDA, Estudos Sociedade e Agricultura, e de

um que também foi publicado em inglês.

O impacto da Nova Constituição e o declínio nos mercados

globais de commodities agrícolas, que diminuíram os preços e a

pressão sobre a terra no Brasil, significaram que os movimentos a

favor da reforma agrária e da agricultura familiar estiveram em alta

durante boa parte da década de 1990. A reafirmação acadêmica do

papel dos pequenos agricultores nos sistemas modernos de agricul-

tura e alimentos foi também fundamental na criação de condições

políticas favoráveis para a sua promoção e para torná -los objetos de

políticas públicas. “O Projeto de Cooperação Técnica FAO/Incra”,

coordenado por Carlos Guanziroli, de cuja equipe participei, e que

também incluía José Eli da Veiga, Shigeo Shiki, Alberto di Sabbato

e Ricardo Abramovay entre outros pesquisadores, foi decisivo a

este respeito. Este grupo não só analisou a contribuição central da

agricultura familiar, como definiu suas características como grupo

social de uma forma que possibilitou o desenvolvimento subse-

quente de políticas distintas. Preparei um artigo sobre a agricultura

familiar e a integração vertical, “Agroindústria e perspectivas para a

produção familiar no Brasil”, em 1994, para subsidiar as discussões.

O Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf)

foi lançado em 1995. Neste momento, fui também contratado pela

Cepal para preparar um documento: “Agroindústria: articulação

com os mercados e a capacidade de integração socioeconômica

da produção familiar”, que foi apresentado numa reunião da Cepal

em Santiago, onde me reencontrei com Geraldo Müller, que estava

saindo da área dos estudos rurais e entrando na área de finanças.

Os artigos foram publicados em 1995, em um livro editado pela

43JOHN WILKINSON

Cepal: Las Relaciones Agroindustriales y la Transformación de la

Agricultura.

Em 1993-94, fui convidado para coordenar o componen-

te agroindustrial de uma pesquisa, “Competividade da Indústria

Brasileira”, envolvendo um grupo de pesquisadores do Instituto

de Economia (IE), da Universidade Federal do Rio e o Instituto de

Economia (IE), da Universidade de Campinas, sob a coordenação

geral de Luciano Coutinho. Isto exigiu uma abordagem de proces-

sos macroeconômicos, momento em que percebi que minhas no-

vas ferramentas sociológicas eram de pouca valia e, em vez disto,

lancei mão de uma mistura eclética de economia industrial e eco-

nomia política. Além de um panorama geral, produzi dois estudos

setoriais – das indústrias de laticínios e de carnes, respectivamente.

O estudo geral e a análise da indústria de laticínios foram publica-

dos em 1996, com o título Estudo da Competitividade da Indústria

Brasileira: o complexo agroindustrial, quando estava de licença

para o pós- doutorado. Infelizmente, o estudo da indústria de car-

nes, que me agradou bastante, até hoje não foi publicado. A par-

ceria com a equipe do Instituto de Economia da UFRJ viria a ser

renovada diversas vezes nas décadas que se seguiram.

Durante este período, continuei a me debater com o marxis-

mo, e eu e Bernardo Sorj produzimos uma resenha crítica do livro

de Perry Anderson In the Tracks of Western Marxism. Enviamos o

artigo para possível publicação na New Left Review, que ainda era

uma referência-chave para mim. O artigo foi recusado, mas Perry

Anderson disse que estaria vindo ao Brasil e que gostaria de dis-

cuti -lo conosco. Fizemos isto no ambiente maravilhoso do Café

Colombo, onde Perry reproduziu e “refutou” cada um dos nos-

sos argumentos com grande precisão e elegância. Irredutíveis e

44JOHN WILKINSON

não persuadidos, publicamos posteriormente o artigo na revista

Contexto Internacional, da PUC-Rio.

Em 1995, saí para um pós- doc dividido entre Santa Cruz, na

Califórnia, trabalhando com David Goodman, e a Universidade de

Paris XIII, onde estive sob a supervisão de François Chesnais, cujo

trabalho com biotecnologias fora importante para nós enquan-

to estávamos concebendo o livro From Farming to Biotechnology.

Com David, preparamos um capítulo para um livro que era bastan-

te influenciado por um novo entendimento das transformações na

dinâmica da demanda alimentar, consequência do papel dominan-

te do varejo em grande escala, mas que não foi aceito para publica-

ção pelos organizadores da obra, ainda dominados, a nosso ver, por

uma perspectiva rígida de economia política. Posteriormente, re-

escrevi o artigo como um capítulo – “O perfil emergente do sistema

agroalimentar” (25 citações) –, num livro organizado juntamente

com meu colega do CPDA Renato Maluf: Restruturação do sistema

agroalimentar (1999). Sempre considerei este artigo bastante pre-

monitório, mas foi pouco notado ou citado.

No período anterior ao meu pós- doutorado, além de aprofun-

dar minhas leituras na sociologia econômica, comecei a estudar a

Teoria Ator-Rede (TAR), de Latour, Callon e Law. À época, estava

supervisionando duas dissertações de mestrado que adotavam esta

orientação e seriam concluídas com êxito 1997. Clovis Dorigon, do

Oeste de Santa Catarina, com que eu continuaria a realizar pesquisa

em anos posteriores, estudou “Microbacias como redes sóciotecni-

cas”, e Marisa Costa Almeida, “Concepções de natureza e conflitos

pelo uso do solo em Parati”.

Embora o quadro analítico de regime alimentar desenvol-

vido por Phil McMichael e Harriet Friedmann, que mencionei

45JOHN WILKINSON

anteriormente, tenha oferecido uma importante perspectiva histó-

rica para englobar o sistema alimentar como um todo, foi menos

bem-sucedido em prover um mapa depois da desagregação do

regime alimentar pós- guerra, a partir dos anos 1970. Para a teoria

do regime alimentar, estávamos naquele momento num período

de transição, e as perspectivas quanto aos contornos do regime

alimentar no futuro ainda não estavam formados. Neste vácuo, a

teoria ator-rede oferecia um forte apoio para estudos na esfera mi-

cro e mais radicalmente para contestar a divisão micro/macro, es-

pecialmente nos trabalhos de Sarah Whatmore (1997), Jonathan

Murdoch e Stewart Locke (da nova geração de sociólogos rurais

australianos).

A problemática micro-macro era uma preocupação perma-

nente para mim, e uma vez abandonado o apoio reconfortante de

uma visão marxista do mundo, como mencionei anteriormente,

vi que estava me deslocando desconfortavelmente da sociologia

econômica para a economia política como solução temporária.

,estavam terminando o mestrado nesse período, exigindo mais dedicação de minha parte. Além disso, o CPDA estava envolvido em intensas discussões sobre mudança curricular, reordenação de campos temáticos, criação de novas áreas de concentração, com os estudos sobre cultura ganhando mais espaço. Esses debates se faziam de forma bastante tensa, permeados pelos riscos de desa-gregação de um grupo cuja marca era a capacidade de sobreviver às crises (internas e externas). Não era só um investimento de algumas 222LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROShoras, mas um permanente envolvimento emocional de todos nós. Nas discussões estavam em jogo não apenas uma estrutura de curso, mas subjacente a ela concepções sobre desenvolvimen-to; relações entre agricultura e meio rural e presença do rural no urbano, colocando em questão as fronteiras entre esses espaços; dimensões culturais do mundo rural, chamando a atenção para outros aspectos desse universo que pouco haviam sido objeto de tratamento sistemático nas disciplinas existentes até então.Ao tempo dessas discussões, foram criadas as áreas de concen-tração “Desenvolvimento e Agricultura” e “Sociedade e Agricultura” para abrigar os distintos interesses de reflexão e pesquisa. Filiei -me à área de “Desenvolvimento e Agricultura”. A essas duas áreas de concentração somou -se uma outra, em “Planejamento e Políticas de Desenvolvimento Agrícola e Rural na América Latina e o Caribe”, denominada “Vittorio Marrama”, criada em 1989, sob o patrocínio da FAO/Roma e da Cooperação Técnica Internacional do governo italiano.63 Essa área funcionava, por exigência da FAO, na cidade do Rio de Janeiro, num precário espaço cedido pela UFRJ no seu campus da Praia Vermelha. Nem todos professores do CPDA parti-cipavam da experiência latino-americana (entre estes, eu mesma), provocando novas tensões internas. Por outro lado, essa movi-mentação trouxe com mais força, para o CPDA, a possibilidade de 63 Após cinco turmas, já sem o apoio da FAO, essa área de concentração se trans-formou na área de “Estudos Internacionais Comparados”, que deixou de existir, assim como as demais, na reforma do curso iniciada em 2003.223LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROSmudança de lugar físico. Buscávamos alternativas para nos fixar na cidade do Rio de Janeiro, o que aconteceria em 1992.64Tudo isso ocorria num momento em que a pós- graduação brasileira se consolidava, criava mecanismos gradativamente mais sofisticados de avaliação, áreas de filiação mais especializadas e nos obrigava a fazer opções. Cada vez mais nos distanciávamos das abordagens econômicas e valorizávamos as dimensões sociais e políticas, o que nos levou desde cedo a escolher como área de ava-liação a de Ciências Sociais.Uma segunda razão da demora na minha titulação foram os investimentos relacionados à inserção na academia, como pesqui-sadora dos movimentos sociais. O tema me colocava num lugar ambivalente, com o qual já convivia há algum tempo. Como afir-mei anteriormente, nunca tive a menor sombra de dúvida de que minha opção profissional era a academia. Para isso, tinha que ter-minar a tese e prosseguir as atividades de pesquisa e orientação, mas não rejeitei possibilidades de diálogo com movimentos socais, com organizações não governamentais que atuavam com os tra-balhadores do campo e, mais eventualmente, com instituições governamentais. Esse diálogo me alimentava como pesquisadora, colocando -me questões que dificilmente chegariam por outros caminhos, estritamente acadêmicos. 64 Em maio de 1990, o Instituto do Açúcar e do Álcool foi extinto pelo governo Collor de Melo. Vários de seus prédios foram cedidos a outras instituições. É o caso dos quatro andares que funcionavam na avenida Presidente Vargas (6o ao 9o), formalmente cedidos à UFRRJ, após negociação mediada pela FAO, que tinha interesse em que a área de concentração que financiava funcionasse na cidade do Rio de Janeiro, dado o perfil latino-americano dos alunos e a necessidade de que convivessem com as bibliotecas, que abundavam na cidade. 224LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROSContinuei envolvida em debates vários. Já em 1987, vivi uma experiência enriquecedora participando, como representante da UFRRJ, na Comissão Agrária do Estado do Rio de Janeiro.65 A tare-fa central era participar de reuniões nas quais eram apresentados os processos de desapropriação, já devidamente instruídos com relatórios de vistoria, e discutir sobre a pertinência ou não da desa-propriação. Essa atividade me ajudou muito a refletir sobre temas que depois se consolidaram como objetos de pesquisa: a relação Estado/assentamentos no Rio de Janeiro, a dinâmica dos assenta-mentos fluminenses considerando a peculiaridade de seu público, os argumentos patronais (que eu havia estudado no mestrado, a partir de documentos, mas que agora eram esgrimidos em torno de uma mesa, num debate no qual estava em jogo a desapropriação ou não de alguns imóveis), e também meu lugar ali, como repre-sentante do Estado a partir da universidade. Esse foi um momento central para entender a multiplicidade de espaços e disputas no in-terior do Estado. Paralelamente, participava de reuniões no Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), para onde fora Candido Grzybowski, após um curto período como professor do CPDA. Num momento de intensas discussões sobre as perspectivas da reforma 65 Após a aprovação do I Plano Nacional de Reforma Agrária, no final de 1985, as diferentes unidades da Federação elaboraram seus próprios planos e constituíram suas comissões agrárias, destinadas a analisar os processos de desapropriação de terras e opinar sobre eles. As comissões eram compostas por três representantes das entidades patronais, três das entidades de trabalhadores e três do Estado: o superintendente do Incra estadual, um representante do governo estadual e um representante da Universidade. As comissões funcionaram por cerca de dois anos. Em virtude das vicissitudes políticas da reforma agrária no governo Sarney, acabaram desaparecendo ainda no final dos anos 1980.225LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROSagrária ante os recuos do governo Sarney e os horizontes que se abriam diante da instalação da Assembleia Constituinte em 1987, o Ibase era um fórum importante. Criara, em 1983, a Campanha Nacional pela Reforma Agrária, que se desdobrou na coleta de assi-naturas para que a proposta fosse incorporada na nova Constituição. Nos anos 1980, o seu casarão na rua Vicente de Souza abrigava dis-cussões e seminários diversos sobre reforma agrária. Logo depois, fui convidada por Maria Emília Pacheco, uma das coordenadoras da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), para um trabalho que representou um enor-me desafio, que aceitei, fiz com muito prazer, mas exigiu -me um grande investimento. A Fase, que tinha uma tradição de atuação em formação de trabalhadores, pedia -me para escrever um livro sobre a história das lutas dos trabalhadores do campo, destinado a subsidiar formação de lideranças. Eu tinha muita pesquisa já feita sobre o tema, tanto para minha dissertação de mestrado, quanto para a de doutorado ainda em curso, além de coisas escritas sobre sindicalismo. Tratava -se de sistematizar isso, verificar as ausên-cias e redigir um texto não acadêmico, ilustrado, com sugestões de vídeos. De acordo com a proposta, eu me encarregaria do texto e sugestões de imagens, e a Fase se responsabilizaria pela pesquisa de vídeos e edição do texto com as ilustrações adequadas. Jean Pierre Leroy elaborou, a partir de uma versão preliminar que pro-duzi, uma linha do tempo que foi encartada no livro. O resultado, História dos movimentos sociais no campo (Medeiros, 1989), além de largamente utilizado em cursos de formação, acabou sendo indicado também em algumas escolas de segundo grau e em anos 226LEONILDE SERVOLO
Memórias e Trajetórias Acadêmicas - História do Brasil (2024)

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