REITOR
Roberto de Souza Rodrigues
VICE-REITOR
Cesar Augusto Da Ros
PRÓ-REITOR DE PESQUISA E PÓS- GRADUAÇÃO
José Luis Fernando Luque Alejos
PRÓ-REITOR ADJUNTO DE PESQUISA E PÓS- GRADUAÇÃO
Leandro Dias de Oliveira
EDUR
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VOLUME III
MEMÓRIAS E
TRAJETÓRIAS
ACADÊMICAS
O RURAL COMO OBJETO
DE REFLEXÃO E VIDA
MEMORIAIS
John Wilkinson
Leonilde Servolo de Medeiros
Sergio Pereira Leite
ORGANIZADORAS
Karina Kato
Leonilde Servolo de Medeiros
Copyright © 2023 por Editora da UFRRJ
Todos os direitos desta edição reservados à Editora da Universidade Federal
Rural do Rio de Janeiro. É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou
de parte do mesmo, sob quaisquer meios, sem autorização expressa da editora.
TÍTULO ORIGINAL
Memórias e Trajetórias Acadêmicas : o rural como objeto de reflexão e vida
CONSELHO EDITORIAL
Patricia Reinheimer (coordenadora)
Bruna de Azevedo Baêta
Carlos Eduardo Coutinho da Costa
Érika Flávia Machado Pinheiro
Fabiane Frota da Rocha Morgado
Maria Cristina Drumond e Castro
Marisa Fernandes Mendes
Marta Regina Cioccari
Sérgio Manuel Serra da Cruz
COORDENAÇÃO Wallace Lucas Magalhães
SECRETARIA Mariangela de Campos Dias
PROJETO GRÁFICO, DIAGRAMAÇÃO E CAPA Leear Martiniano
REVISÃO Vania Santiago
UFRRJ / BIBLIOTECA CENTRAL / SEÇÃO DE PROCESSAMENTOS TÉCNICOS
BIBLIOTECÁRIA: ALESSANDRA BESSA (CRB-7 5919)
Memórias e Trajetórias Acadêmicas: o rural como reflexão e de vida. - v. 3
[recurso eletrônico] / Organizadores: Karina Yoshie Martins Kato,
Leonilde Servolo de Medeiros. – Seropédica: Ed. da UFRRJ, 2023.
3184KB ; PDF
Modo de acesso: internet
Bibliografia.
ISBN: 978-65-86859-34-8
1. Ciências sociais. 2. Ensino agrícola. 3. Educação e sociedade. I. Kato,
Karina Yoshie Martins. II. Medeiros, Leonilde Servolo de. III. Izar, Soraya. IV.
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. V. Título.
CDD 302
M533
ORGANIZADORAS
KARINA YOSHIE MARTINS KATO
Professora do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais
em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ) da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). É pesquisado-
ra do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA) e
do Grupo de Estudos sobre Mudanças Sociais, Agronegócio e Políticas
Públicas, ambos vinculados ao CPDA/UFRRJ, pesquisadora colabo-
radora do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS) e
pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Relações
Internacionais (LIERI/UFRRJ). Possui mestrado e doutorado rea-
lizados no CPDA/UFRRJ e graduação em Ciências Econômicas na
Universidade Federal do Rio de Janeiro - IE/UFRJ (2003).
LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Professora titular aposentada da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ) e professora permanente credenciada no Programa de
Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura
e Sociedade (CPDA/UFRRJ). Coordenadora do Núcleo de Pesquisa,
Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Política
Públicas no Campo e membra do Observatório de Políticas Públicas
para a Agricultura. Bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela
Universidade de São Paulo (1971), Mestre em Ciência Política pela
Universidade de São Paulo (1983) e Doutora em Ciências Sociais pela
Universidade Estadual de Campinas (1995).
06
15
132
319
SUMÁRIO
PREFÁCIO
NELSON GIORDANO DELGADO
MEMORIAL
JOHN WILKINSON
MEMORIAL
LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
MEMORIAL
SERGIO PEREIRA LEITE
PREFÁCIO1
Nelson Giordano Delgado2
Foi com enorme satisfação que aceitei o convite para
escrever este breve prefácio ao livro com os memo-
riais elaborados para o concurso de professor titular na
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) pela profes-
sora Leonilde Medeiros e pelos professores John Wilkinson e Sergio
Leite. São antigos e queridos amigos e colegas do Programa de Pós-
Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade (CPDA) da UFRRJ que tiveram e ainda têm papel proe-
minente na formação, na consolidação e no prestígio acadêmico e
público adquirido pelo Programa no país e no exterior.
1 Agradeço a preciosa e atenta leitura da amiga e colega do CPDA, Profa. Karina
Kato, a uma primeira versão do texto.
2 Professor titular aposentado do CPDA/UFRRJ.
07PREFÁCIO - NELSON GIORDANO DELGADO
Os três professores dispensam apresentação, pois são figu-
ras bastante conhecidas no mundo acadêmico, no Brasil e no ex-
terior, além de terem atuação profissional destacada, em suas áre-
as de pesquisa e de ensino prioritárias (mas não apenas!), junto
a agências públicas, nacionais e internacionais, e a organizações
representativas de diferentes grupos da chamada sociedade civil.
Sem dúvida, foram pioneiros no Brasil na introdução, no aprofun-
damento do estudo e na investigação das transformações por que
passaram e passam as áreas de pesquisa e docência a que se dedi-
caram nas últimas décadas.
Essas áreas de pesquisa e docência marcaram profundamen-
te a pós-graduação oferecida pelo CPDA/UFRRJ, assim como refle-
tiram algumas das mudanças ocorridas, conjuntural ou estrutural-
mente, no meio rural brasileiro e internacional desde pelo menos a
década de 1970. Sintética e simplificadamente, arrisco sugerir que
as contribuições da Profa. Leonilde estiveram associadas princi-
palmente, mas não apenas, ao estudo dos movimento sociais, dos
conflitos ocorridos no meio rural e da reforma agrária, as do Prof.
Sergio à análise teórica e empírica das políticas públicas para a
agricultura e para o rural e da economia e sociedade do agrone-
gócio e as do Prof. John à compreensão das mudanças ocorridas
na configuração do sistema agroalimentar mundial, tanto pela ação
das grandes empresas internacionais como dos movimento sociais
ligados ao consumo e à segurança alimentar, ao comércio justo e à
preservação ambiental.
Especial destaque deve ser dado ao envolvimento dos três
na formação de um respeitável número de jovens pesquisadores
brasileiros e latino-americanos, tanto por meio de seu trabalho de
orientação no CPDA como por sua abertura em incluir um grande
08PREFÁCIO - NELSON GIORDANO DELGADO
número de estudantes, mesmo de fora da UFRRJ, em suas equipes
de pesquisa. Não exagero ao dizer que grande parte dos jovens pes-
quisadores que atuam nas áreas de interesse profissional dos três
foi por eles influenciada, direta ou indiretamente.
Como salta aos olhos em seus memoriais, os colegas expres-
sam viva e criativamente em sua produção intelectual, na pesquisa
e na docência o exercício das abordagens multidisciplinar e mul-
tidimensional das ciências sociais como das mais instigantes, em-
bora sempre incompletas, para as análises teóricas e empíricas que
se propõem respeitar a engenhosa complexidade do mundo rural e
das atividades agrícolas e agrárias nas sociedades contemporâne-
as - uma das utopias fundadoras da experiência de docência e de
pesquisa do CPDA desde sua criação na metade da década de 1970.
Da mesma forma, os três contribuíram vigorosamente para outra
das características instituintes do CPDA: a de não ficar encerrado
nos muros da universidade, mas de procurar, com insistência, abrir
e aprofundar o diálogo com os demais atores da sociedade, espe-
cialmente os que compõem o meio rural, sejam eles oriundos da
sociedade civil e da comunidade, do Estado e do mercado.
Leonilde ingressou no CPDA em 1979, ainda na época da
Fundação Getúlio Vargas/Horto. Vinha de uma importante pes-
quisa realizada na Universidade Estadual Paulista (UNESP) em
Botucatu/SP, iniciada em 1975, sobre a relevância da “pequena
produção” na agricultura brasileira naquele período, marcado pela
modernização conservadora do agro nacional nos anos 1970. Essa
pesquisa e seus desdobramentos levaram-na
,Em Santa Cruz, eu e David tentamos integrar as abordagens de re-
des (tanto do estilo Granovetter, como TAR) com a tradição filière.
Embora não fosse rigorosamente macro, a perspectiva meso da fi-
lière seria reavivada na forma das Cadeias Globais de Valor (CGV),
para explicar um mundo em que a macrocoordenação estava sen-
do cada vez mais assumida por atores corporativos e civis privados.
Conseguimos apenas uma versão inicial de The Agrofood System:
From Filère to Network. OK But Whose Network?, de fevereiro de
1996, que se tivesse sido publicado naquele momento teria ofereci-
do uma relevante contribuição. O conceito do netchain viu a luz do
dia em 2001 num brilhante artigo de Lazzarini, Chaddad e Cook, e
46JOHN WILKINSON
as redes sociais seriam incorporadas à literatura sobre CGV e Redes
de Produção Global (RPG) nas primeiras décadas do novo milênio.
Enquanto estava em Santa Cruz, participei de uma confe-
rência na Universidade da Califórnia, em Berkeley, organizada
por David Goodman e Michael Watts – Agrarian Questions and the
Restructuring of the Agrofood System –, na qual apresentei o meu tra-
balho sobre mercados no Oeste de Santa Catarina a partir de uma
perspectiva da sociologia econômica. Foi uma ótima oportunidade
de conhecer personagens de destaque nos estudos rurais dos dois
lados do Atlântico, particularmente Laura Raynolds, com quem eu
colaboraria posteriormente num ambicioso projeto de pesquisa de
análise do fair trade que discutirei mais adiante.
Paris, em 1995, representou um momento eureca para mim, e
quatro livros abririam uma nova perspectiva tanto na dinâmica da
mudança do agroalimentar quanto nas ferramentas teóricas para a
análise desta nova situação. Dois foram fruto da pesquisa realizada
pelo Inra e suas redes. La Grande Transformation de l´Agriculture
(1995) foi organizado por dois “regulacionistas”, Gilles Allaire, com
quem eu trabalharia em iniciativas subsequentes, e Robert Boyer,
um dos principais teóricos da abordagem de regulação e cujo ca-
pítulo eu já lera na “bíblia” neoschumpeteriana Technical Change
and Economic Theory, como mencionado anteriormente. Todavia,
os capítulos deste livro que mais me influenciaram eram aqueles
que adotavam uma análise dos mercados agroalimentares através
da “teoria das convenções”, com a qual eu não estava familiariza-
do até então. O segundo volume, Agro-alimentaire: une économie
de qualité, organizado por François Nicolas e Egisio Valceschini,
exerceu um impacto teórico menor em mim, mas foi fundamen-
tal para entender a nova dinâmica do sistema agroalimentar como
47JOHN WILKINSON
sendo sujeito à quality turn, uma virada na qualidade. Isto seria de-
cisivo para o meu entendimento do sistema agroalimentar desde
o colapso pós- guerra do regime alimentar.
Um terceiro livro, publicado em 1994, Analyse Économique
des Conventions, organizado por André Orléan, que continha con-
tribuições da maioria dos seus numerosos proponentes, reuniu
uma série de trabalhos produzidos para uma reunião em 1989, e
foi posteriormente visto como a inauguração da escola da teoria
das convenções. Este livro viria a ser a minha segunda “bíblia” pós-
marxista, e absorvi o seu conteúdo durante o restante do meu tem-
po em Paris. O quarto livro, De la Justification, de L. Boltanski e L.
Thévenot, no qual os distintos “mundos” da teoria das convenções
são enunciados, completou a minha imersão.
Ao final da minha estadia, escrevi um artigo, “A New Paradigm
for Economic Analysis?” (302 citações), publicado por Economy
and Society em 1997,10 que além de investigar as características dis-
tintivas da teoria das convenções extraiu as convergências entre
as diferentes tradições heterodoxas da ciência social que eu vinha
estudando há mais de uma década – neoschumpeterianismo, so-
ciologia econômica, teoria ator-rede e, agora, teoria de regulação
e convenções.11 Considerava fundamental poder demonstrar que
havia um núcleo comum nestas tradições, ou que havia
10 Este seria o meu artigo mais citado.
11 A estas, acrescentei o Mauss – Mouvement Anti-Utilitariste dans les Sciences
Sociales (outra descoberta durante esta estadia em Paris), liderado por Alain
Caillé, a quem visitei enquanto estive em Paris e que comentou sobre um rascu-
nho de “A New Paradigm for Economic Analysis” e convidou -me a contribuir ao
Mauss Journal.
48JOHN WILKINSON
preocupações semelhantes, embora com terminologias diferentes,
e que era possível aproveitar conceitos de cada uma sem incorrer
num ecletismo indisciplinado. A combinação entre teoria de regu-
lação e convenção também era para mim uma solução possível ao
dilema micro-macro.
Granovetter apresentara seus trabalhos em Paris, em 1991,
em um Colóquio para discutir a “nova sociologia econômica”, com
contribuições de todas as correntes “heterodoxas” na ciência so-
cial francesa, que foram reunidas no livro L’Inscription Sociale du
Marché (1995). Embora a maioria das correntes fosse simpática às
redes sociais e ao conceito de embeddedness, a sua relevância era
identificada quase que exclusivamente com o “mundo doméstico”,
um dos seis mundos de ação coletiva justificável no esquema das
convenções, e a abrangência mais ampla da nova sociologia econô-
mica não era considerada. A teoria ator-rede, por outro lado, deli-
mitou a sua distância das redes sociais de Granovetter com sua in-
sistência na simetria entre humanos e não humanos na construção
e dinâmica de redes sociotécnicas.
No artigo supramencionado, também investiguei as con-
vergências entre as diversas correntes francesas e a tradição
neoschumpeteriana. Isto podia ser observado no âmbito das cola-
borações individuais – as publicações conjuntas de Dosi e Coriat
e a preocupação comum com a ciência e tecnologia entre TAR e
neoschumpeterianismo, com colaborações específicas de Callon.
Também estava presente no tratamento de temas específicos, entre
os quais poderíamos mencionar a centralidade comum da incerte-
za e a aprendizagem coletiva.
Apresentei o meu artigo ao grupo de estudos rurais liderados
por Terry Marsden, da Universidade de Cardiff, e ele foi enfático ao
49JOHN WILKINSON
recomendar que eu o enviasse para publicação em Economy and
Society, pelo que sou imensamente grato, porque não havia pensa-
do nesta possibilidade. Posteriormente, Terry e Jonathon Murdoch,
juntamente com Jo Banks, fariam contribuições originais para a
aplicação da teoria das convenções aos estudos rurais, como em
“Quality, Nature and Embeddedness” (2000).
De volta ao Brasil e ao CPDA, minha colega Ana Célia Castro
convidou a mim e a Leonardo Burlamaqui, que havia recentemen-
te concluído o seu doutorado no qual ele combinou a sociologia
econômica e as perspectivas schumpeterianas, para organizarmos
um seminário internacional reunindo um amplo leque de cientis-
tas sociais institucionais heterodoxos, incluindo os neoschumpe-
terianos alinhados com Giovanni Dosi, a tradição mais polanyiana
de sociólogos econômicos e políticos sediados em Berkeley (Fred
Block, Peter Evans, Ronald Dore), a abordagem de convenções de
Michael Storper e a “velha” tradição institucionalista de Veblen,
que estava sendo renovado por Geoffrey Hodgson, cujo trabalho
se tornaria central para mim quando comecei a lecionar a disci-
plina Sociologia Econômica no CPDA. O Seminário “Instituições
e Desenvolvimento Econômico” aconteceu no Rio de Janeiro, em
novembro de 1997, e teve um impacto durável, lançando os alicer-
ces para uma rede internacional de acadêmicos que participavam
de cursos no CPDA e no Instituto de Economia da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
Além de moderar a Conferência de Encerramento de Ignacy
Sachs, fui debatedor na sessão: “Dos processos microeconômicos
às instituições macro”, cujos palestrantes foram Fred Block, Geoffrey
Hodgson e Mário Possas. Como mencionei anteriormente, o di-
lema macro era
,uma preocupação central minha e nesta ocasião
50JOHN WILKINSON
tentei desenvolver um argumento sobre a necessidade de ligações
intermediárias entre o micro e o macro, pensando particularmen-
te no papel das convenções neste sentido. Não creio que o meu
ponto foi enunciado com clareza e um esforço mais sistemático de
pensar analiticamente o micro-macro teria que esperar o trabalho
que preparei para o Congresso Mundial da Sociologia Rural, em
Trondheim, em 2004.
Nos movimentos sociais no Brasil nos anos 1990, a bio-
tecnologia era uma questão central. Na década anterior, havía-
mos focalizado mais nas implicações teóricas das biotecnologias
para o sistema agroalimentar. Houve preocupação semelhan-
te nos escritos de Fred Buttel e no notável livro de Martin Kenny,
Biotechnology - the University Industrial Complex, foi publicado
em 1986, quando o nosso livro já estava no prelo. As contribui-
ções francesas eram igualmente teóricas. Já mencionei o estudo
de Pascal Byé e Alain Mounier, ao qual poderia acrescentar um
estudo igualmente impressionante, um doutorado “duplo” de
Ducos-Joly, Structure et Strategies de L’Industrie des sem*nces face a
l’Innovation Biotechnologique (1986). Pierre Benoit Joly, posterior-
mente, continuaria a fazer importantes contribuições aos estudos
de ciência e tecnologia, cada vez mais na perspectiva ator-rede de
Callon. O trabalho de Gerd Junne, “International Implications of
Biotechnologies” (1986), e Guido Ruivenkamp, “The Introduction
of Biotechnology into the Pesticide Industry and its Economic
and Political Impacts” (não publicado, 1985), ambos da Holanda,
foram igualmente influentes. Conheci Junne na Conferência de
Biotecnologia e Agricultura de 1992, organizada por Maria Fonte
51JOHN WILKINSON
e Pascal Byé, em Roma,12 e ele mais tarde me convidou para ser
palestrante sobre biotecnologia numa reunião internacional para
repensar biotecnologias em Quioto. Mas naquele tempo a biotec-
nologia estava em segundo plano para mim, e não aceitei. Guido
desenvolvera independentemente uma abordagem que estava
muito próxima da nossa tese de “apropriação-substituição”.
O autor latino-americano mais influente, do meu ponto
de vista, embora estivesse sediado na OIT em Genebra, foi Paulo
Bifani, especialmente pela sua obra Desafios de la Biotecnologia
para la Política Cientifica y Tecnologica, (1986). Como resultado do
meu trabalho na biotecnologia, fui convidado diversas vezes para
colaborar com o grupo de biotecnologia de Michelle Chauvet, na
Universidade Nacional Autônoma, Cidade do México, e, juntos,
fizemos apresentações sobre as biotecnologias no Brasil e México,
respectivamente, na New School, Nova York.
No Brasil, biotecnologias significavam acima de tudo os
transgênicos, que passaram a ser o foco principal dos movimen-
tos de oposição ao agronegócio. No início dos anos 1990, come-
cei a orientar dissertações sobre o tema de biotecnologia e teses,
mais precisamente a partir de 1995, quando começamos o curso de
Doutorado. Tanto Lavinia Rangel Pessanha quanto Pierina German
Castelli fizeram seus mestrados e doutorados sobre biotecnologia
12 Esta Conferência Internacional reuniu como palestrantes, alguns com impor-
tantes contribuições às Ciências Sociais nas discussões acerca da significância
das biotecnologias – Fred Buttel, Pascal Byé, Joanna Chataway (Open University,
Inglaterra), Roberto Fanfani, Raul Green, Gerd Junne, Manuel Rodriguez Zuñiga,
Guido Ruivenkamp, Joyce Tait (Strathclyde Business School, Escócia), além de
mim. Os debatedores fizeram importantes contribuições a estas discussões – en-
tre eles François Chesnais e Giovanni Dosi.
52JOHN WILKINSON
sob a minha orientação, e Silvana Almeida Filgueira de Medeiros
concluiu o seu doutorado em 2000, sobre o tema das biotecnologias,
também sob minha supervisão. Com financiamento da ActionAid,
liderada à época por Ana Toni, Pierina German Castelli e eu publi-
camos A transnacionalização da indústria de sem*ntes no Brasil (98
citações), e em 2005 publiquei Transgênicos, recursos genéticos e se-
gurança alimentar (50 citações), em coautoria com Lavinia Rangel
Pessanha, pelo Armazém do Ipê. Além das publicações interna-
cionais mencionadas anteriormente, lancei uma série de artigos,
sozinho ou com Bernardo Sorj, sobre biotecnologias no Brasil e so-
bre o Brasil. A certa altura, fui convidado a representar os interesses
da sociedade civil na Comissão Nacional Técnica de Biossegurança
(CNTBio), que decidia questões sobre a pesquisa biotecnológica e
a liberação de variedades transgênicas, mas preferi limitar o meu
papel ao ambiente acadêmico.
Em 1997, coordenei um Projeto de Cooperação Brasil-França,
da Capes-Cofecub, com Pascal Byé, “Crescimento Econômico,
Instituições e Mudanças Tecnológicas”.13 Este projeto foi desen-
volvido em parceria com Wilson Schmidt, a segunda pessoa a
concluir uma dissertação sob minha orientação ainda nos anos
1980. Seguindo minha recomendação, Schmidt fez o seu doutorado
na França, sob a supervisão de Pascal, e fui convidado a integrar a
13 Já estivera envolvido em dois programas de cooperação Capes-Cofecub com
Bernardo Sorj, um coordenado do lado francês pelo economista marxista Pierre
Salama, então no Centro Iedes em Paris, no momento em que estávamos termi-
nando o livro From Farming to Biotechnology, e o outro no início dos anos 1990,
com Marc Chopplet, especificamente sobre biotecnologias, sendo ele diretor de
pesquisas num importante Bio Centro na Picardia, no Norte da França.
53JOHN WILKINSON
banca da sua defesa na Sorbonne, solo sagrado para mim!14 Dentro
da estrutura desta cooperação, retornei ao tema de biotecnologia e
biocombustíveis, sobre o qual já havia publicado com Bernardo Sorj,
e que depois visitaria de novo ao orientar e em seguida colaborar
com Selena Herrera. Mais tarde, investigaria esta temática com
muito mais detalhe, quando fui convidado a coordenar o estudo
HLPE/SFC “Biocombustíveis e Segurança Alimentar 2012-2013”.
Com o início do Doutorado no CPDA, em 1995, criei uma
disciplina em Sociologia Econômica, que nos anos iniciais ti-
nha o título de Metodologia das Ciências Sociais, mas depois foi
designada como Sociologia Econômica e incluída entre as disci-
plinas fundamentais para o doutorado. Isto me permitiu dar forma
ao meu trabalho nessa temática, incluindo todos os principais no-
mes da Nova Sociologia Econômica: Granovetter, Fligstein, Zelizer,
Polanyi, Callon, Latour, Boltanski e Thévenot, Jens Beckert e, espe-
cialmente através do trabalho de Richard Swedberg, as contribui-
ções à sociologia econômica desenvolvidas anteriormente pela
14 Posteriormente fui convidado a integrar a banca de doutorado de Laura Viteri
em Wageningen. Laura foi aluna do mestrado de Vittorio Marrama, e eu havia
mantido contato com ela e com um grupo de ex-alunos de Marrama, no INTA
Mar del Plata (Graziela Ghezan e Mônica Mateus), onde fui consultor de pes-
quisas e ministrei disciplinas no seu centro. A defesa de Laura foi realizada com
esplendor medieval e nós, os membros da banca, fardados com mantos pre-
tos fomos levados em procissão por uma pessoa vestida de forma similar que
bateu à porta com um bastão. A porta então abriu, mostrando um interior que
mais parecia uma capela do que uma sala de banca, e me lembrava a abertura
do Parlamento Britânico. Terry Marsden, que havia recomendado meu artigo “A
teoria das convenções” para publicação, também integrava a banca, que incluía
Gert Spaargaren e era liderada pelo seu colega Arthur Moll, ambos importantes
referências para mim nos quesitos de biotecnologia, biocombustíveis e na aná-
lise ator-rede.
54JOHN WILKINSON
tradição clássica de sociologia. Geoffrey Hodgson também era lei-
tura essencial.
Meu entendimento de Polanyi foi beneficiado em muito pelo
contato com Fred Block, integrante-chave da rede internacional
criada por Ana Celia Castro, que
,ministrava regularmente cursos
conosco e era presidente da Associação Polanyi. A filha de Polanyi
também esteve no Rio de Janeiro e ministrou uma palestra sobre o
legado do seu pai. No novo milênio, houve uma renovação de inte-
resse na obra de Polanyi, cujo trabalho era visto como antecipando
o avanço neoliberal a partir dos anos 1970, e a sua obra assumiu
uma crescente importância nos estudos de agroalimentos desen-
volvidos na tradição de regimes alimentares.
Apesar da minha inclusão precoce de Polanyi e em menor ex-
tensão de Fligstein, os paradigmas tecnológicos neoschumpeteria-
nos e a teoria regulacionista, que não foram incluídos na disciplina
(com exceção do notável artigo de Boyer, “The Seven Paradoxes of
Capitalism”, 1996), continuaram sendo minhas referências macro.
Na prática, o maior foco da disciplina era a sociologia dos merca-
dos, reforçado pelo meu entendimento da “virada de qualidade”
nos agroalimentos.
Com as mudanças na dinâmica demográfica e de renda nos
países desenvolvidos a partir dos anos 1970 – queda de fertilidade,
envelhecimento das populações e aumento na renda per capita –,
os mercados tradicionais de commodities, que eram a base das po-
líticas e da regulamentação do sistema agroalimentar, entraram
num período de crise. Ao mesmo tempo, novos padrões de de-
manda começaram a emergir, com uma rápida resposta do setor
do grande varejo, que também passou a promovê -los. A qualida-
de e não a quantidade passou a ser a característica comum central
55JOHN WILKINSON
de uma gama de mercados bastante diversos entre si, organizados
(“coordenados” passou a ser a palavra de ordem), agora median-
te múltiplas formas de autorregulação. No Brasil, o Governo Collor
promoveu o choque inicial com a eliminação de muitas instituições
setoriais que até então regulavam os mercados de commodities.15
Tudo isto trouxe novos desafios para a agricultura comercial,
ou agronegócio como passou a ser chamado, indicando como o
conceito acadêmico de agroindústria estava então sendo apro-
priado pelo próprio setor de negócios. Neste período, a Associação
Brasileira do Agronegócio (Abag) foi criada, sob a liderança inspira-
da de Ney Araújo. A primeira publicação da Associação foi um livro
intitulado Segurança alimentar, uma indicação do novo papel que
o agronegócio atribuía a si mesmo.
Este novo contexto também tinha importantes repercussões
na esfera acadêmica, mais notadamente na criação do Programa
de Estudos dos Negócios do Sistema Agroindustrial, (Pensa), um
centro de pós- graduação na USP, liderado por Décio Zylberstajn e
Elizabeth Farina. Este centro produziu uma nova geração de aca-
dêmicos que passariam a ser os intelectuais orgânicos do agrone-
gócio, muitas vezes assumindo cargos-chave nas organizações do
agronegócio. Em vez da tradição filière francesa, o Pensa buscou
inspiração em John H. Davis e Ray A. Goldberg, que desenvolveram
15 Entre estes estava o Instituto do Açúcar e do Álcool (IAA), cujo escritório ocu-
pava quatro andares de um prédio na avenida Presidente Vargas, Rio de Janeiro, e
que, por intermédio da iniciativa ousada de diversos colegas, passou a ser a sede
do CPDA. A mudança para o Rio já havia acontecido como resultado do já men-
cionado Curso de Mestrado de Vittoria Marrama, mas até então estávamos sedia-
dos em condições precárias no que havia sido uma garagem nos fundos do pré-
dio do Instituto de Economia da UFRJ, e onde alguns de nós contraímos dengue.
56JOHN WILKINSON
o conceito do agronegócio dentro de um quadro neoclássico, e a
tradição de análises de estudos de caso da Harvard Business School.
O fundamento teórico do empreendimento do Pensa, no entanto,
era a nova economia institucional e, especialmente, a análise de
custos de transação de Oliver Williamson, feita sob medida para
orientar um setor que perdera os tradicionais padrões de regulação
pelo Estado e precisava agora organizar suas próprias relações de
mercado. Williamson ofereceu um nítido esquema teórico e meto-
dológico para decisões acerca das formas em que os diversos seto-
res do agronegócio deveriam ser organizados ou coordenados. O
Pensa desenvolveu este esquema de modo operacional para mui-
tos setores-chave do agronegócio. Ao mesmo tempo, inspirou -se no
institucionalismo de Douglass North para fornecer a perspectiva
macro-histórica.
O texto-chave de Granovetter, de 1985, “Economic Action and
Social Structure: the problema of embeddedness”, havia me deixa-
do inoculado quanto às possíveis atrações dos custos de transação.
A força da contribuição de Granovetter foi que, desde o início, ele
não só ofereceu uma crítica das pressuposições neoclássicas, como
também estendeu isto à abordagem dos custos de transação de
Williamson, visto por muitos como uma revolução em relação às
premissas da economia neoclássica. O que muitos não notaram foi
que neste mesmo artigo Granovetter também se distanciou da tese
“substantivista” do embeddedness. Para ele, as redes sociais são uma
forma mais flexível de embeddedness, que permitem negociações
individuais e, ao mesmo tempo, oferecem uma estrutura na qual a
cooperação e a confiança são tão naturais quanto à desconfiança
e aos riscos de um comportamento oportunista. As redes sociais,
neste sentido, podem ser tanto uma alternativa às instituições
57JOHN WILKINSON
formais como também podem ser transformadas, elas mesmas, em
organizações e instituições.
Para Williamson, as formas econômicas da coordenação
poderiam ser mapeadas num eixo a partir das relações com o
mercado, passando por uma diversidade de formas híbridas e che-
gando a uma organização hierárquica (a firma e a integração ver-
tical), dependendo de um pequeno número de variáveis-chave – o
grau de incerteza, a frequência e a especificidade de ativos das tran-
sações sendo realizadas –, e levando em conta que os atores econô-
micos devem ser considerados como tendo uma propensão para o
oportunismo, pois a atividade econômica geralmente envolve um
pequeno número de atores e, portanto, uma ação estratégica, uma
vez que as ações devem ser empreendidas com diversas condições
de incerteza, decorrente do conceito da limitação (boundedness) da
racionalidade. Segundo Williamson, as formas híbridas tendiam a
ser formas instáveis, e formas hierárquicas de organização foram
vistas como a tendência dominante. A sua obra clássica, que tinha
o título significativo de Markets and Hierarchies, foi publicamente
em 1975, exatamente num momento em que a longa tendência do
século XX à integração vertical analisada por Chandler e Lazonick
estava dando lugar a formas híbridas de coordenação, agora numa
escala cada vez mais global.
Foi nesta época que fui atraído pela abordagem da Cadeia
Global de Valor (CGV, originalmente Cadeia Global de Commodities,
GCC), de Gary Gereffi e seus parceiros Timothy Sturgeon e John
Humphrey, que para mim representava uma continuação do
trabalho iniciado com David Goodman na primeira etapa do meu
pós- doutorado em 1995, mencionado anteriormente. Surgindo ori-
ginalmente como um componente da tradição do sistema mundial
58JOHN WILKINSON
de Wallerstein, nas suas formulações posteriores a CGV passou a
incorporar cada vez mais as variáveis do estilo dos custos de transa-
ção. As redes sociais foram integradas como componente horizon-
tal na primeira caracterização das Cadeias Globais de Commodities
por Gary Gereffi no livro organizado com Miguel Korzeniewicz,
Commodity Chains and Global Capitalism, em 1994. As redes so-
ciais e a teoria ator-rede foram mais explicitamente incorporadas ao
programa de pesquisa bastante similar Global Production Networks,
associado à “Escola de Manchester”, na sua publicação programá-
tica: Global Production Networks and the Analysis of Economic
Development, em coautoria com Jeffrey Henderson, Peter Dicken,
Martin Hess, Neil Cole e Henry Wai-Chung Yeung.
,Stefano Ponte,
um italiano que agora está na Kopenhagen Business School, depois
daria uma contribuição fundamental à CGV ao introduzir a teoria
das convenções na dinâmica da coordenação das cadeias de valor,
no seu artigo de 2005, intitulado “Quality Standards, Conventions
and the Governance of Global Value Chains”, publicado na revista
Economy and Society.
A teoria das convenções, a teoria ator-rede e as redes so-
ciais se tornaram para mim as chaves para analisar a dinâmica
dos novos mercados agroalimentares que estavam sendo criados
no contexto da “virada na qualidade”. Meu grupo de pesquisa no
CNPq, que originalmente fora dedicado quase que inteiramente
às biotecnologias, passou a ser designado como Mercados, Redes e
Valores, que também foi o título de um livro que publiquei em 2009
(290 citações), instigado por Sérgio Schneider, do Programa de Pós-
Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR), Porto Alegre, um
centro bastante similar ao CPDA e onde diversos dos nossos alunos
se tornaram docentes.
59JOHN WILKINSON
No CPDA, nos anos 1990, tínhamos muitos alunos do Sul do
Brasil, especialmente Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e orientei
diversas dissertações sobre temas relacionados à agricultura fami-
liar e à produção artesanal de alimentos nesse período. Antes da en-
trada das ainda ilegais sem*ntes de soja transgênicas da Argentina
(batizadas de “soja Maradona”), que deram um novo impulso à
produção da soja, lideranças na pesquisa agrícola e extensão rural
nestes estados, bastante influenciadas por períodos de estudo na
França e programas de cooperação Brasil-França, já estavam pro-
pondo um foco na qualidade (como na proposta para reestruturar
as regiões vinícolas do Rio Grande do Sul pesquisada por Wilson
Schmidt e Pascal Byé no programa de cooperação Capes-Cofecub
já mencionado), e apoio para alternativas artesanais informais às
commodities agrícolas em que os critérios de custos e escala sempre
se impunham.
Um importante componente do apoio francês para a agricul-
tura de pequena escala e o desenvolvimento local/regional era a
promoção de produtos com appellation d’origine. Em 1996, a ade-
são do Brasil à OMC e ao Trips (Acordo sobre Aspectos dos Direitos
de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio), implicava
a obrigação de estabelecer legislação sobre Indicações Geográficas
e criar as condições institucionais para a sua promoção. Além da
minha familiaridade com os desdobramentos no Sul, também
me envolvi num programa de cooperação entre o Ministério de
Cooperação da França e o Governo do Estado de Minas Gerais, com
enfoque exatamente no desenvolvimento de novos padrões de qua-
lidade, que também incluía apoio para os produtores informais de
queijo de leite cru nas regiões das serras de Canastra, Serro e Salitre,
estimados entre 30 e 50.000 pequenos produtores, compreendendo
60JOHN WILKINSON
um enorme mercado semiclandestino. Daquele ponto em diante,
indicações geográficas seriam para mim um foco acadêmico cen-
tral por envolverem a construção e dinâmica de mercados feitos
sob medida para análise a partir de convenções e de redes sociais.
Igualmente central para a categoria ampla de mercados que
exemplificavam a “virada na qualidade” eram os mercados de pro-
dutos orgânicos, Comércio Justo e práticas e produtos envolven-
do comunidades tradicionais e seus recursos, muitos dos quais se
tornaram objeto de estratégias de indicação geográfica. A partir de
meados dos anos 1990, orientei um leque de dissertações e teses
acerca de cada um destes temas. Luis Carlos Mior concluiu a sua
dissertação sobre o modelo de contrato de integração da agricultu-
ra familiar em Santa Catarina. Posteriormente, publicamos juntos
um artigo sobre o setor informal neste estado, e acompanhei a sua
tese de doutorado sobre o movimento de promoção de agroin-
dústrias de pequena escala no Oeste de Santa Catarina. Laudemir
Muller e Gilmar Antônio Meneguelli, respectivamente, concluíram
dissertações sobre produção de queijos e suínos em pequena esca-
la no estado do Rio Grande do Sul. André Kuhn Raupp concluiu sua
dissertação sobre agroindústrias de pequena escala neste mesmo
estado. Agroindústrias de pequena escala também foram o tema de
Sergio Dias Orsi, que analisou o Programa para a Verticalização da
Pequena Produção Rural (Prove), no Distrito Federal.
Os anos 1990 foram uma década de grande mobilização em
torno da reforma agrária e da agricultura familiar. O número de
assentamentos cresceu sensivelmente neste período e, confor-
me já mencionado, o Programa de Fortalecimento da Agricultura
Familiar (Pronaf) foi lançado. O Plano Plurianual do Governo
Federal para 2000-2003 incluiu entre as suas prioridades “promover
61JOHN WILKINSON
o desenvolvimento da zona rural, através da valorização do peque-
no produtor rural, agroindústria de pequena escala e os assenta-
mentos rurais da reforma agrária”. O CNPq decidiu desenvolver ini-
ciativas de Ciência e Tecnologia direcionadas a estes segmentos e
fui contratado como consultor para desenvolver esta atividade.
Começamos por preparar um documento programático,
“Novos Conhecimentos e Novas Capacidades para a Inserção
Econômica da Agricultura Familiar”, que lançou as bases para a orga-
nização de um seminário nacional reunindo acadêmicos, formula-
dores de políticas, organizações da sociedade civil e representantes
dos setores de agricultura familiar e reforma agrária. Este seminá-
rio definiu as cinco áreas prioritárias para estudos e projetos de
Pesquisa e Desenvolvimento: o ajuste dos sistemas de produção às
nova exigências de qualidade; a promoção da viabilidade técnica
de agroindústrias de pequena escala; normas, sistemas de certifica-
ção e legislação adequadas para setor da agricultura familiar; estu-
dos sobre modelos organizacionais e exigências de mercado; e um
foco nas atividades rurais não agrícolas, a multifuncionalidade e o
desenvolvimento local.
Com base nestes critérios, elaboramos uma Convocação de
Projetos (CNPq/COAGR 004/2001), que recebeu 353 projetos, dos
quais 139 foram avaliados favoravelmente e 72 foram contratados a
um valor de R$ 6 milhões. Em 2002, Dalmo Marcelo de Albuquerque
Lima e eu coorganizamos o livro Inovando nas tradições da agri-
cultura familiar, que continha cerca de 28 contribuições dos par-
ticipantes do seminário e dos projetos. Todos os grandes temas e
iniciativas deste período relacionados à agricultura familiar foram
abordados e o livro concluiu com uma proposta de um modelo al-
ternativo de pesquisa e extensão agrícola. A obra também continha
62JOHN WILKINSON
um esboço da proposta de continuação desta iniciativa, mas a mu-
dança de governo em 2003 trouxe o fim do Programa. Para mim foi
um enorme prazer ter podido promover políticas, aproveitando o
meu entendimento das demandas de qualidade que, embora desa-
fiassem práticas existentes, também criavam oportunidades para a
agricultura familiar.
O meu envolvimento com a agricultura familiar nasceu da
convicção que este setor fazia parte do sistema agroalimentar
moderno, e minha preocupação teórica central tem sido sempre
o entendimento da dinâmica global do sistema agroalimentar.
Por esta razão, depois do nosso trabalho no livro From Farming
to Biotechnology, continuei a pesquisar as tendências e atores
dominantes do sistema agroalimentar. Já mencionei a pesquisa
com Raul Green e a Rede Europeia de Pesquisa, como também a
minha coordenação do componente agroindustrial da pesquisa
Competitividade da Indústria Brasileira.
Em 1995, fui contratado pela FAO para supervisionar um es-
tudo sobre os setores agroindustriais que poderiam ser afetados
negativamente pela integração regional do Mercosul, o que per-
mitiu me reconectar com os desdobramentos no Mercosul desde a
organização do Seminário Internacional do Mercosul, com Hector
Alimonda, em 1988. Esta
,consultoria, para a qual produzi um rela-
tório extenso, Sectores Agroindustriales Sensibles en el Contexto de
la Integración Regional del Mercosur, mas infelizmente não publi-
cado, aprofundou o meu entendimento sobre as implicações com-
petitivas da integração regional, e foi também uma oportunidade
para estudar o sistema agroalimentar no Paraguai, que até então
desconhecia. O Relatório englobava uma avaliação de oito seto-
res e envolvia tanto trabalho de campo como análises dos estudos
63JOHN WILKINSON
realizados em cada setor – os setores de carne vermelha e trigo no
Uruguai, avicultura e frutas cítricas na Argentina, algodão e feijão
no Brasil e arroz e laticínios no Paraguai.
Ao mesmo tempo, fui convidado a participar de um projeto de
pesquisa entre o Instituto de Economia da UFRJ e o Instituto para
la Integración de America Latina, (Intal), em Buenos Aires, um pro-
jeto financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID), cujo foco também era nas implicações da integração regio-
nal para diferentes setores industriais. Preparei um relatório com
Beatriz Nofal sobre as indústrias de laticínios da Argentina e do
Brasil, com base no qual posteriormente publicamos um artigo, “La
Producción y el Comercio de Productos Lácteos en el Mercosur”
(25 citações), na Revista do Intal, Integración & Comércio, em 1999.
Como resultado da minha participação na pesquisa
Competitividade da Indústria Brasileira, mencionada anterior-
mente, fui convidado em 1999, por João Carlos Ferraz, do Instituto
de Economia da UFRJ, para coordenar os Estudos Agroindustriais
do Programa de Pesquisas Procisur,16 Proyecto Global, cujo secre-
tário executivo era o altamente dinâmico e entusiasmado Roberto
Bocchetto. O foco aqui era muito nas demandas tecnológicas, par-
ticularmente nas demandas de qualidade, decorrentes do novo
contexto competitivo, com importante destaque na fronteira tec-
nológica. Tratava -se de um projeto altamente ambicioso envolven-
do o estudo dos principais setores agroindustriais na região. Tive a
sorte de poder contar com excelentes ex-alunos do CPDA – Celso
16 Programa Cooperativo para o Desenvolvimento Agroalimentar e Agroindustrial
do Cone Sulpara o desenvolvimento tecnológico da agricultura na região, que
incluía Bolívia e Chile.
64JOHN WILKINSON
Vegro, Guillermo Scarlatto e Graciela Ghezan –, e dois especialistas
argentinos em commodities agrícolas e biotecnologias – Graciela
Gutman e Roberto Bisang. Mauro Lemos, da UFMG, produziu um
estudo do contexto macro, no qual os diversos setores deveriam ser
situados. A pesquisa incluiu todos os principais setores de grãos,
óleos, carnes, laticínios e hortifruticultura dos seis países, com foco
nas suas implicações tecnológicas. Também envolvi Terry Marsden,
da Universidade de Cardiff, que produziu um relatório sobre a agri-
cultura orgânica na Europa, o qual identificamos como uma impor-
tante oportunidade e, ao mesmo tempo, um desafio para a região.
Os estudos passaram por uma avaliação de peritos numa reunião
em Buenos Aires antes que os textos finais, juntamente com uma
síntese escrita por mim, fossem concluídos e publicados numa sé-
rie editada pelo Procisur. A crise na Argentina na virada do século
mudou abruptamente as condições da cooperação e competição
regional, com a consequente perda de parte da centralidade do
Mercosul.
No meu ensino no CPDA, o papel fundamental dos movi-
mentos sociais na construção de um novo tipo de mercados de
qualidade especial passou a ser uma importante fonte de reflexão,
o que ficava especialmente nítido no trabalho que eu estava desen-
volvendo com meus alunos na área de produtos orgânicos. Maria
Fernanda de Albuquerque Costa Fonseca, figura central no movi-
mento pelos orgânicos no Rio de Janeiro, concluiu sua dissertação
A construção social do mercado orgânico, e sua tese A institucionali-
zação dos mercados dos orgânicos no mundo e no Brasil sob a minha
orientação. Iniciativas para o desenvolvimento de sistemas parti-
cipativos de certificação como alternativa às certificações formais
oficiais naquela época, reconhecidas pela Ifoam, The International
65JOHN WILKINSON
Federation of Organic Agriculture Movements (que notadamente
mantém a palavra “Movimentos” em sua caracterização), foram
vitais para o seu trabalho acadêmico e de ativismo. Fabio Ramos,
também ativo no movimento orgânico do Rio de Janeiro, concluiu
sua dissertação comigo sobre questões de coordenação e qualida-
de na cadeia de carne vermelha orgânica.
Nossas principais referências teóricas, todavia, para indica-
ções geográficas e orgânicas foram os autores franceses da teoria das
convenções, particularmente Bertil Sylvander e Egisio Valceschini.
Estes autores focalizavam mais as formas em que qualidades es-
peciais eram institucionalizadas nestes mercados, especialmente
através do trabalho de conseguir concordância sobre normas e sis-
temas de certificação. A centralidade dos movimentos sociais era
mais evidente no caso do Comércio Justo, talvez a resposta mais
radical e ambiciosa à crise dos mercados tradicionais de commodi-
ties. Na literatura anglo-saxônica, o aspecto de movimentos sociais
foi analisado dentro do quadro analítico das “redes alternativas”,
que passou a ser a referência abrangente para estas novas forma-
ções de mercado.17
Preferi continuar pensando em termos dos mercados e mo-
vimentos sociais, e busquei apoio teórico para isto primeiramente
em Fligstein, que no seu livro clássico The Architecture of Markets
(1991) argumentou que nos seus estágios iniciais de formação os
mercados compartilhavam muitas das características dos movi-
mentos sociais. Encontrei uma estrutura analítica mais decisiva na
introdução de Michael Callon na obra The Laws of the Market, um
17 Em 2012, David Goodman, E. Melanie DuPuis e Michael Goodman publicaram
uma revisão sistemática desta literatura intitulada Alternative Food Networks.
66JOHN WILKINSON
livro que ele organizou e publicou em inglês em 1998. Nesta intro-
dução, ele argumenta que a criação de mercados sempre envolve
um processo duplo de “enquadramento” e “transbordamento (fra-
ming e overflowing). Nesta perspectiva, os mercados estão constan-
temente em debate/conflito com ideias e atores cujos interesses e
valores não são adequadamente contemplados ou são até rejeita-
dos no processo de enquadramento. Movimentos sociais podem
se tornar mercados, e mercados, por sua vez, podem dar lugar a
movimentos sociais. Posteriormente, encontrei uma publicação
mimeografada de uma acadêmica do Quebec, Corinne Gendron,
que cunhou o termo “novos movimentos sociais econômicos” que,
para mim, descrevia perfeitamente a inter-relação entre estes no-
vos mercados de qualidade e os movimentos sociais.18
Continuei a desenvolver esta linha de análise em diversas
publicações subsequentes – “The Mingling of Markets, Movements
and Menus”, em 2006 (www.minds.org.br/arquivos); Fair Trade
Moves Center Stage (17 citações), também em 2006 (The Edelstein
Center for Social Research, Rio de Janeiro); “Fair Trade: dyna-
mic and dilemmas of a market oriented global social movement”,
Journal of Consumer Policy (2007), que figura como um dos meus
artigos mais citados com 186 citações até o presente, de acordo
com o Google; e “From Fair Trade to Responsible Soy: social mo-
vements and the qualification of agrofood markets” (30 citações),
Environment and Planning A, 2011. Em Fair Trade Moves Center
Stage, argumentei que os movimentos sociais obtêm a sua dinâmica
exatamente da heterogeneidade dos seus componentes distintos.
18 Le Commerce Équitable: Um Nouveau Mouvement Social Économique au
Coeur d´une Autre Mondialisation, Corinne Gendron, UQAM, Québec, 2004.
67JOHN WILKINSON
Nestes movimentos, três componentes podem tipicamente ser
identificados: circuitos alternativos de comércio baseados em re-
lações interpessoais
,e confiança sustentada por redes; a promoção
dos produtos do movimento nos mercados convencionais por meio
de sistemas formalizados de rotulagem e certificação; e campanhas
políticas em defesa da adoção de mudanças tanto nas regras de co-
mércio como nas estratégias das principais firmas. Embora dentro
do movimento estas diferentes posições muitas vezes sejam vistas
em termos hostis e competitivas, olhando de fora do movimento
podemos ver os seus efeitos complementares em fortalecer a di-
nâmica global do movimento social. Desta perspectiva, podemos
também ver como os movimentos sociais são renovados de formas
diferentes e aqui a ideia de Callon sobre “enquadramento” e “trans-
bordamento” é luminosa, ao mostrar que valores, interesses e ato-
res não contemplados em um mercado/movimento podem levar
a novos processos de enquadramento. Neste sentido, a agroecolo-
gia poderia ser vista como uma extensão do conceito de orgânicos,
Slow Food como uma alternativa às Indicações Geográficas, e a Via
Campesina como resposta alternativa global ao Comércio Justo.
O Comércio Justo foi foco de um grande projeto de pesquisa
com Laura T. Raynolds e Douglas Murray na Universidade Estadual
do Colorado, Stephanie Barrientos e Sally Smith, então no Institute
for Development Studies, Sussex, Andries du Toit e Sandra Kruger
na Universidade de Western Cape, e comigo no CPDA, juntamen-
te com meus alunos de doutorado Gilberto Mascarenhas e Zina
Angelica Cáceres Benavides e os alunos de mestrado Ana Asti e
Rosemary Gomes. Os resultados da pesquisa foram publicados
como livro, Fair Trade: the challenges of transforming globalization
(431 citações), organizado por Laura Raynolds, Douglas Murray e
68JOHN WILKINSON
por mim, aparecendo nos formatos de capa dura e livro de bolso
(Routledge, 2007). Fui coautor de quatro capítulos, e Gilberto e
Zina também foram coautores de capítulos. Gilberto Mascarenhas
concluiu sua tese Comércio Justo como movimento social, Zina
Benavides a sua sobre quinoa e Comércio Justo no Peru e Bolívia,
e Ana Asti desenvolveu uma análise de uma cadeia de algodão
de Comércio Justo para sua dissertação. Infelizmente, Rosemary
Gomes, uma força decisiva no movimento social do Comércio Justo
no Brasil, e muito importante nas nossas discussões e pesquisas,
não conseguiu concluir a sua dissertação.
Em 2005, uma orientanda minha no mestrado, Joana Dias,
concluiu a sua dissertação, Indicações geográficas: a construção
institucional de qualidade e, por volta do mesmo período, fui con-
vidado a lecionar sobre Indicações Geográficas num curso de espe-
cialização, Propriedade Intelectual, Inovação e Desenvolvimento
Intelectual, organizado entre o Instituto de Economia, a UFRJ e o
Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), à época sob
a Presidência de Jorge Ávila, que havia concluído algumas das
suas disciplinas para o doutorado no CPDA. No mesmo ano, fui
convidado para ser o presidente do Conselho Consultivo da Rede
Europeia de Pesquisa, Sinergi, coordenada por Gilles Allaire e Bertil
Sylvander, uma continuação da rede Dolphin para Indicações
Geográficas (IGs), cujos resultados foram publicados em dois
volumes pelo Inra. A pesquisa Sinergi propunha estender a aná-
lise de IGs aos países em desenvolvimento à luz do Acordo Trips,
mencionado anteriormente na discussão da institucionalização
das IGs no Brasil.
A pesquisa durou três anos e, na sua reunião de encerramento
em Genebra, em 2008, apresentei um trabalho em coautoria com
69JOHN WILKINSON
Claire Cerdan intitulado “Uma Perspectiva Brasileira das Indicações
Geográficas”. Claire Cerdan, integrante do órgão francês de pesqui-
sa agrícola para o desenvolvimento (Cirad), para quem anterior-
mente eu tinha realizado uma avaliação do seu Programa Prosper, à
época era pesquisadora visitante na Universidade Federal de Santa
Catarina. A experiência de acompanhar esta rede de pesquisa, cujo
cerne era uma parceria entre Inra e Cirad, foi bastante formativa.
Muitos dos seus membros eram inspirados pela abordagem da te-
oria das convenções e haviam participado nas publicações-chave
do Inra que eu descobrira durante meu pós- doutorado em 1995.
Esta vez, todavia, a atividade era enriquecida com equipes do Reino
Unido, Suíça, África do Sul e América Latina, e incluía, por inter-
médio dos integrantes do Cirad, pesquisas também de IGs na Índia
e Ásia. Foi então que conheci Dwigen Rangnekar, um indiano na
Universidade de Warwick, que fizera importante contribuição à
literatura IG com seu artigo “Protecting IGs. Club Goods and the
Dilemma of Collective Action”. Em 2009, organizei uma Conferência
com ele na Universidade de Warwick: “(Novas) Fronteiras de
Consumo”, tema que será discutido adiante.19
Na estrutura deste programa de pesquisas, Claire Cerdan or-
ganizou estudos de caso sobre o Brasil, e sua principal assistente de
pesquisa era a doutoranda francesa Delphine Vitrolles, cuja tese ela
coorientou com Claire Delfosse, docente na Universidade de Lyon
e estudiosa da produção artesanal de queijos cujo trabalho sobre
o estabelecimento de uma IG na perspectiva das convenções eu
19 Apenas bem mais tarde soube do falecimento de Dwijen Rangnekar, pessoa
muito cativante que fez uma importante contribuição aos estudos sobre IGs.
70JOHN WILKINSON
lera 1995. Tive o privilégio de ser integrante da banca de Delphine
Vitrolles, quando ela defendeu sua tese na Universidade de Lyon,
em dezembro de 2011, um estudo de quatro produtos “de origem”
nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
A originalidade do programa de pesquisa Sinergi estava no fato
de seu ponto de partida analítico não ser a IG em si, mas os produ-
tos com qualidade “de origem”, o que permitia uma análise de pro-
dutos com reputações estabelecidas com base na sua origem, mas
que não eram formalmente reconhecidos como IGs. Depois, incor-
poraríamos este conceito à nossa análise dos produtos “coloniais”
típicos no Brasil que estudamos especialmente na Região Oeste
de Santa Catarina, com meus ex-alunos e agora colegas pesqui-
sadores Clovis Dorigon e Luis Carlos Mior, cujos resultados foram
publicados como um capítulo, “The Emergence of SME networks
in the shadow of agribusiness contract farming: a case study from
the Brazilian South”, no livro Innovative Policies and Institutions to
Support Agroindustries Development, a convite de Carlos da Silva,
então na FAO, que tivera papel importante na coordenação dos re-
sultados do projeto do CNPq, Ciência e Tecnologia para a iniciativa
de agricultura familiar, discutido anteriormente.
Com a conclusão do Sinergi, Claire Cerdan, Claire Delfosse e
eu tivemos um projeto Capes-Cofecub aprovado em 2009, e renova-
do em 2011, e que na sua avaliação final recebeu uma nota “A”. Esta
experiência foi muito rica tanto academicamente como por sua
contribuição à consolidação de uma rede nacional extremamente
eficaz para a promoção de IGs. Três alunos no CPDA foram deci-
sivos para o sucesso da cooperação. Paulo Niederle passou o seu
período de doutorado sanduíche em Montpellier, na Unité Mixte de
Recherche,(UMR), Innovation, uma unidade do Cirad, com Claire
71JOHN WILKINSON
Cerdan; Carla Belas,20 também doutoranda, estudou IGs como sal-
vaguardas da herança cultural no caso de produtos artesanais não
alimentares e passou seu período sanduíche na Universidade de
Lyon, com Claire Delfosse; e Gilberto Mascarenhas, que tinha con-
cluído a sua tese sobre Comércio Justo, também foi para a unidade
UMR, em Montpellier, e realizou uma pesquisa numa comunidade
vinícola em colaboração com o pesquisador do Cirad Jean-Marc
Touzard. Miriam Aguiar, aluna minha de pós- doutorado, com um
projeto aprovado e financiado pela Capes sobre a construção social
do paladar, também estava integrada ao projeto de cooperação e
passou um período com a equipe do Cirad em Montpellier.
Durante
,estes Capes-Cofecub, organizamos uma série de
seminários internacionais que ajudaram a consolidar uma rede
extraordinária de apoio às estratégias de IG e que foi capaz de pro-
mover um diálogo, que serviu para quebrar as barreiras entre as
instituições com diferentes responsabilidades em relação à institu-
cionalização das IGs. A França era diferente do Brasil neste aspecto,
no sentido em que a política francesa de IG era centralizada por
meio do Instituto National de Appellation d´Origine, (INAO). Nossa
rede também era responsável pela elaboração de um modulo sobre
IGs num curso administrado pelo Mapa – Ministério da Agricultura,
que durante três anos sucessivos treinou centenas de alunos e téc-
nicos nas complexidades de negociação de IGs.
20 Carla Belas defendeu sua tese sob minha supervisão, Indicações geográficas e
a salvaguarda do patrimônio cultural: artesanato de capim dourado Jalapão, e
depois produzimos um artigo conjunto, “As indicações geográficas e a valoriza-
ção do artesanato em capim dourado do Jalapão”, publicado em Sustentabilidade
em debate, v.5. n.3, 2014. Em 2014, a tese de Carla Belas ganhou o “IV Prêmio do
Objeto Brasileiro”, competição organizada pela Casa Museu de Objeto Brasileiro.
72JOHN WILKINSON
Com o fim dos projetos de cooperação Capes-Cofecub, em
grande parte em virtude da iniciativa de Paul Niederle, que esta-
va envolvido na análise das IGs de uma perspectiva institucional,
e com Gilberto Mascarenhas, resolvemos entrar com o projeto
“Instituições, Mercados Agroalimentares e Direitos de Propriedade
Intelectual: as indicações geográficas como ferramenta de desen-
volvimento”, num Edital do MCTI/CNPq, 14/2013. O projeto, coor-
denado por mim, aproveitou o nosso trabalho anterior sobre a espe-
cificidade da estrutura institucional no qual as IGs estavam sendo
desenvolvidos no Brasil e na ampla rede IG em cuja promoção fo-
mos influentes.21 Nosso projeto foi aprovado, mas os recursos foram
insuficientes para desenvolver uma análise abrangente das IGs no
Brasil, e nos concentramos em três estudos setoriais – vinhos, quei-
jos e cafés, coordenados especificamente por Paulo Niederle, por
mim e por Gilberto Mascarenhas. Àquela altura, eu tinha uma se-
gunda pós- doutoranda sob minha supervisão, Dra. Simone Shiki,
da Universidade Federal de São João Del-Rei, e a incorporei no
projeto e, particularmente, no estudo dos queijos artesanais de
Canastra e Serro que eram objetos de estratégias de IG no estado
de Minas Gerais e que eu havia avaliado na década anterior para
a empresa internacional de consultoria, SOFRECO, sediada na
21 A equipe completa proposta incluía: Paulo André Niederle (PPGMADE –
UFPR, Paraná), Valdir Frigo Denardin (PPGMADE – UFPR, Paraná), Marcos
Paulo f*ck (PPPP – UFPR, Paraná), João Ricardo Ferreira Lima (Embrapa –
CPATSA, Pernambuco), Kelly Lisandra Bruch (Cepan – UFRGS, Rio Grande do
Sul), Ricardo Bernardes (Ministério da Agricultura – Mapa, Santa Catarina),
Adriana de Carvalho Pinto Vieira (Unesc, Santa Catarina), Gilberto Mascarenhas
(Ministério da Agricultura – Mapa, Rio de Janeiro), Doutorando André Luis
Funke (CPDA – UFRRJ, Rio de Janeiro), Doutorando Luis Claudio de Oliveira
Dupin (IE – UFRJ, Inpi, Rio de Janeiro).
73JOHN WILKINSON
França. Com os três estudos setoriais e contribuições sobre IGs da
nossa rede mais ampla, publicamos os resultados em 2016 num li-
vro intitulado O sabor da origem, organizado conjuntamente por
mim, Paulo Niederle e Gilberto Mascarenhas. Em 2017, aceitei Zina
Angelica Benavides para um pós- doutorado sob minha supervisão
para desenvolver um estudo comparativo de estratégias para ca-
cau/chocolate artesanal na Bahia, Brasil, e na região cacaueira do
Peru. Quando saí para o meu próprio pós- doutorado no Instituto
Max Planck para Estudos em Sociedades (MPIfG), no segundo se-
mestre de 2017, meu colega Sérgio Leite assumiu esta supervisão.
A premissa da “virada para a qualidade” era a estagnação/de-
clínio na demanda alimentar tradicional nos países desenvolvidos
e uma mudança para novos padrões alimentares, mas não consi-
derava outras tendências globais evidentes a partir de 2003, que
levaram a um ressurgimento nos mercados de commodities agríco-
las. Dois fatores alteraram radicalmente a dinâmica dos mercados
globais e viriam a se tornar preocupações centrais para mim nos
anos que se seguiram – a demanda chinesa por produtos de uma
dieta de proteína animal, na medida em que a sua população ficou
rapidamente urbanizada num contexto de décadas de alto cresci-
mento econômico; e o aumento na demanda por biocombustíveis
como resultado da adoção de estratégias para o etanol e biodiesel
não só no Brasil, mas também na Europa e nos Estados Unidos.
Este boom na demanda por commodities agrícolas foi acom-
panhado por um novo fenômeno, batizado de landgrabbing pela
ONG internacional Grain, que passou a ser uma fonte-chave para a
difusão de informações sobre os investimentos fundiários transna-
cionais e identificou novos atores fora do complexo agroalimentar e
74JOHN WILKINSON
novas formas de investimentos, tais como fundos especulativos, de
investimentos e soberanos.
Estes desenvolvimentos exigiram uma renovada atenção aos
atores dominantes do sistema agroalimentar que, no meu caso,
foi facilitado pelo convite, em 2005, via Actionaid, de participar
na Agroindustry Accountability Initiative (AAI) – Iniciativa para
Responsabilidade na Agroindústria. A AAI tinha uma longa histó-
ria que remontava ao trabalho de Jim Hightower (autor de Hard
Tomatoes Hard Times: A Report of the Agribusiness Accountability
Project on the Failure of the Land Grant College Complex, 1973) e
de outros autores que focavam o crescente poder de monopólio do
agronegócio em grande escala. Participei de uma série de reuniões –
em São Paulo, Chicago e Paris –, com meu colega do CPDA Georges
Flexor, na qual preparamos e apresentamos um artigo, “Brazilian
Agrifood, Transnationalisation and Market Concentration” (2006),
que nos ofereceu a oportunidade de atualizar a nossa análise dos
principais players brasileiros na área de agroalimentos. A meta da
AAI nesta iniciativa era desenvolver uma Matrix Interativa de Dados
para, continuamente, atualizar informações sobre a concentração
dos mercados, tipicamente índices C4 que medem a porcentagem
do mercado controlada pelas quatro maiores empresas. Um inte-
grante canadense da rede configurou a Matriz, que funcionou por
alguns anos, mas depois foi descontinuada.
Como desdobramento deste trabalho, fiz parceria com Mary
Hendrickson e William Heffernan, sociólogos rurais dos Estados
Unidos, num projeto financiado pelo Oxfam América, que levou à
publicação The Global Food System and Nodes of Power, disponível
no site da Oxfam. Robert Gromski também foi coautor deste tra-
balho, publicado em 2008. Estes estudos dos atores dominantes do
75JOHN WILKINSON
agroalimento foram complementados pela minha participação na
equipe consultiva do Instituto de Economia (UFRJ) com o BNDES
sobre as estratégias dos setores dominantes e atores de interesse ao
Banco. Juntamente com Pierina Castelli, preparamos um extenso
estudo sobre a indústria de bebidas, globalmente e no Brasil, e o
atualizamos em diversos momentos para apresentação ao BNDES.
Isto me seria de valia depois, quando realizei um estudo para a
Oxfam América, intitulado Land Rights and the Soda Giants, em
2016.
Embora considerasse valioso o trabalho sobre a concentra-
ção econômica no sistema de agroalimentos e tenha ficado feliz
em participar nestas iniciativas, estava também desenvolvendo o
que considerava ser uma visão mais matizada da estrutura cam-
biante do poder econômico ao longo da cadeia agroalimentar, que
apresentei em uma reunião em Santa Cruz, organizada por David
Goodman, em 2000, ao repensar as relações de produção-consu-
mo nos alimentos. Meu trabalho apareceu
,como um artigo, “The
Final Foods Industry and the Changing Face of the Global Agrifood
System” (132 citações), juntamente com as contribuições de outros
participantes, numa edição especial da Sociologia Ruralis, em 2002.
Este artigo representou um esforço para atualizar algumas caracte-
rísticas da nossa análise no livro From Farming to Biotechnology.
Argumentei que da perspectiva tanto das novas fronteiras tecnoló-
gicas como dos novos padrões de demanda alimentar, a indústria
dos alimentos finais estava numa posição cada vez mais vulnerá-
vel. Duas tendências com relação à demanda se tornavam aparen-
tes. A primeira era o aumento da importância dos nutracêuticos e
alimentos funcionais que tendia a ser empurrado cada vez mais
numa via substitucionista em direção às indústrias farmacêuticas e
76JOHN WILKINSON
cosméticas. A segunda representava um passo atrás dos alimentos
industrializados para o produto agrícola original numa demanda
por alimentos frescos, com prioridade para frutas e legumes. Aqui
as tecnologias de preservação estavam começando a predominar
sobre as típicas tecnologias de transformação que haviam sido a
base distintiva da indústria alimentar. Embora a indústria alimen-
tar tenha sido ambivalente e em grande parte passiva com relação à
biotecnologia, o varejo de grande escala agora estava confirmando
sua hegemonia tanto pela priorização de tecnologias de preser-
vação de alimentos como através do seu uso da informática para
identificar e nutrir a demanda dos consumidores com maior pre-
cisão. Estas tendências não foram tão aparentes à época, e muitos
achavam que os “gigantes da indústria alimentar” estavam mesmo
fortalecendo a sua posição por meio da globalização, mas pesqui-
sas recentes que venho realizando com Ruth Rama, pesquisadora
com quem primeiro trabalhei no contexto do Programa Fast da
Comissão Europeia, confirmaram esta tendência e o surgimento
pela primeira vez de uma nova geração de empresas alimentares.
Isto será discutido mais à frente.
Um convite de Jonathan Murdoch, da Universidade de Cardiff,
para participar de uma Sessão do painel que ele estava organizando
para o Congresso Mundial de Sociologia Rural, em Trondheim, em
2004, foi uma oportunidade para eu reunir os meus pensamentos
numa linha mais acadêmica sobre o dilema micro-macro, que
fora uma preocupação constante minha e que nos estudos rurais
se traduzia numa polarização entre os estudos micro de sociolo-
gia econômica/ator-rede e as perspectivas macro da economia
política. Talvez tenha conhecido Murdoch em Cardiff, quando
apresentei o meu trabalho lá sobre a Teoria das Convenções, mas
77JOHN WILKINSON
o seu trabalho realmente chamou a minha atenção quando li o seu
artigo, “Networks – a new paradigm for rural development” (2000),
texto que eu teria me orgulhado de ter escrito, já que incorporava
tanto a Teoria Ator-Rede como perspectivas neoschumpeterianas.
Encontrei Jonathan Murdoch no Congresso Mundial de Sociologia
Rural no Rio de Janeiro, em 2000, e conversei rapidamente com ele
sobre este artigo.22
Para a reunião em Trondheim, analisei a recente polarização
dos debates agroalimentares e estudos rurais e, particularmen-
te, a oposição entre as análises de rede (relações sociais e ator-re-
de) e de economia política, num trabalho com o título “Network
Theory and Political Economy – from attrition to convergence” (49
citações). Explorei as contribuições das teorias francesas de con-
venções e de regulação e focalizei a forma em que as análises de
Cadeia Global de Valor (CGV) e Rede de Produção Global (GPN)
incorporavam com sucesso as abordagens de redes à sua perspec-
tiva mais de economia política. Ao concluir, chamei a atenção para
a importância do conceito de netchain, cunhado por Lazzarini e co-
legas, mencionado anteriormente, como possível ponto de conver-
gência entre as duas abordagens, conflitantes entre sim até então.
Ao mesmo tempo, declarei uma crescente preocupação de incor-
porar os movimentos sociais à análise de redes, como também as
“redes globais de políticas” a serem promovidas pelos híbridos das
organizações da sociedade civil e organizações governamentais
internacionais.
22 Naquele congresso apresentei um trabalho sobre biotecnologia numa sessão
coordenada por Maria Fonte, colega no Curso de Mestrado Vittorio Marrama, no
CPDA.
78JOHN WILKINSON
Fiquei muito feliz com a síntese que conseguira construir
neste trabalho que foi publicado num volume organizado por Terry
Marsden e Jonathan Murdoch, Between the Local and the Global.
Research em Rural Sociology and Development, v 12., 2006. A dis-
cussão deste estudo me colocou em contato com Stefano Ponte,
que também estava trabalhando em CGVs e a teoria das conven-
ções, como citei anteriormente, e com quem depois me encontrei
em Copenhagen, onde apresentei um trabalho sobre as Cadeias
Globais de Valor que incorporavam explicitamente a minha pre-
ocupação com a necessidade de integrar as dinâmicas dos movi-
mentos sociais e dos consumidores (uma possibilidade já presente
na distinção de Gary Gereffi entre cadeias de commodities/valor
orientadas respectivamente pela demanda e pela oferta). Este tex-
to foi publicado posteriormente como “Global Value Chains and
Networks in Dialogue with Consumption and Social Movements”,
no International Journal of Technology, Learning, Innovation and
Development, 2008.
No Brasil, apresentei uma versão revisado do trabalho de
Trondheim no XII Congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia,
(SBS), em Belo Horizonte, em 2005, e ele foi publicado como capí-
tulo no livro Sociedade e realidade: pesquisa social no século XX1,
organizado por Maria Stela Grossi Porto e Tom Dwyer (UNB/SBS).23
23 Em colaboração com Josefa Salete Cavalcanti, coorganizei um Grupo
de Trabalho sobre “Globalização dos Sistemas Agroalimentares e Agendas
Alternativas” em diversos Congressos da Sociedade Brasileira de Sociologia
a partir de 2005. Fui também representante Brasil do Grupo RC40 que reunia
acadêmicos dos estudos rurais de uma abordagem de economia política no
Congresso Mundial de Sociedade Rural e que organizava reuniões regionais nos
intervalos entre Congressos, o que, juntamente com Salete, combinávamos com
o Grupo de Trabalho do SBS.
79JOHN WILKINSON
O declínio dos mercados tradicionais de commodities, iden-
tificado a partir dos anos 1970, impunha um desafio central às
organizações internacionais preocupadas com o desenvolvimento,
especialmente a FAO, o BID e a Comissão Econômica para América
Latina, (CEPAL). Nos países desenvolvidos, a resposta dominante,
como já mencionado, foi a transição para a qualidade nos alimen-
tos e produtos frescos ou artesanais cuja promoção era facilitada
com o desenvolvimento do varejo de grande escala que estava que-
brando o tradicional poder da indústria alimentar sobre as redes de
distribuição, e então, naturalmente, impondo o seu próprio poder.
Para os movimentos sociais e redes alternativas, o Comércio Justo
e os orgânicos representavam novas estratégias globais para o setor
de agricultura familiar. Para as organizações internacionais cita-
das anteriormente, a nova estratégia poderia ser resumida como a
promoção de “exportações de alimentos não tradicionais”. Ao mes-
mo tempo, estas organizações estavam assimilando a perspectiva
da “agroindústria” e “cadeia agroalimentar”, e, especialmente, es-
tratégias de integração vertical para pequenos agricultores. Agora,
no entanto, isto precisava levar em conta a nova hegemonia do
varejo de grande escala, que havia sido uma característica central
da minha cooperação com Raul Green e Roseli Rocha dos Santos,
e que passou a ser objeto de um projeto de pesquisa global focan-
do a transnacionalização do varejo de grande escala nos países em
desenvolvimento coordenado por Tom Reardon da Universidade
de Michegan com base nas redes de pesquisa
,impressionantes
que ele criou na América Latina, Ásia e África. O varejo de gran-
de escala tornou -se o ator central para a integração vertical com a
mudança para o “não tradicional”, especialmente os mercados de
produtos frescos.
80JOHN WILKINSON
Eu já havia sido exposto a estas tendências através de um
convite para participar do Seminário The Globalisation of the Fresh
Fruit and Vegetable System, organizado por David Goodman e Bill
Friedland, em dezembro de 1991, em Santa Cruz, para o qual pre-
parei o artigo “A Profile of the Brazilian Fruit and Vegetables for
Export Sector”, cujo original ainda possuo, mas desconheço se foi
publicado. Neste trabalho, contrastei os fatores sinergéticos que
caracterizavam a transição do Brasil das plantações de café para
as de laranjas para suco em São Paulo, e de trigo para soja e, de-
pois, para carnes brancas nos estados do Sul, com as rupturas tan-
to em termos de atores, locais e exigências tecnológicas, no caso
na promoção da exportação de frutas não tradicionais no Nordeste
brasileiro. Também analisei o setor de frutas tradicionais no Brasil,
e ainda chamei a atenção para o papel vital das principais firmas
nacionais na consolidação do modelo “fordista” moderno do agro-
negócio brasileiro. Neste período, Salete Cavalcanti criou uma rede
RC40, envolvendo brasileiros, argentinos e Alessandro Bonnano,
importante membro estadunidense do RC40 (que depois seria seu
presidente) e, a partir de então, passou a desenvolver estudos siste-
máticos do setor de exportação de frutas em Petrolina, Pernambuco,
estado natal de Salete, abrangendo apresentações regulares ao
RC40 e em outros Congressos. Eu tinha um relacionamento forte
com esta rede por intermédio da nossa coordenação conjunta de
um Grupo de Trabalho no SBS, conforme já mencionada. Depois,
voltaria a analisar o complexo de exportações de Petrolina com
meus alunos Gilberto Mascarenhas e André Funck, dentro da estru-
tura de um projeto internacional de pesquisa, coordenado por Gary
Gereffi (Universidade Duke) e Stephanie Barrientos (IDS-Sussex),
81JOHN WILKINSON
em 2010-2013, denominado “Capturing the Gains”, desenvolvido a
partir da estrutura analítica de CGV.
Conheci Tom Reardon em 2000, em uma das nossas últimas
reuniões da Pesquisa Procisur Mercosul, Proyecto Global, na qual
ele esteve presente como observador. Nesse período, ele estava re-
alizando pesquisas numa grande rede latino-americana, em for-
te colaboração com Julio Berdegué, então líder da influente ONG
chilena: Centro Latinoamericano para el Desarrollo Rural, Rimisp)
que, por sua vez, fazia parte de uma ampla rede que analisava a
“revolução nos supermercados” no mundo em desenvolvimento. No
Brasil, Reardon trabalhava à época com Elizabeth Farina, membro
fundador do Programa Pensa da USP, e depois com Walter Belik, da
Unicamp. No Chile, Martine Dirven, da Ecla, e Sergio Faiguenbaum,
aluno de Vittorio Marrama, cuja dissertação eu orientara, faziam
parte da rede. O trabalho de Tom Reardon recebeu apoio da Divisão
de Agricultura e Economia do Desenvolvimento da FAO, cujo chefe
era Kostas Stammoulis. Fui convidado a contribuir com um tra-
balho, “Food Processing Industry, Globalisation and Developing
Countries”, que apresentei numa reunião em Roma, coordenada
pela FAO e Tom Reardon, e que incluía um estreito colaborador
dele, C. Peter Timmer. Este trabalho foi publicado como artigo na
FAO no e-JADE Journal, em 2004, e posteriormente, em 2008, se tor-
nou capítulo de um livro, The Transformation of Agrifood Systems,
organizado por Kostas Stammoulis e outros membros da sua divi-
são (100 citações).
Neste período, estava me interessando pelo setor de pesca-
do. Já havia orientado duas dissertações, uma sobre a produção
de truta no Sul e outra sobre tilápia no Nordeste, mas agora o meu
interesse era provocado pela crescente importância dos produtos
82JOHN WILKINSON
da pesca na nova dieta dos países desenvolvidos, e por seu papel
como um produto-chave das “exportações não tradicionais” para
os países em desenvolvimento. Além disso, no Brasil, a produção
de camarão estava se tornando importante em alguns dos estados
nordestinos,24 e a tilápia passava a ocupar um espaço significativo
no setor dos restaurantes “a quilo”, em franca expansão. Depois de
participar de uma reunião da FAO no Rio de Janeiro sobre pesca,
escrevi um capítulo, “Global Food Chain, Retail and Catering: the
case of the Fish Sector”, para o Report of the Expert Consultation in
International Fish Trade da FAO, organizado por Jochen Nierintz,
2004. Fui então convidado por Jochen Nierintz, da FAO, para coor-
denar uma pesquisa sobre os supermercados e o setor pesqueiro na
América Latina. Formei pequenas equipes no Brasil, Chile e Peru
e também realizei trabalho de campo em cada um destes países.
Naqueles dias, o Chile era visto como um caso bem-sucedido para
a estratégia de exportação de “alimentos não tradicionais” pelo seu
desenvolvimento da fruticultura e aquicultura de salmão. Esta pes-
quisa foi publicada em 2006, como Supermarkets and the Artesanal
Fisheries Sector in Latin America. Fiquei absorto com o setor pes-
queiro e me dediquei a um estudo mais acadêmico com base
num diálogo crítico com a análise da Cadeia Global de Valores. Os
resultados foram publicados como artigo na Sociologia Ruralis, em
2006, intitulado “Fish: a Global Value Chain Driven onto the Rocks”
(72 citações), que já recebeu algum reconhecimento na literatura
24 Já havia estudado este fenômeno como parte de um relatório que prepa-
rei a pedido da Diretoria-Geral 1 da Comissão Europeia: “Brazilian North and
Northeast Identification Mission: Opportunities for Economic Cooperation with
Europe”, Relatório Final, 1996, Bruxelas. O turismo, pesca, frutas e pedras semi-
preciosas foram os setores-chave identificados.
83JOHN WILKINSON
acadêmica. Neste artigo, focalizei o conflito de interesses que im-
possibilitavam a efetiva coordenação da cadeia global de pesca e
que ameaçava de extinção a pesca extrativista. A piscicultura, com
todos os seus problemas ambientais e tecnológicos estava agora
se tornando a principal fonte de pescado para consumo. Este foco
num aumento no consumo de peixes fazia parte de uma preocupa-
ção permanente com o lado da demanda do sistema agroalimentar
e, cada vez mais, com a natureza autônoma das práticas de con-
sumo, um tema que se tornaria mais central no momento em que
entrei no Comitê Organizador do Encontro Nacional de Estudos de
Consumo – Enec, em 2006, que vem promovendo encontros bie-
nais desde sua fundação, em 2000, por Livia Barbosa (UFF) e Laura
Graziela Gomes (UFF), e que também conta com a minha colega no
CPDA Fátima Portilho, que viria a exercer um papel cada vez mais
importante.
Já mencionei como comecei a incorporar o consumo na
minha análise das Cadeias Globais de Valor. Em 2004, realizei uma
revisão da literatura sobre estudos de consumo para esclarecer a
minha posição acerca deste tema, que foi posteriormente publica-
do (numa forma revisada) como capítulo, “Consumer Society: what
opportunities for new experiences of citizenship and control?”, no
livro Re-Imagining Growth: towards a renewal of development the-
ory, organizado por Silvana de Paula (uma colega no CPDA) e Gary
Dymski (Zed Books, 2006).
Desde então, tenho continuado meu trabalho sobre consumo
como objeto independente de investigação e não simplesmente
um adjunto aos estudos agroalimentares. Em 2008, fui convidado
por Dwijen Rangnekar, a quem conhecera no contexto do proje-
to Sinergi, para organizar uma conferência que denominamos de
84JOHN WILKINSON
(New) Borders of Consumption, e que ocorreu na Universidade
Warwick, em maio de 2009. Usei esta oportunidade para reunir
acadêmicos que estavam trabalhando na interface entre mercados
e consumo, no setor de agroalimentos – meu colega de
,longa data,
David Goodman; seu ex-aluno Mike Goodman, agora docente na
Inglaterra e editor de uma importante série de livros sobre agricul-
tura e alimentos, além de perito no Comércio Justo; Mara Miele,
coautora com Jonathan Murdoch de muitas obras e que estava tra-
balhando na área do bem-estar animal; Gilles Allaire, com quem
eu trabalhei no projeto Sinergi; e Stefano Ponte, cujas contribui-
ções para a integração da teoria das convenções à análise de CGV
já mencionei. Preparei um texto, “From Fair Trade to Responsible
Soy: social movements and the qualification of agrofood markets”, e
organizamos uma edição temática com as contribuições da confe-
rência, que apareceu Environment and Planning A, em 2011.
Em 2011 também publiquei “Convention Theory and
Consumption”, na Encyclopedia of Consumer Culture (Sage), or-
ganizada por Dale Southerton. Em 2013, fui coautor do capítulo
“Youth Consumption and Citizenship”, com as colegas do Enec
Livia Barbosa, Fatima Portilho e Veranese Dubeux, que foi publica-
do em Enabling Responsible Living (Springer, 2013), organizado por
Ulf Schrader. E, em 2018, fui coautor de “Consumption in Brazil:
the new field of consumer studies and the phenomenon of the new
‘middle class’”, com Livia Barbosa, que foi publicado no Routledge
Handbook of Consumption.
Em 2006, Julio Berdegue coordenou a produção de trabalhos
que serviram como subsídios para o Relatório sobre Agricultura
e Alimentos, de 2008, da FAO. sob a coordenação-geral de Alain
de Janvry, cujo livro sobre reforma agrária na América Latina fora
85JOHN WILKINSON
um texto fundamental para o meu ensino no Curso de Mestrado
de Vittorio Marrama. Fui convidado para ampliar o artigo que pre-
parara para Kostas Stamoulis sobre o setor de processamento de
alimentos no contexto de países em desenvolvimento. Os termos de
referência exigiam uma pesada análise estatística, que foi elaborada
por Rudi Rocha, à época brilhante aluno de doutorado e agora do-
cente no Instituto de Economia da UFRJ, que se tornou coautor do
texto, o qual, de forma confusa, ostentava o mesmo título do artigo
que eu preparara dois anos antes. Rudi e eu também apresentamos
um trabalho sobre o mesmo tema geral no Global Agroindustries
Forum, Gaif, Nova Delhi, Índia, em 2008, que foi publicado no ano
seguinte como capítulo, “Agroindústria: trends, patterns and develo-
pment impacts”, na edição da FAO, Agroindustries for Development,
organizado por Carlos da Silva et al. Visitei a Índia outra vez como
coordenador do estudo de Biocombustíveis e Segurança Alimentar
em 2102-13 e como integrante da equipe de pesquisa Capturing the
Gains no mesmo ano. Também integrei a delegação do Governo
brasileiro para a Conferência Brics sobre agricultura, que ocorreu
na Índia. Em 2009, fui convidado para apresentar um trabalho no
Congresso Trienal conjunto FAO-IAAE, em Pequim, que preparei
com Clovis Dorigon e Luiz Carlos Mior, intitulado “The Emergence
of SME agroindustriais networks in the shadow of agribusiness con-
tract farming. A case study from the South of Brazil”. Este trabalho
foi publicado como capítulo em Innovative Policies and Institutions
to Support Agroindustrial Development, FAO, outra vez editado
por Carlos A. Silva e visto como desdobramento do livro anterior.
No mesmo Congresso do IAAE, em Pequim, também participei da
sessão que apresentou os resultados finais da rede de pesquisas do
86JOHN WILKINSON
Sinergi, Indicações Geográficas, de cujo Conselho Consultivo eu
fora presidente.
A preparação destes artigos me colocou em contato com a
literatura internacional que tratava de desenvolvimento num con-
texto radicalmente novo, definido pela desregulação e a crescente
centralidade dos novos atores privados, envolvendo produtos não
tradicionais com características distintas de qualidade. Já mencio-
nei como, no contexto brasileiro, isto levou, entre outras coisas, à
criação do Pensa e à centralidade das questões de coordenação
para os atores nas diferentes cadeias agroalimentares, para quem
a nova economia institucional e a análise de custos de transação se
tornou uma estrutura analítica atraente.
A análise de “grades e padrões”, e “certificações”, como me-
canismos de coordenação central, passou a ser uma preocupa-
ção-chave na academia e nas instituições internacionais citadas
anteriormente. Estas questões passaram a ocupar uma importan-
te posição na minha disciplina sobre o Sistema Agroalimentar no
CPDA, e me valia especialmente do trabalho de Larry Busch, que
estava no mesmo centro que Tom Reardon nos Estados Unidos,
mas que fazia uso preferencialmente das teorias das convenções e
ator-rede. Aqui a teoria das convenções e as abordagens de custos
de transação outra vez eram usadas como estruturas interpretativas
competitivas e, às vezes, complementares na crescente literatura
sobre graus, padrões e sistemas de certificação. Em 2010, produzi
um dossiê sobre o tema da qualidade, Gestão de Qualidade, para
um curso de especialização em Gestão do Agronegócio, coorde-
nado pelo Professor Roberto Amadeu Fassarello, da Universidade
Federal do Espírito Santo. A intenção era de publicar o dossiê, o que
87JOHN WILKINSON
lamentavelmente não ocorreu. Mas ele passou a ser uma ferramen-
ta pedagógica útil nas minhas aulas no CPDA.
Renovei a minha colaboração com Ruth Rama num estudo
que empreendemos para a FAO, publicado no Commodity Market
Review, em 2008. Este estudo envolveu uma pesquisa sobre investi-
mento estrangeiro direto (IDE) e seu impacto no desenvolvimento
nas Cadeias de Valor Global nos países em desenvolvimento e me-
nos desenvolvidos, intitulado “FDI and Agrofood Value Chains em
Developing and Least Developing Countries”. Ao mesmo tempo, fui
contratado pela Ecla/Cepal para preparar um capítulo sobre investi-
mentos asiáticos no agro latino-americano. Mais de dez anos antes,
eu havia produzido um relatório para a Ecla/Cepal sobre perspecti-
vas para a agricultura familiar no contexto do avanço da liberaliza-
ção e de novos padrões da demanda global e o potencial dos “mer-
cados não tradicionais”. Isto fora publicado como Documento Ecla/
Cepal, em 1994: “Agroindústria: Articulação com os Mercados e
Capacidade de Integração Socioeconômica da Produção Familiar”.
Agora, no meio da primeira década do novo milênio, o con-
texto internacional mudou mais uma vez, e os investimentos asi-
áticos na agricultura latino-americana passaram a ser uma preo-
cupação importante. Isto foi uma oportunidade para reexaminar
a participação japonesa na ocupação da região do Cerrado no
Brasil e de investigar o papel dos investimentos asiáticos na indús-
tria madeireira na Amazônia, incluindo Guiana e Peru, além do
Brasil. Foi também uma rara oportunidade de visitar a Coreia do
Sul, onde apresentei os resultados do nosso estudo e pude observar
88JOHN WILKINSON
os enormes avanços econômicos que este país havia alcançado.25
Nossa pesquisa foi publicada bem depois como um capítulo, “Asian
agribusiness investment in Latin America with case studies from
Brazil”, no livro The Changing Nature of Asian and Latin America
Economic Relations, em 2012, pela Ecla/Cepal.
O ano de 2003 foi um momento decisivo não só no Brasil
como também nos mercados agroalimentares mundiais. No Brasil,
o recém-empossado Governo Lula priorizou um novo programa de
biocombustíveis para o setor da agricultura familiar ao promover o
biodiesel, derivado de um leque de lavouras oleaginosas adaptadas
às características regionais e aos sistemas produtivos da agricultura
familiar. Ao mesmo tempo, o etanol foi projetado como um novo
mercado agrícola vital, que prometia o desenvolvimento verde para
os países em desenvolvimento e, particularmente, para o continen-
te africano. Enquanto o etanol das culturas alimentares, especial-
mente o milho, rapidamente passou a ser visto com olhos críticos
pelas
,a aguçar seu interesse
e sua percepção sobre o sindicalismo e a ação sindical e sobre as
transformações em curso no meio rural, com especial atenção aos
assalariados e aos pequenos produtores. Já no CPDA, e no contexto
09PREFÁCIO - NELSON GIORDANO DELGADO
das oportunidades de recursos e de diálogo acadêmico e político
em âmbito nacional propiciadas pelo Projeto de Intercâmbio de
Pesquisa Social em Agricultura (Pipsa), financiado pela Fundação
Ford e inaugurado em 1978, iniciou, de forma sistemática e incan-
sável, um admirável e pioneiro envolvimento com os temas da
reforma agrária, das políticas públicas, das lutas sociais, dos mo-
vimentos e das organizações sociais no campo, cujos desdobra-
mentos nas décadas seguintes – na pesquisa, no ensino, na asses-
soria, no intercâmbio e na construção da memória das lutas sociais
camponesas – representam a contribuição marcante e singular da
professora Leonilde no CPDA e no meio acadêmico brasileiro e la-
tino-americano, o que lhe tornou reconhecida como uma das mais
importantes intelectuais nesses campos de atuação.
Quero, no conjunto das contribuições de Leonilde, chamar
especialmente a atenção para uma que ela mesma considera como
das mais preciosas: a criação no CPDA, em 1994, do Núcleo de
Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e
Políticas Públicas no Campo (NMSPP), que ganhou grande impul-
so a partir de 2003 e representa uma iniciativa pioneira e corajosa
de instalação e manutenção de um centro de documentação que
acumule e organize materiais (de diversa natureza) relevantes tan-
to para a preservação da memória dos camponeses e dos trabalha-
dores do campo e suas lutas, quanto para o estímulo à pesquisa,
acadêmica ou não, no campo abrangido pelo Núcleo.
E não posso deixar de lembrar também que Leonilde esteve
na linha de frente da luta pela sobrevivência institucional do CPDA
no final dos 70 e contribuiu intensamente, desde então – como
John e Sergio –, no trabalhoso, mas memorável, esforço acadêmi-
co e administrativo empreendido coletivamente para conformá-lo
10PREFÁCIO - NELSON GIORDANO DELGADO
e consolidá-lo como um programa público de pós-graduação, de
ensino e de pesquisa, de qualidade.
Ademais, o reconhecimento de seu enraizamento acadêmico
e político nas lutas sociais no campo fez com que fosse convidada
a participar na Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro,
instalada em 2013 para resgatar e esclarecer as graves violações de
direitos ocorridas no meio rural durante o período da ditadura mi-
litar no Brasil.
John, por sua vez, entrou no CPDA em 1982, na transição da
passagem da Fundação Getúlio Vargas (Horto) para a UFRRJ. Vinha
de Salvador/BA e foi apresentado ao CPDA por nosso amigo comum
Prof. Bernardo Sorj, que foi colaborador do programa nesse período.
No início dos 1980 surgiram as primeiras pesquisas e publicações
no Brasil sobre o tema dos Complexos Agroindustriais, como era
então denominado, no qual foram pioneiros o próprio Bernardo,
Geraldo Müller, José Graziano da Silva, Angela Kageyama e vários
outros pesquisadores. A partir daí, e como professor e pesquisador
do CPDA, John foi aprofundando e complexificando a temática do
sistema agroalimentar mundial, e seus desdobramentos na Europa,
na América Latina e no Brasil, em diversas direções e dimensões,
tendo se tornado, reconhecidamente, uma das maiores autorida-
des internacionais nesse campo, fazendo parte de uma rede mun-
dial de pesquisadores de grande importância e visibilidade.
É fascinante acompanhar no memorial a riqueza, a complexi-
dade e a abrangência da trajetória seguida por John ao longo desses
anos, acompanhando seu passo a passo intelectual, seu destemor
em abrir novas frentes de investigação, em participar em redes eu-
ropeias, norte-americanas e asiáticas cada vez mais inovadoras e
diversificadas no pensar o campo do sistema alimentar mundial,
11PREFÁCIO - NELSON GIORDANO DELGADO
em colaborar na criação de redes nacionais e latino-americanas de
pesquisadores, em grande parte mobilizando estudantes brasilei-
ros e latino-americanos do CPDA, cujas dissertações e teses foram
por ele orientadas.
Neste sentido, explorou, empírica e analiticamente, um con-
junto impressionante de temas que cobrem, por exemplo: os es-
quemas interpretativos das relações entre indústria e agricultura,
a partir da recusa em aceitar a concepção de um complexo agroin-
dustrial unificado; a importância do grande varejo na conformação
do sistema alimentar; a crescente relevância da biologia e da infor-
mática no sistema; o surgimento dos movimentos sociais ligados ao
consumo alimentar e ao comércio justo; a valorização da agricultu-
ra familiar brasileira, a construção de mercados cívicos e o direito à
segurança alimentar e à produção de alimentos saudáveis; e, mais
recentemente, o mergulho nos temas desafiadores e atualíssimos
da conformação da nova fronteira tecnológica – confrontada mui-
to mais pelas questões alimentares e de preservação do meio am-
biente do que pelas questões agropecuárias propriamente ditas – e
das novas dinâmicas geopolíticas do sistema alimentar global. Sem
esquecer a contribuição, teórica e empírica, que tem dado ao cam-
po da sociologia econômica e sua aplicação ao estudo do sistema
alimentar, do qual é um dos pioneiros. Não tenho dúvidas de que a
cabeça do John é uma festa de arromba!
Sergio, que é o mais jovem dos três, trilhou um caminho di-
verso, percorrido já na UFRRJ. Fez seu mestrado no próprio CPDA,
tendo defendido em 1992 sua dissertação orientada pelo Prof.
Roberto Moreira. Neste sentido, é um “filho” da tradição originá-
ria do CPDA. Logo em seguida, após um período em que trabalhou
no IBASE (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas),
12PREFÁCIO - NELSON GIORDANO DELGADO
foi contratado como professor e pesquisador pelo CPDA em 1994,
sendo, se não estou enganado, o primeiro ex-aluno a fazer parte da
instituição. A partir daí, Sergio conquistou um enorme e mereci-
do prestígio, no Brasil e no exterior, como um brilhante professor e
pesquisador, como um extraordinário institutional builder e como
um incansável, imaginativo e respeitado construtor de laços acadê-
micos, pessoais e institucionais, com pesquisadores e instituições
no Brasil e no exterior, além de um intenso trabalho de consulto-
ria com ONGs, organizações internacionais e com o governo bra-
sileiro (nos diferentes níveis da federação). Uma leitura atenta de
seu memorial não deixa dúvidas quanto à ênfase colocada nessas
observações.
Não vou mencionar o admirável conjunto de atividades (por
exemplo, de ensino, de pesquisa, de intercâmbio nacional e inter-
nacional, de publicações científicas, de coordenação institucional)
empreendido pelo Prof. Sergio nesses anos - como também não o
fiz para os dois outros colegas -, pois optei pela elaboração de um
prefácio muito breve que apenas sirva para abrir o apetite para a
leitura dos memoriais. Mas não resisto ao impulso de aludir a pelo
menos três dessas atividades, pela importância que considero que
tiveram.
Primeiro, o investimento em pesquisa que foi empreendido
pelo Prof. Sergio, pela Prof. Leonilde e por um grande número de
pesquisadores ligados ao CPDA e a outras instituições acadêmicas
de diferentes partes do Brasil, durante a década de 1990 e o início
dos anos 2000, sobre o tema dos assentamentos de reforma agrária
e seus impactos regionais tanto sobre os próprios assentados como
sobre o entorno econômico e social em que foram implementados.
Esse notável “programa de pesquisa” sobre os assentamentos de
13PREFÁCIO - NELSON GIORDANO DELGADO
reforma agrária no Brasil teve enorme repercussão nacional e in-
ternacional tanto pela qualidade dos resultados obtidos sobre um
tema bastante controverso politicamente, como pela mobilização
de grande parte dos pesquisadores que iriam conformar
,organizações da sociedade civil, o etanol brasileiro obtido da
cana-de-açúcar foi aceito como combustível limpo, poupador de
carbono e renovável, e tornou -se a bandeira principal de uma di-
plomacia global que projetava o Brasil como modelo para o resto
do mundo em desenvolvimento. De forma semelhante, a União
Europeia estabeleceu metas ambiciosas para os seus programas
de biocombustíveis, basicamente biodiesel, nos quais a África e os
países caribenhos eram projetados para serem grandes fornecedo-
res de matéria-prima, e mais uma vez foram apresentados como
uma nova oportunidade para o desenvolvimento. Esta imagem
25 Visitei a zona desmilitarizada com a Coreia do Norte e fiquei chocado em ver
como Seul ficava perto da fronteira.
89JOHN WILKINSON
deu ao Brasil grande influência no mundo em desenvolvimento e
a perspectiva de um mercado emergente para o bioetanol trouxe
uma onda de investimentos para o setor açucareiro brasileiro.
Ao final dos anos 1980, como mencionado anteriormente, eu
havia feito pesquisas no Centro de Desenvolvimento da OCDE em
biotecnologia e no setor de biocombustíveis. Revisitamos este se-
tor no início dos anos 1990 com a produção de um relatório iné-
dito durante muito tempo acerca do papel das biotecnologias no
Brasil e dos biocombustíveis, em especial,26 que formou a base para
diversos artigos publicados sobre o que à época era denominado
de Programa Proálcool. Por volta de meados da primeira década do
novo milênio, organizações da sociedade civil também estavam se
tornando críticas da expansão das lavouras de biodiesel no mundo
em desenvolvimento. A Oxfam International publicou um estudo
global em 2008 intitulado: Another Inconvenient Truth: how bio-
fuels are deepening poverty and accelerating climate change. Dada
a importância do Brasil, a Oxfam International então contratou a
mim e Selena Herrera para produzirmos um relatório detalha-
do tanto sobre etanol como biodiesel no Brasil, que além de uma
análise geral de cada programa deveria também incluir estudos de
caso. Isto ofereceu uma oportunidade ideal para um trabalho de
campo e nós examinamos a produção de biodiesel do óleo de ma-
mona no estado do Ceará e do óleo de palma no estado do Pará,
além de uma iniciativa envolvendo a produção de etanol no Rio
Grande do Sul, dentro de uma perspectiva de desenvolvimento lo-
cal. Os resultados foram publicados em 2008 num formato bilíngue
26 Odaci Coradini, um aluno de Bernardo Sorj e membro do grupo Pecla da
Universidade de Minas Gerais se juntou a Sorj e a mim neste estudo.
90JOHN WILKINSON
como Agrofuels in Brazil/Agrocombustíveis no Brasil, pela Oxfam
International. No mesmo ano, contribuímos com um capítulo,
“Subsídios para a discussão dos agrocombustíveis no Brasil”, para
uma publicação da Fase/Rebrip, Agrocombustíveis e a Agricultura
Familiar e Camponesa.27 No ano seguinte, fui convidado a preparar
um artigo sobre biocombustíveis no Brasil para uma conferência no
Fernand Braudel Center, que apareceu como “The Emerging Global
Biofuels Market”, na revista deste centro, Review.28 Este artigo me
deu a oportunidade de analisar o mercado de biocombustíveis à
luz da crise financeira global de 2007-8 e os debates sobre o papel
dos biocombustíveis nos aumentos dos preços agrícolas deste pe-
ríodo. Também permitiu uma primeira avaliação do impacto da
crise financeira global sobre o setor de etanol de cana-de-açúcar no
Brasil. No ano seguinte, num artigo escrito juntamente com Selena
Herrera para o Journal of Peasant Studies, “Biofuels in Brazil: deba-
tes and impacts” (166 citações, Google), conseguimos atualizar e
27 Por volta deste período, o Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura
(Oppa), coordenado por Sérgio Leite, foi contratado pela Petrobras para realizar
uma avaliação do Programa de Biodiesel. Fui convidado para apresentar um ar-
tigo em uma das suas reuniões, e o fiz, sendo o artigo denominado “Construção
política do mercado de biodiesel”. Mas que eu me lembre, nunca foi publicado.
Em outras ocasiões, colaborei com as iniciativas do Oppa, produzindo dois arti-
gos, um sobre biotecnologias e, o outro, num livro organizado por Renato Maluf
e Georges Flexor, Questões agrárias, agrícolas e rurais, de 2017.
28 Em 2010, também publiquei outro artigo, “Water and Land in Latin America:
global strategies and policies”, numa edição especial do Review, v. XXXIII, ns. 2/3,
organizado por Philip McMichael. Um ano depois, publiquei um artigo sobre o
mesmo tema com relação ao Brasil, na série: Cindes, v. 1, “Water a Strategic
Global Resource”.
91JOHN WILKINSON
aprofundar a nossa análise dos programas tanto de etanol como de
biodiesel no Brasil29.
Com base neste extenso trabalho realizado sobre a questão
dos biocombustíveis e por intermédio da indicação do meu cole-
ga no CPDA Renato Maluf, à época membro do Comitê Diretor do
Painel de Peritos de Alto Nível sobre Segurança Alimentar (sigla em
inglês, HLPE), fui convidado para ser líder de equipe para a produ-
ção de um Relatório do HLPE sobre Biocombustíveis e Segurança
Alimentar, que apareceu em 2013.30 Os outros integrantes da equi-
pe, não indicados por mim, foram Suraya Afiff, Miguel Carriquiry,
Charles Jumbe e Timothy Searchinger. Esta pesquisa foi auxiliada
grandemente pelo coordenador do HLPE, Vincent Gitz. O Relatório
continha os seguintes capítulos: “Políticas de biocombustíveis”;
“Biocombustíveis e a fronteira tecnológica”; “Biocombustíveis, pre-
ços, fome e pobreza”; “Biocombustíveis e terra”; “Biocombustíveis
e bioenergia: impactos socioeconômicos e perspectivas de
29 Tornei -me coorientador de Selena Herrera, juntamente com Emilio Lèbre la
Rovere, no seu doutorado que ela defendeu no Coppe em 2014: Análise da go-
vernança global da sustentabilidade dos biocombustíveis e proposta para o etanol
brasileiro. Mediante minha indicação, ela passou um período sanduíche com
Mark Harvey na Universidade de Essex, pessoa cujo trabalho eu vinha acompa-
nhando desde as suas publicações inicias sobre biotecnologia e que havia feito
pesquisa sobre biocombustíveis brasileiros.
30 Entre 2013-2015, fui convidado pelo Global Food Ethics Project, da Universidade
Johns Hopkins, para ser parte de uma equipe que, com base em sessões de
brain storming, recebeu a incumbência de produzir uma agenda sobre Ética e
Segurança Alimentar Global, chamada Agenda 7 x 5, porque definia sete prio-
ridades para serem alcançadas em 5 anos. Preparei um artigo para este projeto
que foi publicado na Revista Global Food Security, “Food Security and the Global
Agrifood System. Ethical Issues in a Historical and Sociological Perspective”,
2015. Em uma reunião na Itália, tive o prazer de participar juntamente com Per
Pinstrup Anderson e Michael Lipton, pessoas-chave nos nossos debates rurais.
92JOHN WILKINSON
desenvolvimento”. Esta pesquisa ofereceu uma oportunidade para
debates detalhados com o Comitê Diretor do HLPE em Amsterdã,
Chennai, Índia, e em Pequim, onde expus os resultados em curso do
Relatório a uma enorme plateia de alunos chineses, e consegui me
apresentar em mandarim.31 Também estive presente numa palestra
proferida por Alain de Jainvry no Departamento de Economia
Agrícola, onde lecionava Huajun Tang, o representante chinês no
Comitê Diretor do HLPE, e fiquei surpreso pela abertura das dis-
cussões naquele momento. A redação final do Relatório foi um pro-
cesso controvertido, já que eu não estava convencido de que os bio-
combustíveis eram a causa exclusiva dos aumentos dos preços das
commodities agrícolas, era mais tolerante com os biocombustíveis
do Brasil derivados de cana-de-açúcar, e pensava que com a rever-
são das metas tanto dos Estados Unidos como da União Europeia
para biocombustíveis, estas seriam menos capazes de causar futu-
ros aumentos de preços. Tais posições enfrentaram dura oposição
dentro da equipe, e foi apenas através das excelentes
,habilidades
de Vincent Gitz que o relatório final foi concluído. Penso que a
evolução subsequente dos mercados de commodities ratificou
31 No meu entusiasmo por tudo (quase) a ver com a China neste período, passei
dois anos com aulas esporádicas em mandarim, mas tive que reconhecer a mi-
nha derrota.
93JOHN WILKINSON
plenamente a minha posição, e, de fato, quando o Relatório apare-
ceu o interesse no tema já estava em declínio.32
O Brasil, como já mencionei, foi um importante promotor
dos biocombustíveis em âmbito global e particularmente dos bio-
combustíveis como estratégia de desenvolvimento para o continen-
te africano, em especial os países lusófonos. No caso específico de
Moçambique, os investimentos previam o desenvolvimento de uma
nova fronteira agrícola tanto para biocombustíveis como para soja.
As organizações da sociedade civil passaram a se interessar bastan-
te por estes desdobramentos, e a Actionaid me contratou para três
estudos, que preparei em 2013-5. O primeiro, Brazilian Cooperation
and Investment in African Agriculture; o segundo, Biodiplomacia do
Brasil na África; e, o terceiro, O Setor Sucroalcooleiro Brasileiro na
Atual Conjuntura Nacional e Internacional. Visitei Moçambique
neste período como parte do acordo entre o CPDA/UFRRJ e a
Universidade de Mondlane, em Maputo, com a ideia de que o
CPDA participaria de um Programa de Doutorado que estava sen-
do preparado. Embora depois não fosse ter qualquer papel no
Programa, a viagem me permitiu realizar um interessante trabalho
de campo entrevistando pequenos produtores e encontrei Mariana
Menezes Santarella Roversi, doutoranda no CPDA, orientada por
Renato Maluf, que estava escrevendo sua tese na região de savana
32 Este período trabalhando no Relatório me colocou em contato próximo com
M.S. Swaminathan, presidente do Comitê Diretor do HLPE à época. Além de ad-
mirar a forma competente e enérgica com que ele presidia as reuniões, tive o
privilégio de visitar os distritos rurais de Chennai, onde a sua notável influência
sobre as comunidades rurais e particularmente organizações de mulheres nas
áreas rurais era evidente.
94JOHN WILKINSON
de Moçambique, focalizando a reação das comunidades tradicio-
nais aos investimentos que estavam sendo feitos lá.
Em 2008, fui convidado por David Kupfer, do Instituto de
Economia da UFRJ e depois do BNDES, para coordenar o com-
ponente agroindustrial de um estudo intitulado “Perspectivas
de Investimentos no Brasil” no médio e longo prazo. O estudo foi
bastante amplo e envolveu pesquisas sobre café, citrus, soja, trigo,
milho, carnes, laticínios e fruticultura. Contratei uma equipe gran-
de, composta por Walter Belik (Unicamp), André Funcke (CPDA),
Gilberto Mascarenhas (CPDA), Eduardo Morais (Unesp), Paulo
Rodrigues F. Pereira (CPDA), Gessuir Pigatto (Unesp), Elson Cedro
Mira (Universidade Estadual de Santa Cruz, Bahia) e Raquel Pereira
de Souza (Unicamp). Os termos de referência demandavam uma
análise dos desafios e das oportunidades globais e nacionais para
estes setores com respeito às mudanças tecnológicas, padrões de
competição, estruturas regulatórias e demanda. Cada setor era
analisado de acordo com a dinâmica global dos investimentos,
tendências para o investimento no Brasil, perspectivas de médio e
longo prazo para investimentos e políticas propostas. O relatório fi-
nal, com cerca de 200 páginas, pode ser acessado em https://www3.
eco.unicamp.br/Neit/images/stories/arquivos/ie_ufrj_sp04_agronego-
cio.pdf. Continha análises bastante ricas dos diversos setores de
commodities, mas suas metas globais foram prejudicadas pela crise
financeira global que ocorreu enquanto a pesquisa estava sendo
realizada e afetou severamente os setores agroindustriais-chave,
dificultando quaisquer previsões de curto e médio prazo para in-
vestimentos. André Funcke aproveitou a sua pesquisa neste projeto
para concluir o seu doutorado sob minha orientação.
https://www3.eco.unicamp.br/Neit/images/stories/arquivos/ie_ufrj_sp04_agronegocio.pdf
https://www3.eco.unicamp.br/Neit/images/stories/arquivos/ie_ufrj_sp04_agronegocio.pdf
https://www3.eco.unicamp.br/Neit/images/stories/arquivos/ie_ufrj_sp04_agronegocio.pdf
95JOHN WILKINSON
O ano de 2008 foi também notável pelo convite que recebi
de Sérgio Schneider para organizar um livro baseado numa sele-
ção dos meus textos, a ser publicado pela UFRGS Editora. Resolvi
me concentrar em textos que escrevera sobre agricultura familiar.
Escolhi dez deles, e o livro foi dividido em três seções, tratando res-
pectivamente dos novos desafios enfrentados pela agricultura fa-
miliar nos anos 1990, das estruturas analíticas da sociologia econô-
mica e teoria das convenções para analisar a agricultura familiar e
do novo conjunto de questões que a agricultura familiar enfrentaria
no novo milênio. O livro foi publicado em 2008, como Mercados,
redes e valores, o título que havia dado ao meu Núcleo de Pesquisas
CNPq. Sérgio Schneider depois me informou que os exemplares
haviam esgotado e, de acordo com Google Academic, o livro até a
presente data tem 290 citações.
Em 2009, publiquei um artigo, “Globalization of Agribusiness
& Developing World Food Systems” (95 citações Google), no Monthly
Review, notável por causa de Huberman, Sweezy e Magdoff, e que
depois seria publicado como capítulo de um livro pela Monthly
Review Press. Este artigo foi uma oportunidade de fazer um ba-
lanço das enormes mudanças que estavam ocorrendo no sistema
alimentar mundial com o crescimento das “economias emergen-
tes”, especialmente os países Brics, como também as implicações
da crise financeira mundial. Embora reconhecesse a dominância
global das empresas transnacionais do Norte, este artigo focou a
mudança no comércio e fluxos de investimento para o Sul e o pa-
pel-chave agora desempenhado pelos países em desenvolvimento
de grande escala, Brasil, China e Indonésia, com enfoque especial
nos dois primeiros. Oferecia uma análise sucinta, mas detalhada,
dos desdobramentos no setor agroalimentar tanto no Brasil como
96JOHN WILKINSON
na China, e mostrou como tão grande número de atores nacionais
como políticas nacionais nestes países estavam modificando a he-
gemonia anteriormente inconteste dos atores globais, e que, em-
bora esses ainda mantivessem a sua dominância, a China especial-
mente estava dando sinais de desenvolver uma estratégia nacional
mais determinada. Nos anos seguintes, eu passaria a focar cada vez
mais no sistema agroalimentar chinês e trabalharia em cima desta
análise inicial em colaboração com diversos alunos e colegas.
Antes disto, todavia, em 2010, fui convidado a participar de
um projeto de pesquisa, Capturing the Gains, coordenado por Gary
Gereffi (Universidade Duke) e Stephanie Barrientos (Universidade
de Sussex e depois de Manchester). Este foi um projeto ambicioso
que cobria todos os continentes e um amplo leque de setores indus-
triais e de serviços. A meta era analisar os efeitos da integração aos
CGVs sobre diferentes atores e para diferentes hipóteses de desen-
volvimento. A novidade especial desta pesquisa era a distinção es-
tabelecida entre os diferentes padrões de upgrading e downgrading
(mobilidade para cima e para baixo) como consequência da inte-
gração em CGVs. Não apenas era reconhecido que downgrading
muitas vezes era associado à participação em CGVs (o nivelamento
por baixo), mas a hipótese era que houve trajetórias contraditórias
com upgrading econômico combinando com downgrading social e
vice-versa. Esta abordagem analítica era especialmente útil na aná-
lise dos diferentes resultados por gênero da participação em CGVs.
Formei uma equipe com meu ex-aluno e agora colega de pesquisa
Gilberto Mascarenhas, e dois alunos de doutorado, André Funcke e
Paulo Pereira, que também haviam trabalhado comigo na pesquisa
PIB-BNDES. Estudamos o setor de hortifruticultura, e isto me
,per-
mitiu revisitar o polo de exportações de Petrolina, que eu estudara
97JOHN WILKINSON
pela primeira vez em 1991, embora tivesse visitado a região mui-
tas vezes enquanto trabalhava pela Secretaria de Agricultura na
Bahia ao final dos anos 1970 e início dos 1980, e estivesse presente
no primeiro leilão de terras realizado pela Codevasf para as áre-
as irrigadas que posteriormente constituiriam o polo de expor-
tações. Produzimos um Relatório: Social and Economic Up and
Downgrading in Brazil’s Hortifruiticulture, que foi publicado ele-
tronicamente como Working Paper 41 no site Capturing the Gains.
Achamos a metodologia muito útil para a condução do trabalho de
campo, mas penso que nossa principal contribuição foi mostrar
como a conjuntura política mais ampla influencia fortemente a di-
nâmica das CGVs, aumentando, no caso do nosso estudo, as con-
dições de negociação dos trabalhadores dentro do clima favorável
provido pela existência de governos do Partido dos Trabalhadores
nesse período.
Durante os anos 2011-2013, passei a ser coordenador do
CPDA. Mencionei anteriormente que fui a coordenador, em 1984,
mas logo depois fui convidado a ser Visiting Fellow na Comissão
Europeia, e o CPDA, em particular Jorge Romano, que assumiu a
posição de coordenador, generosamente possibilitou este tem-
po em Bruxelas. Fui também coordenador do Curso de Mestrado
de Vittorio Marrama nos seus últimos dois anos, período em que
a demanda estava claramente migrando para o nível de doutora-
do. Negociamos para que as bolsas estudantis deste curso fossem
usadas para atrair alunos do continente africano, mas embora ini-
cialmente tivéssemos alunos de alguns países africanos, esta área
nunca se consolidou. Todavia, a pesquisa sobre a África passou as
ser cada vez mais presente no CPDA na temática de segurança ali-
mentar e biocombustíveis, por meio de atividades de cooperação,
98JOHN WILKINSON
promovidas por um ex-aluno, Francisco Sarmento, atuante na
Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Também negociei e coordenei o Programa Doutoral Dinter
com a Universidade Estadual de Santa Cruz – Bahia (Uesc).
Ministramos cursos na Bahia e os alunos passavam um semestre no
CPDA. Uma das minhas orientandas no mestrado e doutorado no
CPDA, Zina Benavides, se tornou professora nesta Universidade.
Ela foi bastante atuante em promover a rede de pesquisa MRV-
CNPq que eu coordenava e, desde então, tem se tornado elo impor-
tante na pesquisa em mercados de qualidade especial nesta região
cacaueira/chocolateira da Bahia. Outro professor, que veio destes
alunos do Dinter, Elson Mira, também participou do projeto de pes-
quisa Perspectivas de Investimento no Brasil (PIB), que coordenei
neste período. Posteriormente, eu iria ajudar a minha colega Débora
Lerrer na organização de outra iniciativa Dinter, desta vez com o IF
Goiano, cujos alunos estão atualmente concluindo suas teses.
Meu período como coordenador coincidiu com negocia-
ções na esfera da Universidade de uma nova estrutura regulatória
para avaliar os programas de pós- graduação, e tivemos o cuidado
em demonstrar as características especiais de um programa inter-
disciplinar de Ciências Sociais. Minhas habilidades de negociação
não eram muito bem aprimoradas para este tipo de debates, e tive
que depender do apoio detalhado das reuniões plenárias do CPDA
para orientação. Lembro -me que as reflexões de coordenadores
anteriores, bem versados nestes debates – Roberto Moreira, Eli de
Fatima Lima, Sérgio Leite e Leonilde Medeiros –, foram contribui-
ções decisivas para mim nestas reuniões.
Durante este período, Regina Bruno era professora visitante
na Universidade Federal em Fortaleza, e assumi a sua disciplina em
99JOHN WILKINSON
Teoria Social, que era obrigatória para alunos do mestrado. Além
de ter sido uma oportunidade agradável para reler as obras clássi-
cas para fins pedagógicos, foi durante esta disciplina que descobri
Social Theory: twenty introductory lectures, livro escrito por Hans
Joas e Wolfgang Knöbl, que usei em paralelo com o livro bem ante-
rior Twenty Lectures, escrito por Jeffrey C. Alexander. Foi por inter-
médio de Hans Joas que tive minha introdução ao pragmatismo e
seu livro, The Creativity of Action, foi de especial importância por-
que se harmonizava com minha preocupação perene com inova-
ção.33 Esta disciplina também me proporcionou contato com um
ano inteiro de mestrandos num momento em que estavam num
alto nível de agitação que levaria à primeira greve dos nossos alu-
nos de pós- graduação, criando um clima um tanto tenso ao final do
meu mandato. Que me lembre, decidimos suspender as aulas, que
teve o efeito de proteger os alunos de retaliações posteriores.
Foi no meio do meu período como coordenador que a pri-
meira oportunidade de desenvolver um trabalho sobre a China
apareceu durante a Reunião de Cúpula Rio + 20, no Rio de Janeiro,
em 2012. Ministrei uma palestra em uma das reuniões paralelas so-
bre China na PUC-Rio e, após a reunião, fui abordado por alguém
da Austrália com uma proposta de redigir a minha apresentação
para publicação. Alguns meses depois, esta mesma pessoa gentil-
mente me lembrou e convidei Valdemar Wesz Junior, doutorando
no CPDA sob a orientação do meu colega Sérgio Leite, para escre-
ver o artigo comigo. Wesz havia expressado interesse em completar
33 Curiosamente, descobri depois que Hans Joas fora supervisor de Jens Beckert,
que me aceitou no Max Planck em 2017, e há muito tempo vem sendo influência
fundamental na minha pesquisa e ensino em sociologia.
100JOHN WILKINSON
um ano sanduíche na Itália, e eu o coloquei em contato com meu
colega de pesquisa de muitos anos atrás, Roberto Fanfani, em
Bolonha. De fato, mantivemos contato no decorrer dos anos, espe-
cialmente durante o período de Vittorio Marrama, e eu fui convi-
dado como palestrante numa reunião que Fanfani organizara para
lançar uma publicação sobre o perfil da agroindústria da região
de Bolonha. Ele também participara da reunião de biotecnologia
organizada por Maria Fonte e Pascal Byé em Roma, em 1992. Por
intermédio de Roberto Fanfani, fui convidado a ser integrante do
Conselho Editorial da Rivista Economia Agro-alimentare pelo seu
editor-chefe Maurizio Canavari.
Valdemar Wesz Junior aceitou o convite e rapidamente redi-
gimos um artigo útil comparando as trajetórias de longo prazo do
Brasil e China e suas relações de agronegócio num artigo intitulado
“Underlying Issues in the Emergence of China and Brazil as Major
Players in the New South-South Trade and Investment Axis”, que foi
publicado no International Journal of Technology Management and
Sustainable Development, em setembro de 2013.34
Naquele ano, a Initiativa BRICS para Estudos Agrários
Críticos, (Bicas), uma rede de pesquisadores sobre questões agrí-
colas dentro da estrutura dos países Brics, fez uma convocação
para uma concorrência por pequenas subvenções, e preparei uma
proposta juntamente com Wesz Jr. e com Anna Lopane, aluna de
34 Em novembro de 2014, fui palestrante convidado nos Diálogos de Inovação:
Brasil-China, organizado pelo Ibrach no Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro. Em
2015, fui convidado para fazer uma apresentação no Seminário Internacional so-
bre China, organizado pelo Ibase no Rio de Janeiro.
101JOHN WILKINSON
mestrado sob minha orientação no CPDA35. Conseguimos uma
premiação que nos deu ânimo para preparar uma avaliação mais
analítica das relações Brasil-China. Identificamos quatro estraté-
gias principais na relação da China com o Brasil e, particularmente,
com o seu complexo de soja. A China afrouxara seletivamente as
suas políticas de autossuficiência e havia tomado a decisão de
depender das importações de soja na rápida transição para uma
dieta urbana com proteína animal. Ao mesmo tempo, o governo
chinês queria beneficiar a soja na China. A partir de
,2003, a produ-
ção brasileira de soja expandiu rapidamente, como também a por-
centagem das suas exportações, então direcionados maciçamente
para a China. A insistência em exportações na forma de grãos au-
mentou a flexibilidade da China com respeito à sua demanda, seja
por óleos ou ração. Ainda assim, a China estava criando uma situa-
ção de dependência com relação a um ingrediente-chave das novas
tendências alimentares.
Ao analisar a presença da China no Brasil e nos países do
Cone Sul, identificamos uma estratégia inicial de adquirir terras
para o controle direto da produção de soja. Estas tentativas e as de
outros atores privados neste e em outros setores levaram os gover-
nos do Brasil e Argentina a reativarem controles sobre compras de
terras por estrangeiros, que estavam se tornando uma questão de
preocupação global, batizada como landgrabbing. Uma segunda
estratégia visava assegurar contratos de longo prazo com governos
35 A supervisão da Anna Lopane me trouxe de volta ao setor pesqueiro. Ela es-
creveu uma excelente dissertação, “Bacalhau no Brasil: um mercado sob o im-
pacto da globalização” (2014), que combinava a análise das dinâmicas de consu-
mo com uma abordagem CGV, e que também incluiu uma discussão original da
crescente influência da China neste mercado.
102JOHN WILKINSON
estaduais para a aquisição de grandes parcelas da safra de soja, mas
foi também frustrada. Uma estratégia mais indireta foi investir em
infraestrutura de transportes e portos, o que facilitaria a expan-
são contínua da produção e baixaria os custos. A estratégia final,
que parece estar avançando satisfatoriamente, era expandir o seu
controle direto sobre a cadeia de produção de soja ao celebrar pré-
-contratos com os sojicultores (originating) e desafiar frontalmente
os quatro maiores traders globais: Archer Daniel Midland (ADM),
Bunge, Cargill e Dreyfus (o grupo ABCD), principalmente por meio
de seu trader estatal, a Cofco, cuja parcela da cadeia de soja agora
a posiciona no patamar dos líderes. A aquisição da Syngenta pela
China Chem, outra empresa estatal, confere à China uma posi-
ção decisiva também no setor a montante na cadeia. Nosso artigo,
“Brazil and China, the Agribusiness Connection em the Southern
Cone Context”, foi publicado em 2016, na recém -lançada revis-
ta Third World Thematics, e depois foi escolhido para publicação
como capítulo em Rural Transformations and Agrofood Systems,
B.M. McKay, R. Hall e Juan Liu (eds.), Routledge, 2018.
Em 2016, aceitei Fabiano Escher para um pós- doutorado no
CPDA. Eu já havia participado tanto na qualificação como na banca
final do seu doutorado, orientado por Sérgio Schneider, no PGDR,
em Porto Alegre. Sua tese continha uma ousada comparação dos
sistemas agroalimentares do Brasil e da China, dentro de uma pers-
pectiva de regime alimentar e polanyiana. Escher havia passado
um ano sanduíche na China e consegui incluí -lo na Rede Brasil-
China Network, coordenada por Anna Jaguaribe, com uma bolsa
de um ano de duração que, infelizmente, não pode ser renovada.
Durante aquele ano, realizamos pesquisa de campo sobre a pre-
sença chinesa na soja brasileira e contribuímos com um capítulo,
103JOHN WILKINSON
“Causas e implicações dos investimentos chineses no agronegó-
cio brasileiro”, para o livro Direction of Chinese Global Investments
and Implications for Brazil, 2018, organizado por Anna Juaguaribe.
Além disto, Fabiano Escher apresentou o nosso trabalho na 4a
Conferência Bicas, em Moscou, e eu o apresentei em Berlim, em
2018, na 8a Conferência Anual de Economia Política. Também fiz
uma exposição separada na Universidade Friedrich-Schiller, Jena,
Alemanha, sobre “Brazil China Relations through the Lens of the
Soy Economy”, em novembro de 2017.
Uma questão-chave por trás da expansão da economia de
biocombustíveis, dos investimentos globais chineses no agroali-
mento e dos movimentos de preços para commodities agrícolas na
esteira da crise financeira global, foi a identificação do que parecia
ser um salto em novos tipos de investimentos fundiários, batizados
pela ONG Grain com o termo landgrabbing, e que rapidamente se
tornaram objeto de monitoramento e debate. Dedicamos um capí-
tulo a esta questão no HLPE, “Biofuels and Food Security Report”,
que oferece um panorama detalhado da literatura e dos debates.
Envolvi -me pela primeira vez com esta temática quando fui
convidado, em 2010, para produzir um estudo sobre landgrabbing
no Brasil, para uma pesquisa que estava sendo desenvolvida pela
FAO América Latina, à época liderada por Graziano da Silva. A FAO
havia pesquisado landgrabbing na África à luz dos debates provo-
cados por este tema, com a coordenação de Lorenzo Cotelo et al.,
em 2009, e que depois revisamos no Relatório de Biocombustíveis
e Segurança Alimentar HLPE 2013. O objetivo principal era ava-
liar até que ponto as mesmas tendências poderiam ser observadas
nos países da América Latina e Caribe. Cerca de 17 relatórios por
país foram contratados e, para a FAO, isto marcou um retorno às
104JOHN WILKINSON
questões de propriedade de terra que não haviam sido investigadas
com seriedade desde os estudos históricos do Cida, nos anos 1960
e 1970, coordenados por Solon Barraclough.
Convidei Bastiaan Reydon, perito em questões agrárias na
Universidade de Campinas, e Alberto di Sabbato, da Universidade
Federal Fluminense, perito em dados dos censos agrários que tam-
bém trabalhara com Carlos Guanzirolli na promoção do Pronaf nos
anos 1990, para se juntarem a mim neste projeto. Durante o pro-
jeto, também aproveitamos os conhecimentos de Rudi Rocha, que
havia trabalhado comigo na pesquisa nas empresas de processa-
mento de alimentos em países em desenvolvimento, para destrin-
char os dados do Banco Central sobre investimentos estrangeiros.
Os termos da pesquisa foram discutidos a fundo e os resultados
debatidos em reuniões dos líderes das equipes em Santiago. Nas
etapas finais da pesquisa, peritos também foram convidados para
discutir os Relatórios, e entre estes estavam David Goodman e Jun
Borras, editor chefe do Journal of Peasant Studies e um intelectual
orgânico líder no Movimento Via Campesina. Numa etapa poste-
rior, Jun seria um personagem central da organização e publicação
dos resultados.
Nestas discussões, o conceito de landgrabbing foi sujeito a
um intenso debate e foi decidido que deveríamos considerar as
tendências mais amplas de transformações agrárias envolvendo
concentração fundiária, padrões regionais de investimento fundi-
ário, os diferentes tipos de atores envolvidos e os possíveis impac-
tos de novos investimentos na terra e na agricultura, seja de uma
perspectiva produtiva ou ambiental. A FAO, neste período, esta-
va ativamente envolvida em estabelecer os termos para a adoção
de Diretrizes Voluntárias para Investimentos Fundiários a serem
105JOHN WILKINSON
negociados com atores privados e Instituições Internacionais de
Desenvolvimento e Financiamento. Iríamos também tratar de for-
ma detalhada destas questões e iniciativas similares no Relatório
HLPE sobre Biocombustíveis.
Nosso relatório para a FAO tratou sistematicamente da histó-
ria das relações agrárias no Brasil, da evolução de políticas públicas
e da consolidação da estrutura jurídica e institucional governando
transações imobiliárias. Realizou uma análise detalhada das dife-
rentes fontes de informação sobre concentração fundiária (Incra,
IBGE), e investimentos (Registros de Imóveis, dados do Banco
Central). Uma tipologia de investimentos baseados em fatores-cha-
ve de motivação foi elaborada, na qual distinguimos: 1) investimen-
tos fundiários para expandir a produção dentro do mesmo setor; 2)
investimentos para diversificar em direção a atividades agrícolas
sinergéticas; 3) investimentos em commodities agrícolas não tra-
dicionais, especialmente biocombustíveis; 4) firmas
,agrícolas es-
pecializadas que transformam terras de fronteira em propriedades
agrícolas; 5) investimentos fundiários por parte de Estados sobe-
ranos ricos em capital, mas pobres em recursos; 6) investimentos/
Fundos Especulativos baseados em pensões e/ou capital privado;
7) investimentos visando aos serviços ambientais. Esta tipologia foi
complementada por um relato detalhado das tendências de inves-
timento nos principais setores de commodities agrícolas – cana-de-
açúcar/álcool; soja; madeira; pecuária; e outras atividades.
Nosso relatório foi traduzido para o espanhol e publicado
como capítulo na publicação FAO, Dinamica del Mercado de la
Tierra en America Latina y el Caribe – concentración y estranjeri-
zación, organizado por Fernando Soto Baquero e Sergio Gomez,
em 2012. Fui convidado depois por Jun Borras para ser parte de
106JOHN WILKINSON
uma equipe editorial, juntamente com Cristobal Kay e Sergio
Gomes, que produziria um número especial do Canadian Journal
of Development Studies, v. 33, n. 4, 2012. Fizemos uma seleção
dos relatórios da FAO, solicitamos artigos baseados nos relatórios
em inglês, revisamos o inglês e organizamos os textos. Além dis-
to, escrevemos uma versão resumida do nosso Relatório em inglês
para inclusão no Journal. O artigo introdutório foi escrito conjun-
tamente por Jun Borras, Cristobal Kay, Sergio Gomes e por mim:
“Landgrabbing and Global Capitalist Accumulation – key features
in Latin America”, que até agora recebeu 4.266 visualizações e 91
citações. Nosso artigo foi publicado com o título “Concentration
and Foreign Ownership of Land in Brazil in the Context of Global
Landgrabbing”, por mim, Bastiaan Reydon e Alberto Di Sabbato, e
até o presente já recebeu 232 citações36.
Em 2012, eu e minha colega Debora Lerrer, recentemente
contratada para o CPDA à época, preparamos uma proposta para
a Land Deal Politics Initiative (LDPI), que foi aprovada, e desen-
volvemos uma pesquisa dos investimentos fundiários estrangeiros
no Brasil no setor florestal e papeleiro, focalizando o líder global
sueco-finlandês Stora Enso, nos estados da Bahia e Rio Grande do
Sul. De acordo com algumas interpretações, investimentos estran-
geiros neste setor, especialmente em regiões de fronteira, foram
também um fator importante na reativação por parte do Governo
36 Em novembro de 2015, fui convidado a falar sobre este tema no III Seminario
Internacional “Cambio Agrario en America Latina: procesos comparados”, IDEAS
I UNSAM, Buenos Aires, Argentina. No ano seguinte, fui palestrante no Taller
“(Neo)Extractivismo en America Latina. Posibilidades, Limites y riesgos, discu-
tindo este tema no contexto da expansão do setor de cana-de-açúcar/etanol no
Brasil. UBA. 31/03-01/04/2016. Argentina.
107JOHN WILKINSON
brasileiro de medidas para controlar investimentos imobiliários
estrangeiros. O trabalho de campo de Debora ofereceu rico mate-
rial sobre os conflitos sociais e os movimentos de oposição provo-
cados pelos investimentos da Stora Enso. Nossa pesquisa também
mostrou a importância de identificar e trabalhar os conflitos e as
oposições dentro do aparato estatal nas instâncias locais, estaduais
e federal, o que significa que mesmo as mais poderosas transnacio-
nais nem sempre podem alcançar apoio automático nos diferentes
níveis do aparato estatal. Nossa pesquisa foi originalmente publi-
cada em inglês pelo Land Deal Politics Initiative (LDPI) em colabo-
ração com o Institute of Social Studies (ISS), em Haia, e o Institute
of Development Studies, na Universidade de Sussex, em 2013. Uma
versão revisada em português foi publicada posteriormente na
Revista do CPDA, Estudos Sociedade e Agricultura, em 2016.
Já mencionei que um dos meus arrependimentos foi não
ter publicado o estudo do setor de carnes que escrevi quando
coordenava o segmento de agroindústria da pesquisa de 1994,
Competitividade da indústria brasileira, realizado pela rede con-
junta de Campinas/UFRJ. A pesquisa que eu havia feito anterior-
mente sobre contratos de integração também tratou do então
emergente setor de carnes brancas. Dois anos após completar este
estudo, Paulo Tigre, do Instituto de Economia/UFRJ, me convi-
dou a reunir uma equipe para com ele estudar a indústria de car-
nes de uma perspectiva mais tecnológica, para o Senai. Convidei
meus alunos Fabio Ramos, Francisco Sarmento, e meu colabora-
dor no setor de processamento de alimentos, Rudi Rocha. Juntos
108JOHN WILKINSON
realizamos a pesquisa, que envolveu uma reunião interessante com
Mario Batalha37 que, à época, estava desenvolvendo um intenso
programa de estudos do sistema agroalimentar, usando o foco da
cadeia agroalimentar com uma orientação nos custos de transação,
na Universidade Federal de São Carlos, São Paulo. O nosso estudo
foi publicado pelo Senai, Série Estudos, Brasília, em 2006 como A
indústria de carnes no Brasil: dinâmica econômica e tecnológica,
organizado por Paulo Tigre. Em outubro de 2008-10, na pesquisa
do PIB-Brasil, mencionado acima, cujo componente agroindustrial
eu de novo coordenei, o trabalho de campo para o estudo de carnes
foi conduzido por Gessuir Pigatto (Unesp), que fez um excelente
trabalho e atualizou todas as informações sobre fusões e aquisições
de empresas.
O setor de carnes, particularmente carnes vermelhas, vem
sendo indissociavelmente vinculado a todos os debates centrais
deste período, seja com landgrabbing, China, a extensão da fronteira
agrícola no Brasil, mudança climática ou a ameaça à Amazônia. Ao
mesmo tempo, o crescimento da indústria de carnes vermelhas no
Brasil no período recente tem sido um fenômeno marcante, com
empresas familiares regionais passando a ser players globais num
espaço de duas gerações. Políticas para a consolidação da com-
petitividade internacional de setores estratégicos receberam alta
prioridade na Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP) do
37 Mario Batalha convidou -me para integrar as bancas de diversas das disser-
tações e teses de alunos seus, e foi também em São Carlos que conheci Roberto
Grun, um dos sociólogos econômicos mais criativos do Brasil e que coordenou
o primeiro grupo de Sociologia Econômica nas reuniões da Anpocs, cujos in-
tegrantes incluíram, além de mim, Ricardo Abramovay e Cécile Raud-Mattedi,
tristemente falecido.
109JOHN WILKINSON
Governo Federal para 2008, e o BNDES passou a ser o instrumento
principal para promover a competitividade das empresas líderes
nestes setores. Em 2014, fui convidado por David Kupfer, que havia
coordenado o estudo do PIB, para realizar um estudo da megaem-
presa frigorífica JBS,38 e para avaliar a contribuição do BNDES via
BNDES-Par, sua divisão de investimentos. Esta foi uma oportuni-
dade notável para mim, e realizei longas entrevistas com ambos os
presidentes e a maioria dos diretores da JBS. Visitei a maior instala-
ção frigorífica da América Latina, com capacidade de abate de dois
mil animais por dia e me reuni com líderes de associações de pecu-
aristas, outras empresas de destaque no setor e com representantes
da Embrapa dedicados ao setor de carnes.
A rápida concentração da indústria de carnes vermelhas,
que levou ao fechamento em grande escala de abatedouros lo-
cais e regionais, era amplamente condenada, especialmente por
pecuaristas que se sentiam ameaçados pelo controle de um mo-
nopólio. No entanto, à luz da nossa análise anterior sobre o pa-
pel hegemônico do varejo de grande escala, não estava claro para
mim que a indústria iria poder facilmente transformar esta con-
centração em poder econômico numa redução de preços aos pe-
cuaristas. A demanda de exportação estava aumentando em 25%
ao ano no período anterior à crise financeira global e a demanda
doméstica estava em alta como resultado das políticas redistribu-
tivas do Governo Lula. Do lado positivo, uma consequência desta
concentração foi uma queda brusca nos
,abatedouros clandestinos
38 Paulo Tigre, integrante da rede de pesquisas IE-Unicamp/IE-UFRJ, que havia
me convidado para trabalhar com ele no estudo de carnes do Senai, também foi
convidado para estudar a empresa Totvs ao mesmo tempo.
110JOHN WILKINSON
com pouca ou nenhuma fiscalização. Um segundo resultado posi-
tivo foi um aumento na capacidade de monitorar a origem do gado,
e o diretor de sustentabilidade da JBS, que anteriormente fizera
parte do mundo das ONGs, havia implementado um sistema de
compras que automaticamente excluía fornecedores que tinham
problemas com a Funai, Incra e Ibama. Eu, há muito tempo, vinha
sendo favorável à apropriação “doméstica” do “valor agregado” nas
cadeias agroalimentares e, desde meu envolvimento com a pes-
quisa “Competitividade da Indústria Brasileira”, em 1994, apoiava
o fortalecimento de atores domésticos como alternativa à transna-
cionalização, além de ser também favorável à internacionalização
das principais empresas brasileiras.
O apoio dado pelo BNDES à JBS e a todo o setor de carnes
me parecia perfeitamente coerente e alinhado com a política do
Governo Federal. O apoio específico oferecido pelo BNDES-Par
para a internacionalização da JBS no mercado dos Estados Unidos
ocorreu num momento em que a empresa havia recentemente ad-
quirido capital na Bolsa de Valores através de uma IPO, e era alta-
mente improvável que financiamentos mais significativos pudes-
sem ser obtidos desta forma. A avaliação do desempenho da JBS
nas suas plantas adquiridas há pouco tempo nos Estados Unidos
era também bastante positiva, permitindo que a empresa aboca-
nhasse uma fatia decisiva do mercado estadunidense do qual fora
tradicionalmente excluída, e tivesse acesso a outros mercados, par-
ticularmente no Pacífico, que eram fechados ao mercado brasileiro.
Dois setores agroalimentares sofreram pesadamente no Brasil com
a crise financeira global – o setor de cana-de-açúcar/álcool e o setor
de carnes –, e nos anos posteriores à crise o BNDES foi decisivo em
reestruturar a competitividade do segundo setor.
111JOHN WILKINSON
Hoje, encaro a indústria de carnes não sob a perspectiva da
competitividade nacional (a JBS posteriormente tentaria estabele-
cer a sua sede na Irlanda e amanhã poderia bem ser adquirida pelo
capital estrangeiro), mas com foco no consumo e saúde, bem-estar
animal e o meio ambiente/mudança climática. Com base em to-
dos estes critérios, a prioridade parece ser uma redução radical do
consumo de proteína animal.39
Em 2015, fui convidado a participar do seminário organiza-
do por Gilles Allaire e Benoit Daviron, para celebrar o 20o aniver-
sário de publicação do livro La Grande Transformation, que tanto
me impressionara no meu tempo de doutorado na França no ano
de sua publicação, em 1995. Não me foi possível participar, mas fui
convidado a escrever um capítulo no livro dos anais deste semi-
nário. Discuti a proposta com David Goodman e decidimos que
era uma boa oportunidade para sistematizar a visão crítica que
havíamos desenvolvido sobre a teoria dos “regimes alimentares”,
associada acima de tudo ao trabalho de Phil McMichael e Harriet
Friedmann que tinha servido como referência para toda a comu-
nidade de estudos rurais com “orientação de economia política”.
Isto coincidiu com um semestre em que eu estava ministrando
39 Retrospectivamente, penso que minha tendência, conforme já mencionado,
de usar um chapéu de “economia política” ao analisar as tendências dominantes,
deixando meu chapéu de “sociologia econômica” para os mercados de qualidade
especial, cegou -me quanto aos efeitos da acumulação rápido de capital de em-
presas que são essencialmente empreendimentos familiares, os quais, mesmo
quando lançados na Bolsa de Valores, ainda mantêm sua participação majoritá-
ria. Neste contexto, os investimentos, o valor acionário da firma e a riqueza patri-
monial não são facilmente separados, apesar de todos os riscos que isto implica.
A mistura perniciosa e promíscua dos interesses do setor privado, do Executivo,
e do Legislativo, que informam a política industrial no Brasil agravam ainda mais
essas ambiguidades.
112JOHN WILKINSON
uma disciplina em história econômica no âmbito de graduação, e
aproveitei a oportunidade para mergulhar nos debates da “grande
divergência”, associada ao trabalho de Kenneth Pomeranz e ou-
tros. Ao mesmo tempo, voltamos aos nossos estudos da agricultura
europeia, que havíamos investigado anos atrás para From Farming
to Biotechnology. Os resultados foram publicados primeiro como
um capítulo em Transformations Agricoles et Agroalimentaires: en-
tre ecologie et capitalisme, em 2017, e depois numa versão estendi-
da para publicação em inglês em Ecology, Capitalism and the New
Agricultural Economy: the second great transformation, que apare-
ceu em 2018.
O cerne do nosso argumento era que a estrutura de regimes
alimentares fora focada com demasiada exclusividade numa po-
larização simplificada Norte-Sul, em que o Norte fora identificado
com os Estados Unidos e suas empresas alimentares transnacionais.
Argumentamos que, na Ásia, o Japão vinha desenvolvendo seu pró-
prio regime alimentar desde o final do século XIX. Argumentamos
ademais que a resposta do continente europeu ao mercado mun-
dial de commodities agrícolas que emergiu no século XIX, após um
rápido flerte com o livre comércio, foi caracterizada fundamental-
mente pelo protecionismo e uma defesa da agricultura familiar e
do desenvolvimento local/regional/rural. Esta orientação persis-
tiria na Política Agrícola Comum (PAC), após a Segunda Guerra
Mundial, e ajuda a explicar a força de movimentos e políticas opos-
tas ao modelo agroalimentar “dominante”, que são difíceis de en-
tender dentro da visão de “regimes alimentares”. No período mais
recente, as economias emergentes, particularmente a China, não
só reorientaram o comércio e investimento para um eixo Sul-Sul,
como também geraram as suas próprias transnacionais que estão
113JOHN WILKINSON
em posição para confrontar os atuais líderes do sistema alimentar
internacional. Um entendimento dos desdobramentos atuais, ar-
gumentamos, exigirá uma apreciação mais pluralista dos regimes
alimentares desde a segunda metade do século XIX.40
Ao final de 2016, Luciano Coutinho, João Carlos Ferraz, David
Kupfer e a maior parte da equipe de pesquisas IE/Campinas e IE/
UFRJ que estivera em ação periodicamente desde 1993-1994, inicia-
ram um grande projeto de pesquisa financiado pela Confederação
Nacional da Indútria, (CNI) sob minha coordenação mais uma vez
do segmento da agroindústria e, especialmente, da indústria ali-
mentar.41 Esta pesquisa foi intitulada “Projeto Indústria 2027. Riscos
e Oportunidades para o Brasil,diante de Inovações Disruptivas” e
inspirou -se em relatórios da Alemanha, dos Estados Unidos e da
China, todos vislumbrando uma nova revolução industrial no hori-
zonte. Dado o foco na indústria alimentar, tanto globalmente como
no Brasil, e a necessidade de trabalhar com tabulações especiais
de dados da Pesquisa de Inovação, (Pintec), do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística, (IBGE), o levantamento de inovação
40 Em 2016, fui convidado por Sérgio Schneider e Paulo Niederle para palestrar
sobre este tema aos alunos e colegas do PGDR, Porto Alegre, o que gerou uma
animada discussão.
41 O que a posteriori parece ter sido uma preparação para esta pesquisa, fui pales-
trante convidado para o Seminário “La tierra para quien se conecta? Agricultura e
Digitalización en América Latina y el Caribe, na Argentina, em setembro de 2016,
organizado conjuntamente pela Friedrich Ebert Stiftung e Nueva Sociedad, onde
discorri sobre o tema da agenda para o desenvolvimento tecnológico da agri-
cultura latino-americana. Foi então que me encontrei outra vez com José Maria
Silveira (Unicamp), especialista na indústria de sem*ntes e produtos químicos
,e mais geralmente na inovação e tecnologia, que me convidaria em 2018 ao
Sober, organizado em Campinas, onde pude apresentar os resultados do Projeto
Indústria 2027.
114JOHN WILKINSON
brasileira que usava a mesma metodologia do Levantamento de
Inovação na União Europeia, sobre o qual ela já trabalhara, convi-
dei mais uma vez Ruth Rama a trabalhar comigo nesta pesquisa.42
Além disto, já havia protocolado um pedido para uma segunda li-
cença de pós- doutorado no Instituto Max Planck para Estudos em
Sociedades (MPIfG), em Colônia, Alemanha, a partir da segunda
metade de 2017, para trabalhar na contribuição da Alemanha à so-
ciologia econômica, e não queria atrasar a minha licença.
Esta foi uma pesquisa interessantíssima para se trabalhar,
pois me levou de volta a minha/nossa preocupação original com
a natureza da inovação no sistema agroalimentar e, em particular,
me permitiu reavaliar as relações entre biotecnologia e informática
que eu debatera primeiramente com Raul Green nos anos 1980 e,
desde então, periodicamente, com David Goodman e comigo mes-
mo. A rastreabilidade sempre foi uma questão crucial nos debates
sobre a qualidade dos alimentos e isto levou a uma crescente incor-
poração da informática em todas as etapas da cadeia de produção-
consumo. Numa visita à IG de queijo “Parmigiano Reggiano”, na
Itália, fiquei impressionado com o grau em que a tecnologia da in-
formação fora incorporada ao controle deste sistema de produção
“artesanal”. Em 2011, Ruth Rama e eu fomos convidados por Mônica
Rodrigues, ex-aluna de Ana Celia Castro e agora pesquisadora na
Ecla/Cepal, para realizar uma pesquisa sobre a adoção e difusão de
tecnologia da informação na agricultura latino-americana. Nossa
42 Ruth Rama é uma pesquisadora proeminente da indústria alimentar e,
enquanto para a maioria dos analistas a indústria alimentar é considerada, jun-
tamente com outros setores, “tradicional”, o seu trabalho tem demonstrado o seu
papel-chave como usuária de inovações e como local para a aplicação de inova-
ções vindas de um amplo leque de fontes de ciência e tecnologia.
115JOHN WILKINSON
pesquisa resultou num capítulo, “ICT Adoption and Diffusion
Patterns in Latin American Agriculture”, no volume Information
and Communication Technologies for Agricultural Development in
Latin America (2011). Tirei duas conclusões desta pesquisa: que
o telefone celular estava transformando o acesso dos agricultores
às informações e aos mercados, e que a Tecnologia da Informação
estava dando aos agricultores em grande escala um conhecimento
íntimo das suas megapropriedades, que anteriormente fora uma
vantagem decisiva dos pequenos agricultores na forma de conheci-
mento tácito e experiência prática.
A meta do “Projeto Indústria 2027” era produzir avalia-
ções de curto e médio prazo sobre a adoção e difusão de oito
grupos de tecnologias “disruptivas”: a Internet das Coisas (IoT),
Produção Inteligente, Inteligência Artificial, Tecnologia de
Redes, Biotecnologia, Nanotecnologia, Materiais Avançados e
Armazenamento de Energia. Curiosamente, todas estas tecnolo-
gias estavam sendo estudadas pelo Programa Fast da Comissão
Europeia na qual trabalhei em 1986-7, com a ausência da Internet
das Coisas, ou mesmo de qualquer internet. Estas tecnologias se-
riam estudadas com relação a dez sistemas industriais, cada um
com um foco setorial especial. No nosso caso: a agroindústria e a
indústria de produtos alimentícios. Foram contratados relatórios
com especialistas em todos os oito grupos como insumos para
orientar a nossa análise industrial.
Nosso relatório foi publicado on-line, como um volume se-
parado, e pode ser acessado, assim como os outros estudos, no site
http://www.portaldaindustria.com.br/cni/canais/industria-2027/siste-
mas-produtivos/, em Publicações – Estudo do Sistema Produtivo:
Agroindústrias, Brasília, 2018. O estudo envolveu uma análise
http://www.portaldaindustria.com.br/cni/canais/industria-2027/sistemas-produtivos/
http://www.portaldaindustria.com.br/cni/canais/industria-2027/sistemas-produtivos/
116JOHN WILKINSON
detalhada dos dados Pintec brasileiros; entrevistas com os atores
principais – players estabelecidos, novas firmas agrotec e grupos
de agricultores pioneiros na adoção de tecnologias; uma revisão da
literatura acadêmica brasileira e internacional; periódicos especia-
listas, sites e literatura cinzenta.
O trabalho nesta pesquisa tem me levado a uma série de con-
clusões (sempre provisórias e abertas à qualificação ou mesmo
contradição), que certamente beneficiarão estudos posteriores nos
anos vindouros. Em primeiro lugar, passei a ter a convicção de que
uma revolução, ou talvez uma série de revoluções complementares/
contraditórias/sobrepostas, está de fato em andamento no sistema
agroalimentar global. Como corolário, creio que o Brasil está mal
posicionado para se beneficiar destas transformações porque ainda
é muito rico em todo tipo de recursos naturais, e atualmente o que
impulsiona as inovações em alimentos é a sua percebida escassez.
Em termos do debate tecnológico, há claramente uma onda de
inovação envolvendo a biotecnologia, que reúne a biologia sintética
e a nanotecnologia, que hoje está baseada em técnicas radicalmen-
te mais baratas e mais direcionadas para manipular o genoma, tais
como a técnica de edição de genes, CRISPR (cas9), de uma forma
que muitas vezes pode contornar a necessidade de incorporação
de genes exógenos. Estes avanços, por outro lado, foram possibi-
litados pelo desenvolvimento de análises de grandes volumes de
dados (Big Data Analytics) com base em algoritmos que envolvem
aprendizado com máquinas e inteligência artificial. Neste sentido,
as biotecnologias ficaram mais assimiladas aos sistemas de infor-
mação e deixaram de ter uma existência separada.
Na nossa análise, desenvolvida em From Farming to
Biotechnology, a natureza como sistema biológico foi identificada
117JOHN WILKINSON
como o desafio central aos avanços tecnológicos no sistema agroa-
limentar. A dinâmica de inovação, portanto, foi vista da perspectiva
de atores que lidam diretamente com os mecanismos biológicos.
De um ponto de vista bastante esquemático, as recentes inovações
no sistema agroalimentar podem ser divididas em três fases. Na
primeira, o sistema público de pesquisa agropecuária foi o prin-
cipal propulsor, com base na inovação genética de variedades de
sem*ntes que respondiam rapidamente a insumos hídricos e quí-
micos, e que inauguraram a “Revolução Verde”. A segunda fase
também tinha na genética o seu eixo, mas foi liderada a montante
pelas empresas privadas de sem*ntes e produtos químicos com a
introdução de sem*ntes OGM em sinergia com novos sistemas de
produção (plantio direto). Hoje, estamos vendo uma nova onda de
inovação agroalimentar, mas agora promovida por atores urbanos
do estilo Vale do Silício, apoiados por capital de risco, cujo progra-
ma de pesquisa não está mais baseado no agro, mas exclusivamen-
te no alimento e, mais especificamente, nos desafios postos pelo
alimento num contexto global urbano. Tais atores são uma exten-
são da comunidade de informática, e suas tecnologias preferidas
são Big Data, algoritmos, aprendizado com máquinas, inteligência
artificial e sistemas de distribuição baseados em protocolos de con-
fiança (blockchain). O biomundo passa a ser parte deste universo e,
nesta perspectiva, fica cada vez mais possível pensar no contexto
urbano como o ambiente “natural” para a produção de alimentos.
Sistemas alimentares de circuito curto e locais passam a ser vistos
como uma alternativa ao sistema agroalimentar dominante basea-
do em cadeias globais de valor. Atualmente é possível vê -los sendo
reproduzidos cada vez mais no contexto urbano.
118JOHN WILKINSON
A internet e aplicativos de smartphone subvertem muitos dos
sistemas de produção e de distribuição que mantinham
,os atores
tradicionais sob controle e confirmam a fragilidade da indústria ali-
mentar que já havíamos identificado no nosso artigo sobre a indús-
tria alimentar publicada na Sociologia Ruralis em 2002. Em nossa
avaliação dos desdobramentos globais, identificamos o surgimen-
to de uma nova geração de empresas alimentares, cuja estratégia
tem sido desafiar diretamente o que agora está sendo chamados
de empresas alimentares “patrimoniais”, que têm dominado a in-
dústria alimentar há mais de cem anos. Mesmo quando as líderes
tradicionais reagem ao adquirir estas novas firmas, geralmente elas
são forçadas a manter a sua identidade e gestão separadamente.
Relações diretas entre uma miríade de novos atores que fornecem
e consomem os alimentos vão transformar o varejo em formas que
apenas agora estamos começando a discernir; e transformarão a
produção também, na medida em que as impressoras 3D se tornem
tão comuns quanto as micro-ondas e a energia alternativa viabilize
economicamente as novas iniciativas locais.
Se devemos contemplar isto como visão distópica ou utópica
é uma questão em aberto. O que não se dúvida é que as tendências
dominantes de inovação estejam indo nesta direção. Uma preo-
cupação central da agenda de inovação é a busca de alternativas
à dieta tradicional de proteína animal, alternativas que assumem
várias formas e recebem apoio da força inesperada das práticas de
consumo flexitarianas, vegetarianas e veganas. Globalmente, as
políticas públicas estão agora caminhando timidamente nesta di-
reção. Uma agenda de pesquisa inteiramente nova está se abrindo
nesta questão.
119JOHN WILKINSON
Na esteira do fenômeno landgrab e da identificação do papel
de liderança dos fundos de investimento e soberanos não tradicio-
nalmente ligados ao setor de agroalimentos, estes novos investi-
mentos em terras geralmente têm sido assimilados ao fenômeno
mais amplo de financeirização, que é visto como característico da
fase atual do desenvolvimento. Neste sentido, o caráter especula-
tivo dos investimentos fundiários em larga escala tem assumido o
primeiro plano. Embora não contestando esta linha de análise, nos-
sa pesquisa mostrou como a revolução da informática na agricultu-
ra está baixando radicalmente os custos e aumentando a eficiência
e produtividade das megapropriedades agrícolas. Estas não devem,
portanto, ser igualadas com as grandes propriedades empresariais
(bonanza farms) de outrora analisadas por Rosa Luxemburg, que
no contexto da grande crise no final do século XIX se mostraram
incapazes de competir com a propriedade agrícola familiar, como
tão bem analisado por Harriet Friedmann na sua tese de doutorado.
As megafazendas neste sentindo podem bem ser o novo “normal”
para a produção de commodities agrícolas, embora a apropriação
de novas fronteiras agrícolas tenha características tipicamente
especulativas.43
Apresentei esta tese numa forma mais hipotética primeira-
mente numa reunião do ISS, Haia, organizada por Oane Visser, em
2015, baseado em trabalho de campo realizado com Paulo Pereira
para a sua tese de doutorado sobre as implicações estratégicas e
43 Madeleine Fairbairn, aluna de Phil McMichael que passou pelo CPDA para
conversar quando do seu trabalho de campo doutoral, tem feito excelente traba-
lho neste tema. Ver “Like Gold with Yield – evolving intersections between farm-
land and finance”, Journal of Peasant Studies, v.. 41, issue 5, 2014, e Fields of Gold
(2020).
120JOHN WILKINSON
logísticas da expansão da fronteira da soja para o Norte do Brasil.
Este trabalho foi transformado em artigo e preparado para publi-
cação numa sessão especial de Agriculture and Human Values,
organizada por Jennifer Clapp, S. Ryan Isakson e Oane Visser. Na
última hora, decidi que o trabalho ainda não estava pronto para
publicação e apenas em 2018 reescrevemos o artigo, desta vez em
espanhol, agora como capítulo, “Soja Brasileña: nuevos patrones
de inversion y regulación”, para o livro El Fin de la Bonanza, organi-
zado por Martin Ramirez e Stefan Schmartz (Ed. Biblos, Sociedad,
Argentina), com versão em alemão publicada no outono de 2019.
Um trabalho final que preparei antes do meu período de pós-
doutorado na Alemanha, foi um capítulo de abertura, escrito em
inglês, mas traduzido para o alemão como “Der Trend zum Global
Player”, sobre a história do sistema agroalimentar, para uma publi-
cação estilo atlas, organizado pelo Rosa Luxemburg Stiftung, que
foi publicado em 2017, com uma edição em português aparecendo
em 2018, também incluindo o meu capítulo.
Embora tivesse que finalizar o meu trabalho no “Projeto
Indústria 2027”, durante minha estadia no Instituto Max Planck, em
Colônia, pude me dedicar quase que inteiramente ao trabalho sobre
sociologia econômica nesse Centro, que tem se tornado referência
global nesta área, especialmente depois que Jens Beckert assumiu
a direção em 2009. Livia Barbosa foi comigo e nos foram oferecidas
excelentes condições de trabalho, e ficamos absortos num ambien-
te intelectual estimulante. Além do meu próprio trabalho, partici-
pei nos seminários dos alunos de doutorado e nos seminários mais
amplos organizados regularmente no Centro. Já estava familiariza-
do com as literaturas anglo-saxônica e francesa e, embora muitos
acadêmicos alemães publicassem diretamente no inglês e fizessem
121JOHN WILKINSON
parte do debate global, senti que uma imersão no mundo acadêmi-
co alemão e suas pesquisas revelariam perspectivas e questões que
de outra forma não seriam evidentes. A língua alemã claramente
constituía barreira para mim. Nunca tivera quaisquer aulas formais
no alemão (tampouco no espanhol ou português, então, em prin-
cípio, isto não me preocupava), mas havia repetidamente tentado
estudar a língua e, embora tivesse alcançado alguns conhecimen-
tos básicos, nunca galgara o topo da montanha de onde tudo re-
pentinamente fica claro. Felizmente, o MPIfG oferecia um curso na
língua que acabou sendo de grande valia, assim, depois de algum
tempo, e com a ajuda do Google Translator, consegui confrontar o
alemão da literatura acadêmica na minha área.
Além da orientação oferecida por Jens Beckert, o contato com
Andreas Nölke (Universidade Goethe, Frankfurt), recomendado a
mim por Moisés Balestro, adepto da sociologia econômica e econo-
mia política na Universidade de Brasília, proveu -me um mapa ope-
racional da história da Associação Alemã de Sociologia Econômica.
Lisa Knoll (Universidade de Hamburg), figura destacada na sociolo-
gia econômica alemã e também proponente da teoria das conven-
ções, gentilmente convidou -me a participar na Conferência Anual
daquele ano, onde conheci algumas das personalidades centrais
cujas obras haveria de ler nos meses seguintes. Rapidamente pude
perceber como a discussão da financeirização havia se tornado um
assunto central.
Quase fui desviado da minha preocupação com a sociologia
econômica alemã depois de uma conversa ao jantar com Philippe
Steiner na ocasião de uma reunião no Maxpo, uma joint venture entre
122JOHN WILKINSON
o MPIfG e a Sciences Po, em Paris.44 Philippe Steiner é o Granovetter
e Swedberg da sociologia econômica francesa combinados em
uma só pessoa. Formado igualmente como economista e sociólo-
go, Philippe Steiner tem feito importantes contribuições originais
à sociologia econômica em muitos níveis e, ao mesmo tempo, atra-
vés do seu estudo panorâmico L´Économie Sociologique, traduzido
há muito tempo para o português, e seu Manual, organizado junta-
mente com François Vatin, Traité de Sociologie Économique (2009).
Tem sido convidado muitas vezes ao Brasil e nós o convidamos tam-
bém para ser o nosso palestrante principal no 7o Estudos Nacionais
de Consumo, (Enec), dedicado aos Mercados Contestados em
2014. Philippe Steiner acabara de organizar um livro sobre este
tema com Marie Trespeuch, embora eu não soubesse
,disto no mo-
mento do nosso convite, e sua participação foi decisiva nas mui-
tas animadas sessões plenárias das quais desfrutamos neste Enec.
Posteriormente, produzimos um dossiê de textos deste Enec para
uma edição da Revista Antropolitica. Escrevi um artigo revisando a
literatura e debates sobre mercados contestados, que foi publicado
em inglês nesta revista simplesmente como “Contested Markets”.
Eu havia enviado uma versão preliminar deste artigo a Jens Beckert
44 Em 2015, fui membro do júri, convidado pelo Sciences Po, que concedeu
a Habilitation de se tornar diretor de Pesquisa a Ronan Le Velly (supervisora,
Sophie Dubuisson-Quellier), a quem conhecera numa visita anterior em 2012
ao Laboratório UMR, em Montpellier, onde ele trabalhava. O trabalho dele (ele
é especialista no Comércio Justo) é notável pela sua insistência na essencial hi-
bridez das redes/mercados/movimentos agroalimentares, posição que sempre
considerei fundamental, um contrapeso à polarização: alternativa x convencio-
nal muitas vezes encontrada na literatura. Em 2017 ele publicou Sociologie des
Systèmes Alimentaire Alternatifs (Presse des Mines), no qual desenvolve estes
argumentos.
123JOHN WILKINSON
para seus comentários e ele me encaminhou uma cópia adiantada
da introdução que ele e Matias Dewey haviam preparado para o seu
livro The Architecture of Illegal Markets. Este contato anterior pode
ter sido importante na aprovação do meu pedido subsequente de
passar um período de pós- doutorado no Max Planck.
Quando me encontrei com ele em Paris, Steiner mencionou
a coincidência de uma série de publicações recentes, quase todas
em 2017, por nomes de liderança na sociologia econômica: Luc
Boltanski, Michel Callon, Pierre Bourdieu (suas palestras de 1991)
e Marc Granovetter (seu livro Society and Economy foi anunciado
por 20 anos). No dia seguinte, comprei os três primeiros livros, bai-
xei uma versão em Kindle do livro de Granovetter e durante o mês
seguinte devorei os livros de Boltanski e Esquerre (647 páginas) e
Callon (498 páginas), pensando em talvez escrever uma resenha
comparativa.
Felizmente, reconheci a tempo como pareceria anômalo vol-
tar da Alemanha com um estudo de dois renomados sociólogos
econômicos franceses e, então, os coloquei, com os outros dois, em
segundo plano, e me voltei ao meu estudo da sociologia econômi-
ca alemã. Depois, Philippe Steiner me enviou sua própria resenha,
como sempre brilhante, destes autores e meu projeto saiu até de
segundo plano.
A minha sensação era de que a sociologia econômica ale-
mã era distinta em três aspectos fundamentais. Primeiramente,
ter as grandes obras clássicas da sociologia econômica de Marx
a Schumpeter via Weber, Simmel e Sombart em sua própria lín-
gua materna certamente informa o ponto de partida para pensar
as questões da sociologia econômica. Segundo, ao contrário dos
Estados Unidos, onde, a partir de meados dos anos 1960, a sociologia
124JOHN WILKINSON
em grande parte deu as costas ao parsonianismo, na Alemanha a
teoria de sistemas (Luhmann) e teorias desenvolvidas em diálogo
crítico com a teoria de sistemas (Habermas) continuaram e con-
tinuam centrais ao debate das Ciências Sociais e há uma sociolo-
gia econômica luhmanniana ativa na Alemanha (Baecker). E, em
terceiro lugar, a nova sociologia econômica emergiu na Alemanha
em diálogo ativo com uma “velha guarda” preexistente cuja socio-
logia econômica estava imersa nas obras clássicas de Marx, Weber,
Simmel e Schumpeter. De particular relevância aqui são as obras de
Hans Ganssman e Christoph Deutschmann.
Ao final da minha estadia no Max Planck concluí um estudo
intitulado An Overview of German New Economic Sociology que,
após receber comentário de uma ampla gama de acadêmicos e um
processo formal de revisão, foi publicado na Discussion Paper Series,
do Max Planck. O estudo cobre em algum detalhe, os autores, temas
e publicações da Nova Sociologia Econômica Alemã. Aqui, quero
salientar três tipos de contribuição que creio ser questões centrais
para a sociologia econômica. O primeiro tem a ver com debates
sobre o “núcleo duro” da sociologia econômica; o segundo, envol-
ve uma contribuição ao micro-macro, debate usando a teoria da
performatividade para demonstrar as implicações macro do dese-
nho político dos mecanismos de mercado; e, o terceiro, chama a
atenção a centralidade da financeirização na sociologia econômica
alemã da atualidade.
Em um dos seus primeiros artigos, Jens Beckert levantou a
pergunta, “o que é sociológico na nova sociologia econômica?”, e a
sua resposta foi apontar a centralidade da incerteza na ação econô-
mica e extrair as suas implicações sociológicas. Isto tem sido cru-
cial no pensamento de Beckert em toda a sua carreira e é questão
125JOHN WILKINSON
central no seu livro mais recente, Imagined Futures, que poderia
ser colocado ao lado do quarteto de proeminentes autores da NSE
mencionados anteriormente. Recentemente, em 2015, Jan Sparsam,
então na Universidade de Jena e agora na Universidade de Munich,
publicou a sua tese de doutorado, Wirtschaft em der New Economic
Sociology (Springer), na qual ele vira a pergunta do avesso e inda-
ga o que há de econômico na nova sociologia econômica. Ele exa-
mina as obras de Harrison White, Granovetter, Neil Fligstein e Jens
Beckert e argumenta que nenhum deles vai além da análise dos ele-
mentos fundamentais e influências que afetam a ação econômica
sem conseguir analisar a ação econômica em si como ação social.
Isto também é uma questão central para mim e algo que quero in-
vestigar mais, e é certamente uma das questões por trás da minha
preocupação com a relação entre sociologia econômica e econo-
mia política. Ao que parece, a sociologia econômica é mais forte
quando analisa a “construção social” dos mercados individuais e,
neste caso, a ação econômica é claramente indistinguível da ação
social. Todavia, quando vamos dos mercados individuais aos que
são interconectados, rapidamente nos deparamos com o “mercado
autorregulado” de Polanyi, e mais uma vez a sociologia econômica
parece ficar reduzida a um segundo momento, em que a ação social
é voltada à domesticação da ação econômica autônoma.
Benjamin Braun, pesquisador no Max Planck, tem feito con-
tribuições fundamentais ao debate micro-macro a partir de uma
perspectiva de performatividade à la Callon. Ele argumenta que,
numa visão de cima para baixo, a política leva a políticas que pas-
sam então a informar o perfil e dinâmica das instituições micro. Em
vez disto, de acordo com Braun, os mercados não devem ser vis-
tos como epifenômenos, mas como locais de política nos quais a
126JOHN WILKINSON
implementação exitosa de dispositivos do mercado (não só ideias)
define a dinâmica das próprias estruturas de mercado que dão for-
ma aos diferentes tipos do capitalismo. Ele estuda o caso das ino-
vações financeiras nos fundos de investimentos em índices e mos-
tra que somente quando as inovações neste setor possibilitaram o
rastreamento de índices financeiros com baixo custo, por parte dos
fundos de investimento, é que foi possível oferecer esta opção mais
segura de investimento a longo prazo. Depois que isto ficou pos-
sível, apareceu a figura do “investidor passivo” e, a partir daí, um
afastamento da dinâmica do capitalismo de “ativos gerenciados”.
Finalmente, qualquer panorama na Nova Sociologia
Econômica alemã se depara com uma enxurrada de estudos so-
bre dinheiro e financeirização. Estes estudos vão desde amplas
considerações teóricas sobre a natureza do crédito na sociedade
contemporânea, ao significado da união monetária entre Estados
soberanos – questão de interesse especial na União Europeia, a
financeirização dos orçamentos domésticos e vida cotidiana, pas-
sando à análise de moedas especiais no contexto do desenvolvi-
mento local/regional. Deutschmann, figura-chave da velha guarda,
,desenvolveu uma ambiciosa análise da sociologia econômica que
vê a financeirização e a crise como consequências endógenas pro-
duzidas pelo longo boom pós- guerra. O aumento do descompasso
entre o crescimento de ativos privados e a falta de empreendedores
que demandam os ativos é interpretado como sendo consequência
de uma desaceleração da mobilidade estrutural e, com isto, da taxa
de inovação coletiva. O crescimento de fundos mútuos e de investi-
mento também tem um efeito negativo sobre a dinâmica inovadora
dos negócios. A análise de Deutschmann oferece um importante
complemento à gama de estudos mencionados anteriormente na
127JOHN WILKINSON
medida em que integra os níveis micro, meso e macro e também
liga a financeirização às transformações na dinâmica da estrutura
social.
De volta ao CPDA em 2018, reajustei a minha disciplina de
sociologia econômica para levar em conta as minhas leituras no
Max Planck, em Colônia, ao enfatizar agora a evolução dos sistemas
monetários na vida econômica. Impactado de forma similar pelas
minhas pesquisas com Ruth Rama sobre tecnologias disruptivas,
ministrei uma disciplina sobre Sistemas Alimentares Urbanos no
primeiro semestre de 2019.
PENSAMENTOS FINAIS
Permanecer na mesma instituição durante a maior parte
da carreira não é incomum e, de fato, tem sido o curso
normal no Brasil. Certamente tem perigos, mas a vida
acadêmica para mim no CPDA sempre possibilitou o envolvimento
com outras redes e em variadas formas de cooperação institucio-
nal, como fica claro no relato anterior. Em diferentes momentos, o
caminho poderia ter sido outro. Quase fui indicado para uma posi-
ção permanente na Comissão Europeia em meados dos anos 1980.
Naquele tempo, uma mudança para a Unicamp também foi aventa-
da. Em ocasiões distintas, fui convidado informalmente a me can-
didatar para posições na Ecla/Cepal e no Instituto de Agricultura
e Política de Comércio, IATP, mas declinei. Até me candidatei
para uma posição na Universidade de Wageningen, com a equi-
pe de Norman Long, mas durante a entrevista me vi defendendo
o Programa Brasileiro Proálcool de cana-de-açúcar/álcool contra
o que eu considerava visões exageradas do seu impacto negativo
sobre a agricultura camponesa, defesa esta que parece não ter sido
bem aceita. Qualquer que tenha sido a razão, não fui selecionado.
129JOHN WILKINSON
O CPDA sempre esteve antenado ao mundo, tanto no seu
ensino como nas suas atividades de pesquisa/consultoria, o que
tem oferecido um antídoto permanente aos perigos da rotinização.
Meu projeto acadêmico de longo prazo – de entender a dinâmica
do sistema agroalimentar global nas suas dimensões históricas,
atuais e futuras – também excluía a repetição tanto no ensino como
na pesquisa.
A perspectiva interdisciplinar de Ciências Sociais promovida
pelo CPDA combina perfeitamente com a minha formação socio-
lógica fundamentalmente preocupada com processos econômicos
amplos. A entrada no mundo da sociologia econômica me oportu-
nizou um apoio perfeito para esta dupla orientação, embora, como
tenho demonstrado, nunca consegui resolver o dilema micro-ma-
cro de forma que me satisfizesse, apesar de ter feito, penso, algumas
contribuições úteis nesta direção. A interdisciplinaridade numa
instituição dedicada à pesquisa aplicada oferece, creio, em geral,
um ambiente ideal tanto para o ensino como para a pesquisa.
Mas quando aprofundamos as nossas posições teóricas e
analíticas vem o desejo de fazer uma “contribuição” para os debates
que definem a subárea que escolhemos. Isto é muito difícil de levar
à frente em face dos compromissos diários com ensino, orientação,
administração e pesquisa, e, para mim, os períodos fora do CPDA
– seja no Programa Fast, na Comissão Europeia, no Inra, Paris, com
Raul Green, ou em Santa Cruz e Paris XIII, ou no Max Planck em
períodos de licença para o pós- doutorado – sempre foram decisi-
vos para a consolidação de avanços teóricos. O mais fundamental
de tudo foi talvez o mundo paralelo de pesquisas e debates que
David Goodman, Bernardo Sorj e eu habitamos durante diversos
anos para produzir From Farming to Biotechnology, quando as
130JOHN WILKINSON
demandas do CPDA, que possuía apenas um curso de mestrado à
época, e minhas supervisões de dissertação estavam apenas come-
çando, e eram bem menos do que viriam a ser em anos posteriores.
Logo no início da minha carreira, estes anos me proporcionaram
uma base bastante sólida para construções subsequentes.
De todos os textos de Granovetter, o que talvez tenha me im-
pressionado mais foi “The Strength of Weak Ties”, escrito em 1973,
mais de uma década antes do seu artigo sobre embeddedness.
Olhando retrospectivamente minha carreira, os laços fracos têm
sido uma influência regular e fundamental sobre minha pesquisa,
mas, ao mesmo tempo, foi no contexto de laços fortes que foram
formadas ideias mais duráveis.
Agosto, 2019, Rio de Janeiro.
131JOHN WILKINSON
ALGUNS DADOS DO CURRICULUM LATTES
• Professor no CPDA/UFRRJ desde 1982;
• Bolsista 1C do CNPq desde 1984;
• Pesquisador visitante na Comissão Europeia, 1986-7,
Programa FA ST/DG12;
• Pesquisador visitante no Inra, Paris, 1989-9;
• Períodos com Pós-doutor:
1995-6 Paris XIII (Supervisor: François Chesnais);
2017-8 Cologne, Max Planck Institute (Supervisor: Jens Beckert);
• Participação em 4 Projetos de Cooperação Capes-Cofecub,
2 como coordenador;
• 73 artigos publicados;
• 18 livros como autor ou organizador;
• 56 capítulos de livros;
• 42 dissertações de mestrado orientadas;
• 27 teses de doutorado orientadas;
• 4 supervisões de pós-doutorado;
• 6142 citações no Google Scholar (h index 35 e i10 index 87);
132LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Percursos acadêmicos e envolvimentos profissionais:
dimensões da questão agrária brasileira
através de uma biografia
INTRODUÇÃO
Mais do que um momento de organização e contex-
tualização da produção para ascender na carreira
acadêmica, escrever este memorial significou para
mim um balanço dos caminhos trilhados, tanto do ponto de vista
teórico e metodológico (opções e diálogos feitos) quanto empírico
(temas abordados). Permitiu, ainda, sistematizar melhor algumas
opções e encontros, vários deles frutos do acaso, mas que me abri-
ram alguns caminhos que, depois, conscientemente persegui.
Ao longo do texto procurei me situar nos debates nos quais de
alguma forma participei, dando breves indicações dos principais
temas e autores, num exercício de aproximação do conjunto de
questões que me foram significativas em cada momento de minha
trajetória e das opções acadêmicas que fui fazendo, sem, no entan-
to, me preocupar com longas digressões sobre textos que escrevi ou
tentativa de sintetizá -los e apresentar suas teses ao leitor.
À medida que redigia este memorial, além da ênfase na mi-
nha formação acadêmica, não pude deixar de mencionar alguns
aspectos de minha vida pessoal, definidores de algumas escolhas.
134LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Um dos aspectos que destaco é a minha longa permanên-
cia no hoje Programa de Pós- graduação de Ciências Sociais em
Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). Afinal, cheguei ao CPDA em fe-
vereiro de 1979, quando ele ainda era o Centro de Pós- graduação
em Desenvolvimento Agrícola da Fundação Getúlio Vargas. Meu
contrato foi assinado no mesmo dia em que eu completava 30 anos,
ainda sem sequer ter defendido minha dissertação de mestrado.
Tive um momento de dúvidas sobre a permanência, em meados
dos anos 1990, quando completei o tempo necessário para apo-
sentadoria: não valeria a pena sair, fazer concurso em outro lugar e
melhorar minha condição financeira? Depois de dois ou três anos
de muitas interrogações, avaliações familiares, considerei que já es-
tava com a vida relativamente estabilizada,
,este cam-
po de estudos nas ciências sociais no país.
Segundo, o Prof. Sergio foi um criativo e incansável tecelão
de laços com outras instituições acadêmicas no exterior, especial-
mente na França (mas não apenas), colaborando ativamente para
o que viria a ser chamado posteriormente de “processo de interna-
cionalização” do CPDA. Em diversas estadias na França, entre as
quais alguns estágios pós-doutorais, a partir dos anos 2000, apro-
fundou a colaboração com um número considerável de instituições
e de pesquisadores, entre as quais quero pessoalmente destacar o
Centre de Coopération Internationale en Recherche Agronomique
pour le Développement (CIRAD), com o qual os professores do
CPDA e de outras instituições brasileiras formaram uma rede aca-
dêmica que viabilizou uma estreita colaboração em pesquisas, se-
minários e publicações, algumas vezes através de Projetos CAPES-
COFECUB, em temas como multifuncionalidade da agricultura,
territorialização, análise de políticas públicas etc. Essa parceria
facilitou que o CPDA, em particular, tivesse a oportunidade inigua-
lável de contar com o apoio, como professor visitante, do querido
e saudoso Phillipe Bonnal, que influenciou de forma marcante vá-
rios programas de pesquisa que foram desenvolvidos no CPDA nos
anos 2000.
E terceiro, é impossível não mencionar explicitamente a
enorme importância que o Prof. Sergio tem para o CPDA e para a
UFRRJ como um formulador de ideias inovadoras e como um ope-
racionalizador dessas ideias com engenhosidade, transparência e
14PREFÁCIO - NELSON GIORDANO DELGADO
extraordinária persistência. Basta mencionar as experiências viven-
ciadas com REDES (Rede Desenvolvimento, Ensino e Sociedade),
OPPA (Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura),
GEMAP (Grupo de Estudos em Mudanças Sociais, Agronegócio
e Políticas Públicas) e CEA (Centro de Estudos Avançados). O
Observatório e o Grupo de Estudos, ambos coordenados por ele,
atingiram grande projeção acadêmica e pública a partir, respecti-
vamente, de 2005-2007 e 2014, produzindo um número conside-
rável de pesquisas, seminários, publicações e intercâmbios em te-
mas como políticas públicas de desenvolvimento territorial rural,
análise de políticas públicas (adentrando inclusive na investigação
do desmonte de políticas públicas para o rural a partir de 2016),
biocombustíveis, agronegócio, financeirização da agricultura, land
grabbing, entre muitos outros, mobilizando um número conside-
rável de pesquisadores de diversas universidades no Brasil e no
exterior e contribuindo para a formação acadêmica de um grupo
notável de pesquisadores composto por alunos e ex-alunos do dou-
torado do CPDA, hoje inseridos em universidades por todo o país.
Tenho plena consciência de que este prefácio não faz jus à im-
pressionante trajetória acadêmica e intelectual de Leonilde, John e
Sergio e de que reflete, em suas ênfases, meus vieses de interesse
e meu envolvimento com muitas das atividades mencionadas ao
longo de um extenso e marcante (para mim) período de convivên-
cia com os três colegas no CPDA. Ficarei, no entanto, plenamente
recompensado se este prefácio tiver deixado clara minha profunda
admiração e carinho por Leonilde, John e Sergio e servir também,
de qualquer forma, para estimular a leitura de seus memoriais.
Boa leitura a todas e todos!
15JOHN WILKINSON
JOHN WILKINSON
Reflexões sobre uma carreira
(ou na carreira pela vida)
COMENTÁRIO INTRODUTÓRIO
Preparei este “Memorial” pouco depois de ler To The Lighthouse, de
Virginia Woolf, e, embora houvesse estudado literatura inglesa no
meu curso de graduação, não me lembro de ter lido seu trabalho
antes. O livro me impressionou sobremaneira com a sua técnica de
“fluxo de consciência” que acompanha os pensamentos dos seus
personagens para trás e para a frente e se ramificam lateralmen-
te, mas sem “perder o fio da meada”. Escolhi esta técnica para este
Memorial e, por este motivo, não dividi o texto cronológica ou te-
maticamente. Espero que isto funcione para o leitor tão bem quan-
to funcionou para mim.
17JOHN WILKINSON
Poderia ter sido Lima, Peru, e um trabalho de campo
sobre a marginalidade urbana inspirado por Quijano.
Mas o meu orientador de PhD, especialista na cultura
popular na Bahia, e uma leitura casual de um exemplar do Cebrap
com artigos dos Franciscos – Oliveira e Sá – sobre o Nordeste brasi-
leiro e o papel da agricultura de subsistência, mudaram o meu foco
para o Brasil. Meu “problema” naquele momento era a “articula-
ção dos modos de produção”, tendo a New Left Review e Economy &
Society como referências centrais.
Depois de uma rápida desilusão com os esforços de empur-
rar o Partido Trabalhista para a esquerda por meio dos Grupos de
Manifesto de 1o de Maio, nos quais Raymond Williams era figura pro-
eminente, a radicalização na Inglaterra dos anos 1960 era bastante
Terceiro Mundista. O centro da mobilização em massa era o Vietnã
e da radicalização eram os Grupos da Campanha de Solidariedade
com o Vietnã. Todavia, em termos institucionais, o resultado mais
importante foi a criação de Centros Latino-americanos interdisci-
plinares em muitas universidades. Foi no Centro Latino-americano
da Universidade de Liverpool, associado ao Departamento de
Sociologia, que completei meu mestrado e depois rumei ao Brasil
18JOHN WILKINSON
para iniciar o meu trabalho de campo para um PhD com financia-
mento de uma bolsa da Fundação Ford. A América Latina oferecia
a promessa de revolução para muitos da minha geração, seja como
resultado da luta armada em Cuba, eleições democráticas no Chile
ou regimes populistas, de militares no Peru e civis na Argentina.
Fui atraído ao Grupo Marxista Internacional (IMG) de inspi-
ração trotskista após a leitura dos relatórios da Quarta Internacional
(liderada por Ernest Mandel) sobre a América Latina preparados
para o seu 9o Congresso Mundial. À época, estava na Espanha,1 ain-
da sob o domínio de Franco, para onde eu fora para aprender es-
panhol como forma de me preparar para contribuir na Revolução
Latino-americana. Com a vitória de Allende em 1970, as pretensões
de participar de movimentos de guerrilha ao estilo de Regis Debray
deram lugar à meta mais modesta de uma possível contribuição ao
governo popular do Chile. De fato, voltei à Inglaterra e passei cin-
co anos como militante no IMG e, como parte do seu “entrismo”
para a classe trabalhadora (ao contrário do “entrismo” no Partido
Trabalhista por parte do Grupo de Militantes, um dos numerosos
grupos trotskistas), trabalhei nas siderúrgicas de Sheffield e me tor-
nei um “delegado sindical”, o primeiro trotskista num sindicato do-
minado pelo Partido Comunista.
Um projeto sobre o regime militar reformista no Peru, ela-
borado durante uma curta estada em Paris, para onde fui atraído
pela Ligue Communiste Revolutionnaire (LCR) de Krivine, a mais
importante vertente da Quarta Internacional, com uma reputação
construída em cima das barricadas de 1968, que viabilizou a minha
1 Estes relatórios me foram enviados por um amigo do meu tempo de graduação,
Andy Metcalf, com quem mantive contato desde então.
19JOHN WILKINSON
entrada num curso de mestrado no Centro Latino-Americano de
Liverpool, após o qual fui aceito para um PhD. Meu retorno à uni-
versidade foi acompanhado por um distanciamento gradativo da
militância. O Centro Latino-Americano de Liverpool era bastante
convencional, sendo que o marxismo era mais comum entre os alu-
nos. Formamos um Grupo de Leitura de O Capital, mas não passa-
mos dos primeiros capítulos do primeiro volume. Minha predileção
era mais o marxismo histórico de Perry Anderson, e li avidamente os
seus estudos monumentais, Passages from Antiquity to Feudalism e
Lineages of the Absolutist State, assim que ambos foram publicados
em 1974, e o marxismo cultural da New Left Review, como a análise
econômica oferecida
,com filhos adolescentes,
e decidi ficar porque sentia o CPDA como mais do que espaço de
trabalho. Não se tratava apenas de uma inserção profissional, mas
também de uma relação afetiva, embora (ou talvez por isso mesmo)
muitas vezes atribulada e tensa. O CPDA tornou -se um importante
lugar no mundo para mim.
Mas este memorial não é apenas reflexo da minha história no
e com o CPDA. Na busca de algumas raízes da minha formação e
de meu interesse por determinados temas, caminhei por diversos
lugares pelos quais passei e que foram fundamentais na minha ma-
neira de encarar o trabalho na universidade. Senti necessidade de
retornar à minha infância, à adolescência, em especial às escolas
pelas quais passei, até chegar ao tema de pesquisa que venho privi-
legiando desde o curso de graduação. Enunciá -lo, por si só, indica
as tensões teóricas presentes na sua definição: “sociologia rural”,
“sociologia das sociedades agrárias”, “sociologia do campesinato”,
135LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
“questão agrária”, “estudos rurais”, “dimensões rurais da sociedade”,
“ruralidades” não são designações neutras, mas traduzem opções
teóricas diferenciadas para o tratamento de um tema que é escor-
regadio e que, como vários outros, implica olhar para a totalidade
que o envolve e as diversas relações nela contidas. Também bus-
quei mostrar como determinadas opções foram sendo estimuladas
pelos meus contatos para além dos muros da universidade: embora
nunca tenha tido relação orgânica com organizações de trabalha-
dores, como sindicatos ou “movimentos sociais”, a participação em
seminários e encontros sindicais, da Comissão Pastoral da Terra,
do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) ou do
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e as conversas e tro-
cas daí decorrentes instigaram questões e temas de investigação.
Também foram fundamentais as trocas, em situações de pesquisa
de campo, com trabalhadores comuns, assalariados, assentados,
camponeses de diversos tipos: elas sempre me trouxeram (e espero
que ainda tragam) novas indagações e perplexidades.
No decorrer deste texto procurei apontar como minhas op-
ções foram se fazendo em momentos da própria construção de
meu objeto de estudo que, desde que cheguei ao CPDA, centrou -se
fundamentalmente nos conflitos, formação de identidades políti-
cas e movimentos sociais no campo, o que me levou a refletir sobre
as vicissitudes da questão agrária, as políticas fundiárias e também
a uma breve, porém enriquecedora, incursão sobre o agronegócio.
O exercício de recompor minha trajetória intelectual foi, ao
mesmo tempo, instigante e bastante difícil. Alguns momentos de
definição de rumos, vistos com os olhos de hoje, parecem ter perdi-
do significado. Outras experiências que, quando vividas, tiveram até
mesmo uma certa dose de casualidade, posteriormente mostraram
136LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
importantes desdobramentos. Ao longo do tempo parcerias acadê-
micas que marcaram minha trajetória se fizeram, desfizeram, mas
deixaram marcas.
A necessidade de eleger um fio condutor para a exposição im-
plica o risco de lhe dar um tom de linearidade, o que empobrece
a percepção da dramaticidade e angústia de alguns impasses vivi-
dos, como já apontado por Bourdieu (1986). O impulso de recor-
rer abundantemente à bibliografia foi grande: mas isto significaria
reconstruir debates a partir do olhar de hoje. Preferi apenas reler
alguns trabalhos que escrevi e procurar, na medida do possível,
apresentar as discussões o mais próximo possível dos termos da
época. Certamente minhas concepções de hoje embaçam minha
capacidade de recuperar todos os termos do debate. Precisaria de
um investimento muito maior do que o suposto para um memorial.
Como relato de uma trajetória, há muito de não dito. Gostaria
de poder confrontá -lo com o de alguns contemporâneos para per-
ceber como foram vivenciados por outros pesquisadores determi-
nados momentos da produção científica brasileira. Afinal, se estou
falando de mim, em primeira pessoa, necessariamente estou me
referindo a um campo de reflexões, construção de temas e investi-
mentos acadêmicos que são, em grande medida, coletivos.
Escrever este texto constituiu -se também num exercício de
homenagem a pessoas que passaram pela minha vida intelectual e,
de alguma forma, a marcaram. Os seus nomes aparecem ao longo
da narrativa.
Apesar de tantos impasses, este tipo de reflexão me foi ex-
tremamente útil, na medida em que me ajudou a desvendar o que
eu entendia, quando ingressei no doutorado, como uma “crise de
identidade” e a acertar algumas contas com a minha formação
137LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
acadêmica. Prossigo nesse ajuste, buscando fechar um círculo, mas
está difícil. A escrita me ajudou também a explicitar para mim mes-
ma meus constantes atrasos no que se refere aos tempos da vida
acadêmica: quase oito anos para finalizar a dissertação de mestra-
do, quase dez para me doutorar e mais de quatro para fazer concur-
so para titular... Como procuro mostrar no texto, se demorei bastan-
te para cumprir as formalidades acadêmicas, foi porque me deixei
levar por vários caminhos de pesquisa, de orientação, de escrita e
de relação com os movimentos sociais, trabalhadores do campo
e organizações de apoio. Esses envolvimentos me deram “régua e
compasso”, além de inspiração para pensar as questões teóricas.
Mas os atrasos também têm uma raiz nas dificuldades com o exer-
cício solitário que as demandas formais da academia impõem.
Este memorial é um ajuste de contas comigo mesma. Dei -me
o direito de explorar minhas lembranças, a maior parte delas bas-
tante prazerosa. Iniciada a redação em 2014, quando a passagem
de nível foi regulamentada pela legislação pertinente, interrompi
completamente o trabalho por dois anos. Nesse meio tempo, uma
pesquisa que coordenei sobre os conflitos no campo no estado do
Rio de Janeiro, durante a ditadura, me tomou todo o tempo e a alma.
Valeram todos os atrasos... Que meus orientandos não me julguem,
mas se eu ficasse apegada aos meus tempos institucionais, não te-
ria enveredado por tantos caminhos tortuosos e carregados de des-
cobertas empíricas, teóricas e afetivas... Claro que perdi muito com
minhas demoras, mas, colocando na balança, o saldo foi positivo e
estou conciliada com minhas angústias a respeito dos atrasos.
Retomei o memorial no início de 2019. Nova interrupção, para
nova investida em janeiro e fevereiro de 2020. Quando o finalizei,
veio a pandemia da Covid 19... Fiquei aguardando, achando que
138LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
seria curto o tempo de recolhimento. Quando fui indagada pela
minha amiga Sonia Bergamasco por que não fazia por via remota,
levei um susto. Realmente, por que não?
Agradeço à banca que avaliou o trabalho, composta pelo co-
legas e amigos Elina Pessanha, Marilda Vilela Iamamoto, Moacir
Palmeira, Sérgio Pereira Leite e Sonia Maria Bergamasco, pela
leitura cuidadosa e pelos comentários. Todos os nomes foram es-
colhidos com muito cuidado, porque representaram momentos
importantes de minha vida acadêmica. Muitos outros foram citados
ao longo do texto. A todos agradeço pelas parcerias e aprendizados.
A FORMAÇÃO
MOMENTOS INICIAIS: O PERCURSO ATÉ A CHEGADA
À GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS NA USP
Começo, de forma pouco convencional num ritual acadêmico,
falando de mim e do meio em que nasci e fui criada. Afinal, não
comecei a vida a partir de meu título acadêmico de bacharel e li-
cenciada em Ciências Sociais. Momentos iniciais do meu percurso
tiveram a ver com a busca de recusa a um destino que parecia ir me
sendo imposto pelo meio em que vivia.
Nasci e cresci na periferia da Zona Leste paulistana, entre
filhos de operários. Meu pai, migrante do sertão potiguar, cursou
até o segundo ano do ensino primário e minha mãe chegou até a
quarta série. Frequentei o Grupo Escolar
,(termo usado para desig-
nar as escolas que ofereciam o que hoje corresponde ao primei-
ro nível do Ensino Fundamental) do local onde vivia, o bairro de
Engenheiro Goulart, relativamente isolado dos bairros limítrofes
e com crescimento mais lento em relação à periferia paulistana.
Brincava com as crianças vizinhas em rua de terra batida. A energia
elétrica só chegou quando eu tinha cerca de cinco anos de idade, o
140LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
asfalto quando completara 17... Água encanada e esgoto bem de-
pois. Nosso transporte para o bairro mais próximo era feito por um
ônibus que passava de meia em meia hora (nos horários de pico) e
que era carinhosa e ironicamente chamado de “poeirinha”, por ra-
zões óbvias: sua aproximação era sinalizada pela terra que levanta-
va em ruas sem calçamento. Vivi assim a experiência de um bairro
de trabalhadores, onde se desenhava fortemente um horizonte de
ascensão social pela educação.
Um importante diferencial no meio em que vivi marcou mi-
nha infância e creio que minha vida: meu avô de criação, Benedicto
Bonato, companheiro de minha avó materna, tinha sido professor
primário e já estava aposentado quando me conheci por gente. Ele
me contava histórias e comprava livros; alfabetizou -me antes do
tempo escolar, introduziu -me na literatura, na poesia. Escrevia ver-
sos, tocava violão, desenhava, pintava, e fez de mim uma parceira
no jogo de xadrez, nas palavras cruzadas. Estimulou meu gosto pela
leitura e ajudou, com sua irreverência em relação a alguns valores,
a quebrar o que parecia ser o destino das meninas com quem eu
convivia: aprender a bordar, costurar, limpar casa, fazer comida e
estudar um pouco para, depois, arrumar um “bom marido”. Para
escândalo de minha mãe, dona de casa exemplar, eu resistia a
qualquer aproximação com as tarefas domésticas e gostava de fi-
car por longas horas na cama ou numa rede, sempre lendo. Minha
avó materna, Judith, uma feminista precoce, embora sem qualquer
discurso militante, apoiava minhas pequenas rebeldias. Meu pai,
Sebastião, sempre respaldou fortemente minha vontade de estu-
dar e lamentava profundamente o Exército não aceitar mulheres
(se aceitasse, provavelmente eu teria ido para um colégio militar...).
Lembro dele, às noites, após o dia estafante de trabalho, com um
141LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
caderno de caligrafia, fazendo um esforço para seguir meus passos
na leitura e escrita. Fazia o possível e o impossível para me comprar
os livros que eu pedia e apostou fortemente, por meio do estímulo
afetivo, na minha educação escolar.
A política tinha um lugar secundário em nossas vidas. Antes
do golpe de 1964, no bairro onde fui criada, vivia -se intensamen-
te o “tempo das eleições”, para evocar estudos de Moacir Palmeira
(PALMEIRA, 1996), em especial a disputa entre “janistas” e “ade-
maristas”. Minha família era “janista”, em especial meu avô, que
chegou a escrever um soneto para uma das campanhas eleitorais.
Cansei de ouvir o “varre, varre vassourinha” no disco tocado inú-
meras vezes na vitrola que ele comprara. A disputa era pontuada
por valores morais: os “janistas” se viam como sérios, trabalhado-
res, portadores de princípios éticos e acusavam os “ademaristas” de
serem o oposto.
Na capela do bairro, predominantemente católico, lembro
que às vezes os moradores eram convidados para assistir exibição
de filmes (diversão irresistível, pois, à época, a maioria das famílias
do local sequer tinha televisão em casa). Tenho vagas lembranças
de filmes falando dos horrores do comunismo. Também me recor-
do da professora de religião do ginásio (muitas escolas públicas
tinham religião como disciplina obrigatória) dizendo que a terra
na Rússia era adubada com sangue: os comunistas enterravam as
pessoas, deixando só a cabeça de fora e passavam trator em cima...
Em casa, não havia discussão política para além da críti-
ca moral aos “ademaristas”. Meu pai, que tinha integrado a Força
Expedicionária Brasileira aos 20 anos, na condição de voluntário,
e ido para a Itália combater o fascismo, era fervoroso defensor
da ordem e, paradoxalmente, admirador de Mussolini. Quando
142LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
sobreveio o golpe militar de 1964, deu -lhe apoio: na sua concepção,
os militares iriam organizar o país, que estava, segundo ele, com-
pletamente caótico por conta das greves e da corrupção reinante.
Essas digressões tão pessoais são apenas para dizer que nossa
vida não era exatamente despolitizada, mas a família era marcada
por valores conservadores. Grande parte do meio em que eu vivia
viu o golpe com indiferença. A derrubada de Goulart não parecia
impactar o cotidiano. Nenhum operário das nossas relações par-
ticipava de atividades políticas, de manifestações e nem foi preso.
Muitos vizinhos só frequentavam o sindicato para buscar atendi-
mento médico. Já no início dos anos 1980, investindo em pesquisas
sobre sindicalismo rural, surpreendi -me muito com a literatura que
apontava esse comportamento como uma marca dos sindicatos
dos trabalhadores rurais. Minha experiência, especialmente com
meu tio e vizinho, metalúrgico, e também com os pais de amigos
de infância, mostrava o sindicato como o lugar ao qual se recor-
ria para buscar soluções para necessidades várias do cotidiano. O
grande valor para as pessoas com quem eu partilhava esse universo
era manter o trabalho nas fábricas próximas onde se chegava rapi-
damente de trem (caso da Fábrica de Tecidos Ermelino Matarazzo
e da Nitroquímica, em São Miguel Paulista) ou mesmo de bicicleta
(Vidraria Cisper), e gozar dos benefícios que um emprego estável
fornecia: assistência médica, pequenos empréstimos, festas de
Natal com distribuição de brinquedos aos filhos de operários.
143LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Terminado o primário, em 1960, numa Escola Popular do
Serviço Social da Indústria (Sesi),1 o caminho para continuar os
estudos era buscar uma vaga no Colégio Estadual mais próximo.
No meu caso, na Penha, bairro vizinho e também limite de meu
conhecimento da geografia da capital paulistana até mais ou menos
os 12 ou 13 anos.2
Coincidências definem, por vezes, os destinos individuais:
consegui uma vaga para fazer o curso de admissão (um preparató-
rio necessário para entrar no ginásio, atual segundo segmento do
Fundamental) no Instituto de Educação Nossa Senhora da Penha
(Estadual da Penha, como era chamado).
No final do ginasial, aos 14 anos, era necessário definir mini-
mamente uma perspectiva de futuro. Meus amigos do bairro que
frequentavam o IEP, apesar de filhos de operários, eram estimula-
dos a estudar. Eu era a única menina do meu grupo de infância que
tinha continuado naquele Colégio, que era extremamente exigente.
Estudava muito, era excelente aluna e, por isso, olhada com certo
estranhamento pelos vizinhos.
1 Fiz as três primeiras séries no Grupo Escolar do bairro e a quarta no Sesi, con-
siderada uma escola “mais forte”. No verso de meu diploma do curso primário
consta: “Os Cursos Populares Infantis do Sesi dedicam -se a ministrar aos filhos
dos trabalhadores nas indústrias e atividades assemelhadas o ensino primário,
base da educação popular. São organizados para servirem às necessidades do
grupo social a que os educandos pertencem. Visam a estimular e orientar as ten-
dências das crianças, desenvolvendo -lhes o sentimento de responsabilidade in-
dividual e de trabalho, de solidariedade e de cooperação, a fim de bem formá -las
intelectual, física, moral e civicamente”.
2 Algumas raras vezes, esse isolamento foi quebrado pela visita a algum parente
ou pela ida, de trem, com meus pais, à praia, em Santos, lazer típico dos traba-
lhadores da época.
144LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Tínhamos três opções: Clássico (ênfase em Letras e Ciências
Humanas), Científico (ênfase em Ciências Exatas e Biológicas) e
Normal (formação de professores primários). Minha intenção
,era
fazer o Científico (adorava matemática e em especial biologia e so-
nhava fazer Medicina), mas acabei optando pelo clássico, pois tam-
bém adorava História, Geografia, Línguas. Pensei na possibilidade
de fazer Letras ou História e, posteriormente, tornar -me professora,
mas, como insistia, “não de crianças”. Tratava -se de negar o destino
desejado por minha mãe e seguido por várias das minhas amigas
de infância: fazer Normal e me tornar professora primária.
Como eu estudava à noite (o curso Clássico tinha menor de-
manda e só era oferecido nesse período) e não trabalhava (meu pai
fazia questão absoluta de que eu me dedicasse integralmente ao
estudo), passava o dia lendo e estudando. Dava também aulas par-
ticulares em casa, de Português e Francês, para colegas de séries in-
feriores que “iam mal”. Assim, conseguia ter algum dinheiro para os
cinemas, teatros, comprar livros da Livraria Francesa, na rua Barão
de Itapetininga, centro de São Paulo.3
Já cursando o Clássico, vim a saber que o colégio era conside-
rado uma das melhores instituições públicas de ensino da cidade
de São Paulo. Lá lecionavam professores que marcaram minha vida
e definiram meus rumos acadêmicos. A professora de Biologia,
3 Interessante pensar que nesses tempos tínhamos uma certa liberdade de ir e
vir. Num bairro periférico, para fazer as pesquisas que a escola demandava (e não
eram poucas) tinha que ir a bibliotecas, e já no último ano do ginásio, aos 14 anos,
frequentava bibliotecas públicas, o que exigia tomar ônibus sozinha e ter alguma
desenvoltura para andar no centro de São Paulo, onde ficavam a Biblioteca Mário
de Andrade, a Livraria Francesa, os cinemas dos finais de semana (sempre à tar-
de, para chegar em casa antes das 19 ou 20, por imposição de meu pai).
145LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Walburgis, nos estimulava a fazer experiências em casa e sempre
nos levava ao laboratório do Colégio; Vera de Athayde Pereira, pro-
fessora de Geografia, falava das Ligas Camponesas para crianças de
13 ou 14 anos, que pouco sabiam do mundo; José Chalita, exigen-
te, sempre de cara fechada, me despertou verdadeiro fascínio pela
História; Dirce Morse, professora de Português, que além de, já no
Ginásio, nos fazer decorar Os Lusíadas, de Camões, no Clássico mar-
cava com grupos de alunos idas ao teatro aos sábados, estimulando
a abertura de nossas perspectivas culturais e horizontes de reflexão.
Mário Argentini, professor de francês, nos estimulava a ler os clássi-
cos da literatura francesa e nos obrigava a ir ao cinema: aficionado
por filmes franceses, tornava-os objeto das aulas de conversação.
Foi assim que tive contato com a Nouvelle Vague, com Godard e
outros. Maria da Penha Villalobos, professora de Filosofia, nos
introduziu não só em alguns dos temas básicos de teoria do conhe-
cimento como na literatura universal, estimulando-nos a ler clássi-
cos como Dostoiewski, Tolstoi, Sartre, Camus. Achava um absurdo
que aos 16 anos não conhecêssemos estes autores. Gerava assim
uma carinhosa e provocativa emulação. Lúcia Biojone, de Inglês,
nos introduzia aos clássicos americanos. Neusa Monteferrante nos
ensinava Latim e nos obrigava a ler Cícero... Havia ainda o teatro do
Colégio, onde se abria oportunidade de participar do coral, do gru-
po de teatro. Impossível traduzir a riqueza de discussões que esse
colégio público nos proporcionou e a excelência da formação que
nos deu, em especial considerando os limites que a origem social
de boa parte dos alunos impunha.
Foi somente no terceiro ano que decidi fazer Ciências Sociais.
Para essa opção foi decisivo um vago sentimento de oposição ao
regime (iniciei o Clássico em 1965, terminei em 1967) e uma ideia
146LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
bastante ingênua de que o curso forneceria os instrumentos teóri-
cos e práticos necessários para “mudar a sociedade”. Também me
influenciou a paixão pela História e o estímulo do inesquecível José
Chalita. Não tinha muita ideia de onde poderia trabalhar depois,
fazendo o quê, mas tinha a certeza de que era necessário buscar
ferramentas para fazer a crítica do mundo em que vivia.
Só prestei exame vestibular para a Universidade de São Paulo,
na época a única universidade pública na cidade. Entrei muito bem
classificada, num momento em que o curso era bastante procura-
do e tinha concorrência próxima à da Medicina e das Engenharias.
Se isso foi motivo de orgulho para minha família, pois eu seria a
primeira a ir para um curso Superior, também foi motivo de preo-
cupação, uma vez que não entendiam bem “para que servia” essa
carreira pela qual eu optara.
A EXPERIÊNCIA USPIANA
A GRADUAÇÃO
Iniciei a graduação em Ciências Sociais, na então Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, em 1968.
As características peculiares desse momento, dada a conjuntura
política que o país atravessava, foram marcantes para mim. Lidar
com a nova situação e a particularidade do momento foi difícil. Era
uma jovem da periferia paulistana, que havia lido muito (literatura
nacional e internacional, história do Brasil), tinha bom preparo aca-
dêmico, mas pouca experiência de vida e bagagem política: nunca
fora sequer a uma assembleia estudantil do grêmio do meu colégio,
que, por sua vez, não era muito ativo em termos políticos. Quando
147LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
comecei a frequentar assembleias na universidade, espantava -me
o reducionismo das análises políticas dos dirigentes estudantis.
Mas, obviamente, não tinha a mínima coragem de contestá -las pu-
blicamente. Simplesmente ouvia, entre perplexa e fascinada por
aquela energia que jorrava na crítica ao regime e que parecia cheia
de certezas sobre a eficácia do grito “abaixo a ditadura!”.
Embora em 1968 já estivesse em construção, no bairro do
Butantã, uma cidade universitária, os cursos de Ciências Sociais,
Filosofia e Economia da USP ainda estavam em Higienópolis, perto
do centro da cidade, na rua Maria Antonia, que se tornaria famosa
em 1968 pela batalha campal contra um grupo de estudantes do
Mackenzie, ligados ao Comando de Caça aos Comunistas.
Logo nos primeiros dias percebi que entrava em outro mundo
e me sentia um tanto estranha nele. Encontrei a Faculdade ocupa-
da pelos estudantes, em luta pela admissão dos excedentes (os que
haviam conseguido nota mínima no vestibular, mas não estavam
classificados para ingresso pela escassez de vagas), por reforma uni-
versitária, pelo fim da cátedra (eu sequer sabia exatamente o que
isso significava). As aulas demoraram para começar, os estudantes
estavam em greve e a Maria Antonia era um turbilhão. A maioria
de meus colegas havia feito curso preparatório para os exames ves-
tibulares e isso fazia uma enorme diferença: além de um lugar de
formação acadêmica para enfrentar as provas, os “cursinhos” eram,
naquele momento, antes de mais nada, um espaço fundamental de
socialização política.
O que ocorria nos corredores da antiga Faculdade de Filosofia
era surpreendente e impactante para mim (e também para uma co-
lega de colégio, Madalena Pedroso, que fizera a mesma opção de
curso que eu). Enquanto eu não tive “aula” no sentido convencional
148LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
do termo, a inquietação e o aparvalhamento cresciam. Obviamente
não percebia que as aulas estavam ali, na experiência dos corredo-
res da casa centenária, nas assembleias e discussões e na rua, ponto
de início de várias passeatas e protestos.
Nosso primeiro semestre foi bastante conturbado do ponto de
vista acadêmico. As aulas começaram tarde em relação ao que era
o calendário letivo usual e eram frequentemente suspensas para
reuniões e assembleias, onde se faziam intensas discussões sobre
reforma universitária, fim da cátedra, necessidade de comissões
paritárias para rever relações de poder bastante hierarquizadas que
marcavam a universidade. Também nelas se fazia a crítica
,ao regi-
me e o chamado para participação nas manifestações. Começava aí
uma nova frente de tensão com a minha família, em especial com
meu pai, que temia que eu participasse de mobilizações e fosse
presa. Enfim, que eu me envolvesse na “baderna”.
Durante uma nova ocupação da universidade, que ocorreu
em julho, alguns professores decidiram dar cursos de curta duração
como forma de manter a constante presença dos alunos no prédio
num período que normalmente era de férias. Não sei bem por qual
razão, escolhi o módulo oferecido pela professora Maria Isaura
Pereira de Queiroz, sobre messianismo. Possivelmente, em função
de leituras anteriores e mal digeridas de Guimarães Rosa e Euclides
da Cunha. Ela publicara havia pouco tempo seu livro Messianismo
no Brasil e no mundo (Queiroz, 1965), muito comentado nos cor-
redores. Encantei -me com o tema, com os estudos sobre o rural e
com a figura carismática de Maria Isaura. Não mais abandonei o
tema desde então, embora abordando-o, ao longo de minha traje-
tória, por diferentes lentes.
149LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Em 1968 e 1969 fiz as disciplinas obrigatórias do curso (Teoria
Sociológica I e II, Teoria Antropológica I e II, Ciência Política I e II,
Métodos e Técnicas de Pesquisa, Estatística, Introdução à Economia
e História). Fui aluna quer de jovens, quer de renomados professo-
res. Dos que mais fortemente me influenciaram neste momento,
destaco, entre os jovens, José de Souza Martins, com quem cursei
Sociologia I e que me impressionou pela seriedade com que condu-
zia a disciplina e a rigidez nas avaliações de trabalhos e seminários.
Entre os já reconhecidos, Fernando Novaes, que dedicou o curso
de História, frequentado por mais de cem alunos, ao estudo da
Revolução Francesa; e o carismático Fernando Henrique Cardoso,
com quem, em Sociologia II, tive algumas aulas brilhantes sobre
Weber. Após a quarta aula, o curso mal começando, ele foi compul-
soriamente aposentado. Fomos informados disso pela professora
Eunice Duhram, em prantos, quando esperávamos a chegada dele
na sala de aula.
A orfandade intelectual a que eu e meus contemporâneos fo-
mos condenados em 1969 pelos efeitos do AI-5 teve repercussões
profundas sobre a formação acadêmica de toda uma geração. Não
apenas perdemos a possibilidade de ter como professores os gran-
des mestres da Sociologia e da Ciência Política (Florestan Fernandes,
Otavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Paula Beiguelman,
Emília Viotti da Costa, entre outros), aposentados compulsoria-
mente no início de 1969, como também tivemos que conviver com
a decorrente desestruturação relativa do curso e a mudança, no
final do ano de 1968, da rua Maria Antonia, com todo seu simbo-
lismo, para a Cidade Universitária, localizada do outro lado do rio
150LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Pinheiros, distante do centro e de seu burburinho.4 A perplexidade
se abateu sobre os corredores da universidade que construía e pre-
zava a imagem de maior centro de pesquisas e geração de conheci-
mento do Brasil, em especial no curso de Ciências Sociais.
Nesse contexto, ao longo do curso, o trabalho com as grandes
correntes de pensamento das Ciências Sociais foi pouco sistemáti-
co, uma vez que as disciplinas básicas, a serem cursadas nos dois
primeiros anos, foram duramente afetadas pela turbulência do
período. No geral, meu contato com os clássicos deu -se nas dis-
ciplinas optativas cursadas a partir de terceiro ano, o que dificul-
tou um aprofundamento em termos da consistência interna de
alguns dos paradigmas das Ciências Sociais e de suas implicações
metodológicas.
Não por acaso, os cursos optativos de perfil teórico denso eram
os mais demandados pelos alunos que tinham maiores pretensões
acadêmicas. Dentre eles, dois tiveram especial peso na minha for-
mação teórica: Teoria Política e Sociologia do Desenvolvimento. No
primeiro, ministrado pelos professores Francisco Weffort e Lúcio
Kovarick, tive meu contato inicial com Gramsci, autor que leio e
releio até hoje e que foi fundamental fonte de inspiração teórica
na minha formação. No segundo, o professor Luiz Pereira intro-
duzia uma reflexão sobre o caráter do capitalismo nas sociedades
4 Em outubro de 1968, a Maria Antonia foi palco de uma verdadeira guerra entre
os uspianos e o Comando de Caça aos Comunistas, que tinha uma de suas ba-
ses na Universidade Mackenzie, situada bem em frente à Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras. Após esse episódio, a mudança para a cidade universitária foi
acelerada, embora ainda não houvesse nela estrutura para receber os cursos de
Ciências Sociais, Filosofia e Economia. Barracões (literalmente) foram construí-
dos às pressas e neles passamos a ter aulas. Ali ficamos até o início dos anos 1980,
pois o prédio que hoje abriga a faculdade demorou bastante para ficar pronto.
151LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
periféricas e apresentava criticamente o debate entre as diversas
correntes sobre o tema. Naquele momento, ele terminara um de
seus livros de maior repercussão (Ensaios sobre sociologia do desen-
volvimento) e trazia para as aulas as reflexões que estava fazendo e os
textos com os quais dialogava (PEREIRA, 1970). Líamos Mannheim,
Baran, Sweezy, Magdoff, entre outros. Para Luiz Pereira, a questão
era superar as abordagens econômicas e produzir, como diz o título
do livro, uma sociologia do desenvolvimento, buscando caracte-
rizar o subdesenvolvimento (categoria em voga na época), como
realização de um tipo macroestrutural, o capitalismo. Revendo
hoje esse percurso, chama -me a atenção o fato de, apesar da am-
plitude das leituras, não lermos sistematicamente nesse momento
aquele que já então era reconhecido como o grande sociólogo bra-
sileiro e o criador do que depois veio a ser chamada de “Escola de
Sociologia Paulista”: Florestan Fernandes. Em 1970, ele já estava
no exílio e amadurecia o livro que marcaria as reflexões posterio-
res sobre o Brasil: A revolução brasileira (Fernandes, 1975). Mas
tinha publicado Fundamentos empíricos da explicação sociológica,
um esforço hercúleo de reflexão sobre Durkheim, Weber e Marx,
matrizes consideradas clássicas do pensamento sociológico e dos
métodos fundantes da sociologia: o método funcionalista, o com-
preensivo e o dialético (Fernandes, 1959), bem como outras obras
marcantes como Mudanças sociais no Brasil (Fernandes, 1960) e
Sociedade de classes e subdesenvolvimento (Fernandes,1968), livros
nos quais a questão das particularidades do desenvolvimento do
capitalismo no Brasil já estava sendo esboçada. Florestan pairava
como uma sombra e uma referência nos corredores, mas era, inex-
plicavelmente, pouco lido por nós, como bibliografia dos cursos.
152LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Uma terceira disciplina marcou minha trajetória, mas por ou-
tro viés: a Sociologia Rural, oferecida pela professora Maria Isaura
Pereira de Queirós, então a grande especialista sobre o tema na
USP. Essa opção, em 1970, significou, para mim, mais do que a
perspectiva de um aprendizado teórico, a possibilidade de viven-
ciar uma experiência de pesquisa empírica e de retomar o contato
com o tema que me encantara por ocasião de meu ingresso na uni-
versidade. Graças a um convênio entre o Centro de Estudos Rurais
e Urbanos da USP, então dirigido por Maria Isaura, e o Serviço do
Vale Paraíba e o Serviço do Vale do Ribeira, instituições ligadas ao
governo do estado de São Paulo, os estudantes inscritos na discipli-
na, de caráter anual, realizavam no decorrer do ano uma pesquisa
de campo, sob orientação da Professora Maria Isaura e de orien-
tandas suas de mestrado ou doutorado,5 participando ativamente
de todas as suas fases: desde a “elaboração do quadro teórico” até
o preparo dos questionários, sua aplicação, análise de resultados e
redação do relatório final. A pesquisa de campo propriamente dita
era realizada em julho, mês de férias. Os temas
,tratados eram prin-
cipalmente a organização do trabalho no meio rural, a “racionali-
dade” do produtor (em especial pequenos e médios), o significado
social da produtividade por eles obtida no cultivo da terra. O inte-
resse pelo tema foi tão grande por parte de um grupo de alunos6
que a professora se dispôs, no ano seguinte, a nos oferecer uma
nova disciplina, para abordar as concepções desenvolvidas pelos
5 Destaco em especial Sisue Imanishi Rodrigues, de quem me aproximei bastante
e com quem trocava muitas ideias.
6 Entre eles, amigos Maria Helena Antuniassi e Candido Vieitez, com quem eu
estudava, discutia textos e ideias para pesquisas futuras.
153LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
agricultores sobre o seu trabalho, sobre o Estado, suas relações com
os demais setores da sociedade, entre outros temas.
Nas duas oportunidades, o interesse central era repensar o
suposto atraso da agricultura, provocando a reflexão sobre o sig-
nificado social da adoção ou não de inovações tecnológicas no
processo de produção. Estávamos no início dos anos 1970 e a dis-
cussão fazia eco aos debates dos anos 1960, em especial ao livro de
Caio Prado, a Revolução brasileira (Prado Jr., 1966). Mas também
repercutia a modernização que se adensava no campo e colocava
questões-chave sobre os impasses da adoção de tecnologias em es-
pecial por pequenos agricultores, como os produtores de arroz nos
polders do Vale do Paraíba.7 Não por acaso, na segunda edição da
disciplina, em 1971, o tema foi “Formação da mentalidade coletiva
no meio rural”, mas tendo por objeto de estudo os produtores de
chá no Vale do Ribeira, no município de Registro e entorno.
Se as questões referentes ao meio rural desde logo desper-
taram meu interesse, havia uma evidente contradição entre a
problemática desenvolvida especialmente por Luiz Pereira e a forma
como as questões eram tratadas na disciplina Sociologia Rural, de
caráter mais empírico. No curso de Sociologia do Desenvolvimento,
a partir dos grandes paradigmas da sociologia, representados
por Durkheim, Weber e Marx, bem como da leitura de Mannhein
(1963), procurava -se o instrumental teórico para entender o tema
do desenvolvimento/subdesenvolvimento e optava -se pela aná-
lise deste último como categoria histórica, realização de um tipo
7 Polders são terrenos baixos, planos e alagáveis, protegidos por meio de diques que
controlavam o fluxo das águas e a utilização da terra para fins agrícolas.
154LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
macroestrutural: o capitalismo.8 A pergunta básica era: o que faz
com áreas ou regiões capitalistas economicamente atrasadas se
determinem como subdesenvolvidas? Essa era a porta pela qual era
introduzida a problemática das classes sociais, dos movimentos po-
líticos e do planejamento, entendido, sob a ótica de Mannheim, ou,
na perspectiva de Luiz Pereira, como “forma histórica de controle
social inovador, racional, indireto, especializado, centralizado e
inclusive multidimensional” (PEREIRA, 1970, p. 15), capaz de per-
mitir a construção deliberada da história, a partir, como afirma-
va Pereira, de possíveis historicamente dados. Por aí chegávamos
também ao marxismo, apreendido não nas suas formulações gerais
e abstratas, mas como caminho para entender a desigualdade de
desenvolvimento entre países e regiões distintas, o papel do Estado
e da planificação, entre outras questões. Fiel à tradição uspiana, no
entanto, esse modelo não deixava de ser mesclado por elementos
de outros paradigmas, especialmente Weber, no que se refere à
8 Se fizermos um levantamento da produção sociológica da época (anos
1960/1970), é fácil perceber o quanto o tema do desenvolvimento ganha cen-
tralidade na literatura. Destaco, na USP, os estudos de Juarez Brandão Lopes,
Fernando Henrique Cardoso, Maria Célia Paoli, José de Souza Martins, Paul
Singer. Fora da USP, ressalto as obras de Costa Pinto, Celso Furtado, Helio
Jaguaribe, Rui Mauro Marini (que não eram indicadas nas disciplinas que cur-
sávamos). Tratava -se de um tema que era então objeto de discussão em toda a
América Latina, como se pode observar pelas referências contidas nesses estu-
dos, em especial Gunnar Myrdal, Andrew Gunther Frank, Osvaldo Sunkel, Jorge
Graciarena, Raul Prebish, além Hirshmann.
155LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
construção de “tipos ideais”.9 Ao mesmo tempo, adentrávamos na
leitura de Althusser e, paradoxalmente, no famoso livro de Marta
Harnecker (Harnecker,1970), que fazia uma simplificação chocante
(na minha leitura de hoje) não só do marxismo mas também do es-
truturalismo, mas que nos era indicado como guia para a complexa
leitura de Althusser.
A forte influência que toda essa discussão exercia sobre mim
e sobre alguns outros colegas trazia a necessidade de pensar nossos
interesses de pesquisa empírica tendo por base as relações entre
o meio rural e o capitalismo, em esquema semelhante ao que se
poderia utilizar para pensar os binômios desenvolvimento/subde-
senvolvimento, centro/periferia. Nossa questão era: como explicar
a relação entre o rural que estudávamos, as ambivalências dos pro-
dutores que entrevistávamos nas pesquisas de campo dirigidas por
Maria Isaura Pereira de Queiroz e o capitalismo?10
9 Os trabalhos de Luiz Pereira de maior influência eram: Ensaios de sociologia do
desenvolvimento, editado pela Pioneira em 1970, Estudos sobre o Brasil contem-
porâneo, pela mesma editora, em 1971, além é claro, de suas aulas, verdadeiros
monólogos, carregados de erudição. Cursei a disciplina em 1970, no momento
em que o livro Ensaios ainda estava no prelo. Quando o livro saiu, percebi que ali
estavam as nossas aulas. Foi um privilégio ter Luiz Pereira como mestre.
10 A preocupação que guiava as duas pesquisas que fizemos nos cursos de Maria
Isaura Pereira de Queiroz era a emergência da “mentalidade empresarial”. Uso
sempre a primeira pessoa do plural porque se tratava de impasses coletivos, que
recortavam o grupo que girava em torno de Maria Isaura. Parte dele buscava alar-
gar os horizontes de reflexão a partir de um aprofundamento da abordagem mar-
xista que nos chegava em especial pelo estruturalismo althusseriano e que fazia
grande sucesso nos corredores da USP naquele momento.
156LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
OS DESAFIOS DE ESTUDAR E TRABALHAR: DESCOBERTAS
Desde 1969, ainda no segundo ano da graduação, comecei a dar
aulas de História no ensino secundário, inicialmente no mesmo
colégio onde havia estudado, depois num curso de madureza11 e,
após, em mais dois outros colégios públicos: Escola Estadual Barão
de Souza Queiros (1971 e 1972) e Colégio Estadual Presidente Altino
(1973 a 1975). Naqueles anos ocorreu uma substantiva ampliação
das escolas públicas em São Paulo e, como não havia professores
concursados em quantidade necessária, a Secretaria de Educação
permitia aos colégios a contratação de estudantes como professores
a “título precário”, por meio da CLT.12 Sem dúvida, precisava buscar
condições de me manter e ajudar minha família. No entanto, para
além da questão econômica, as aulas me descortinaram um novo
universo de atuação, a importância da prática pedagógica em gru-
po, a necessidade de investimentos coletivos no ensino e de formar
gente com capacidade de ler criticamente seu mundo.
11 Cursos de madureza eram bastante comuns na época. Voltavam -se para o pú-
blico adulto, que havia abandonado os estudos (normalmente pela necessidade
de trabalhar) e que sentia necessidade de a eles retornar. Em um ano ou, no má-
ximo, ano e meio, os alunos recebiam aulas intensivas à noite, preparando -se
para um exame, feito pelo governo do estado de São Paulo, que dava aos aprova-
dos um certificado de conclusão do ensino colegial.
12 O “precário” do nome do contrato referia -se ao fato de que não éramos con-
cursados e, portanto, não tínhamos estabilidade. Como celetistas, podíamos ser
despedidos se chegasse à escola um professor concursado
,na disciplina ou se a
direção da escola decidisse nos despedir por uma razão qualquer. No contexto em
que vivíamos, era comum o rompimento contratual no final do ano, sem maiores
justificativas, de professores considerados mais à esquerda no espectro político.
157LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Em 1970 cheguei a fazer um novo vestibular, desta vez para
o curso de História, visando à possibilidade de dar aulas depois de
formada, uma vez que, naquele momento, era bastante instável a
situação de pessoas que, cursando Ciências Sociais, lecionavam
História. Fui aprovada, mas era impossível fazer bem os dois cursos
e, além disso, trabalhar. Acabei o abandonando ainda no primeiro
ano, mas, como se poderá ver no decorrer da minha trajetória e de
tudo o que escrevi ao longo da vida acadêmica, minha paixão por
essa disciplina foi permanente e muito marcante sua influência na
minha formação.
Na sala de aula, descobri o que posso dizer ser uma forte vo-
cação. Quer trabalhando com crianças de quinta e sexta série, quer
com adolescentes, no colegial, em geral trabalhadores que faziam
curso noturno, o desafio era aproximá -los da história brasileira de
forma mais viva. Foi um momento muito rico pessoal e profissio-
nalmente. Numas das escolas, um grupo de professores, todos estu-
dantes como eu, conseguiu traçar linhas de ação conjunta, produzir
material didático, criar uma biblioteca, fazer cruzamentos entre
disciplinas distintas (História/Geografia/Português), realizar ativi-
dades culturais nos fins de semana (idas a cinema, teatro, seguidas
de discussão em grupo sobre as percepções dos alunos). Em outra,
chegamos a criar um grupo de teatro. Obviamente, tudo isso era
muito difícil em tempos de intensificação da repressão. Os diretores
não apoiavam as atividades e queriam nos trazer para o padrão tra-
dicional de ensino... E nós, grupo ativo de professores, estávamos
lendo Paulo Freire, tentando adaptar seu método, dizendo que pro-
fessor não ensina, só ajuda aluno a aprender, estimulando os estu-
dantes a ler jornal, a discutir questões de conjuntura na sala de aula,
escolhendo livros didáticos que propunham uma nova leitura da
158LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
história brasileira. Buscávamos estimular e exercitar a curiosidade
e criatividade das crianças e adolescentes.13 Guardadas as devidas
proporções, animava -me a possibilidade de atuar em escolas onde
se pudesse fazer uma formação de qualidade, não para a elite, mas
para os trabalhadores e seus filhos.
No entanto, acabei seguindo para outros rumos...
O MESTRADO E O RURAL BRASILEIRO SOB OUTROS ÂNGULOS
Em 1971, já no último ano da graduação, tinha claro que faria o
mestrado para minha profissionalização como professora e pesqui-
sadora, e buscava uma opção de tema de pesquisa.
Tinha claro o desejo de continuar estudando o meio rural
mas sob uma outra ótica, distinta da que vinha exercitando com
Maria Isaura Pereira de Queiroz. Buscava um olhar que partisse da
abordagem marxista e me colocasse no campo de debates trazidos
pela minha experiência com a Ciência Política e a Sociologia do
Desenvolvimento. Por isso, procurei para me orientar o professor
José de Souza Martins.
Martins, nesse momento, era bastante jovem (tinha pouco
mais de 30 anos) e acabava de ser credenciado como professor da
pós- graduação. Era ligado a Florestan Fernandes, a Luiz Pereira e às
preocupações desses pesquisadores referentes às particularidades
do capitalismo brasileiro. Embora já tivesse sido aluna de Martins
na disciplina Sociologia I, quando do meu ingresso na FFCL/USP,
13 Nesse momento foi importante e estimulante o uso de um livro didático bas-
tante inovador (e, por isso, talvez não reeditado) escrito por Ilmar Rohloff de
Mattos e colegas (Mattos; Dottori; Silva, 1972).
159LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
e conhecido seu rigor, por vezes mesclado com rispidez em relação
aos estudantes, ele se tornou uma possibilidade concreta de orien-
tação quando o vi expondo, em 1971, numa reunião da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência, em Curitiba, um trabalho
sobre frentes de expansão e frentes pioneiras, depois publicado no
livro Capitalismo e tradicionalismo (Martins, 1975). Na comunica-
ção se desenhava a abordagem que me fascinava e se contrapunha
àquela de Maria Isaura Pereira de Queiroz: tratava -se de, a partir de
um ponto de vista sociológico, entender “quais as relações sociais
que tornam singular o sistema social na zona pioneira” (Martins,
1975, p. 44). Esta era compreendida como instauração de um em-
preendimento econômico, que tinha como ponto de partida a
propriedade privada da terra, impondo a “mediação da renda da
terra entre o homem e a sociedade” (Martins, 1975, p. 47). Nessa
concepção estava embutida uma questão que me aparecia como
central: as tensões de classe que emergiam com a transformação da
terra em mercadoria, mas que eu só conseguia perceber, naquele
momento, em termos bastante abstratos.
Aprovada na seleção, comecei o mestrado em 1972. Na USP
não entrávamos no “programa de pós”, mas sim éramos aceitos
por um orientador. Era que ele quem escolhia seus orientandos,
segundo critérios por ele definidos e, dentro da tradição da insti-
tuição, tinha plenos poderes sobre os estudantes. Na sua primeira
seleção, Martins selecionou oito candidatos, alguns de São Paulo,
outros de diferentes partes do Brasil, uma vez que a excelência da
Universidade de São Paulo e a escassez de mestrados no país a tor-
navam um polo de atração para jovens pesquisadores. Dessa turma
fizeram parte, entre outros, Rubem Murilo Leão Rego, Walquiria
Domingues Leão Rego, Élide Bastos, Candido Vieitez (colega de
160LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
graduação e de muitas calorosas discussões teóricas e que havia
feito comigo os cursos ministrados por Maria Isaura Pereira de
Queiroz), José Vicente Tavares dos Santos, Camilo, Mirna.14 Com ex-
ceção dos dois últimos que abandonaram o mestrado em momen-
tos diferentes, por diversas razões (a maior parte delas ligadas ao
“modo USP de ser”), os demais fizeram carreira acadêmica. Mais
do que colegas, nos constituímos em grupo de amigos e de estudo,
de discussão das grandes questões nacionais, das dificuldades que
a vida nos reservava num contexto de forte repressão política, de
jantares e festas inesquecíveis, de idas ao cinema e ao teatro.15
Martins defendia uma Sociologia das Sociedades Agrárias em
oposição à ideia de uma Sociologia Rural, tal como formulada pelo
empirismo norte-americano, disseminado nas escolas de agrono-
mia, por um lado,16 e pela escola francesa, da qual se aproximava
Maria Isaura Pereira Queirós, por outro.17 Voltava -se contra a ten-
tativa de formular o objeto dessa sociologia como uma realidade à
parte, universo sui generis, componente de uma dualidade rural/
14 Infelizmente, não lembro o sobrenome desses dois colegas. Mesmo assim,
acho importante referenciá -los.
15 Desse grupo, não fazia parte Candido Vieitez, que ao longo da convivência no
mestrado era bastante retraído em relação à vida social. Como os anteriormente
citados, abandonou o mestrado na USP e o tema original, caminhando para
estudos sobre assuntos ligados à Educação.
16 O representante dessa corrente com quem tivemos contato de leitura, num
curso oferecido por Martins, era Everett Rogers.
17 Maria Isaura Pereira de Queirós difundiu no Brasil os trabalhos de Henri
Mendras sobre Sociologia Rural. Ver, por exemplo, a coletânea Sociologia rural,
por ela organizada (Queiroz, 1969). Na introdução, ela se posicionava critica-
mente em relação à sociologia americana, mas mostrava também seus pontos de
divergência com Mendras.
161LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
urbano; procurava também mostrar como o que ele considerava,
inspirado em Robert Nisbet, o caráter conservador da origem da
sociologia se explicitava nos temas por ela eleitos e nas dualidades
nela presentes.18
,O interesse principal das reflexões de Martins era desvendar a
singularidade da realização do capitalismo que, no caso do Brasil,
segundo o autor, reproduzia ou convivia com formas de produção
que não lhes eram próprias, formas não capitalistas. Tratava -se de
uma preocupação derivada das reflexões de Florestan Fernandes
e alimentada pela aproximação de Martins com o marxismo
lefebvriano.19 Ao longo da disciplina, lemos Marx (capítulos de O
Capital, em especial “A Mercadoria”, e a parte referente à renda
da terra, na qual começamos a realmente nos enfrentar quer com
as dificuldades teóricas do texto, quer com a reflexão sobre suas
implicações para entender a questão fundiária no Brasil). Lemos
também Kautsky (A questão agrária), Lenin (O desenvolvimento
18 Esse foi um dos temas centrais do curso Sociologia das Sociedades Agrárias mi-
nistrado por Martins aos seus orientandos em 1973. Grande parte dos textos lidos
está na coletânea Introdução crítica à sociologia rural, editada pela Hucitec, em
1981. Do ponto de vista teórico, os inspiradores de Martins eram Karl Mannheim
(1963), então bastante lido na USP e referência também para Luiz Pereira, e
Robert Nisbet (1969), que analisava o que ele chamava de ideias elementos da
Sociologia, como uma alternativa à aproximação da história dessa ciência pelos
autores ou pelos sistemas. Assim, partia de cinco ideias elementos para analisar a
tradição sociológica: Comunidade, Autoridade, Status, Sagrado e Alienação.
19 Em 2013 participei de um Seminário na USP em homenagem a José de Souza
Martins, no qual apresentei um texto que aborda a continuidade das reflexões
de Florestan em Martins (Medeiros, 2018a). Nele exploro um pouco mais a ideia
de produção capitalista de relações não capitalistas de produção e as influências
sobre esse autor do pensamento de Henri Lefebvre. As apresentações do seminá-
rio, acrescentadas de outros artigos, foram publicadas num livro organizado por
Fraya Frehse, que também organizou o referido evento. Ver Frehse, 2018.
162LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
do capitalismo na Rússia), Rosa de Luxemburg (A acumulação do
capital), Lefebvre (obras que apresentavam conceitos de Marx e
de Lenin e que se constituíram num importante guia para a leitura
desses autores)20.
O desafio que se colocava para assumir essa abordagem como
eixo de reflexão teórica e caminho para a pesquisa era o conheci-
mento do paradigma marxista com o qual, de alguma forma, eu e
meus contemporâneos tínhamos tido contato num nível extrema-
mente superficial na graduação. Falávamos das categorias marxis-
tas, mas não sabíamos bem como utilizá -las em análises “concretas
de situações concretas”. Muitas vezes o fazíamos por meio da versão
didática e de corte estruturalista de Marta Harnecker, com a qual
travei meu primeiro contato nos cursos de Luiz Pereira. Pouco sabí-
amos sobre o método dialético. Dessa perspectiva, Henri Lefebvre
foi uma importante descoberta e contraponto.
Diante dessas dificuldades teóricas, alguns colegas de mes-
trado e eu, em 1973, iniciamos, por conta própria, a leitura de O
Capital. Essa opção, aliás, estava sendo feita por diversos grupos
de estudantes de pós- graduação: os grupos de leitura proliferavam
na USP e na PUC/SP, representando um grande esforço de pesso-
as ansiosas por fazer uma “ciência crítica”, comprometida com a
transformação da sociedade. Sem dúvida, num quadro de extremo
20 Destaco em especial a introdução de Lefebvre ao pensamento de Lenin, es-
crita em 1955 (Lefebvre, 1977) e sua proposta de leitura sociológica de Marx
(Lefebvre, 1969). Também por indicação de Martins, mas não como bibliografia
de curso, li outro livro de Lefebvre, que me marcou muito, sobre as transfor-
mações ao longo de 400 anos da região de Campan na França, publicado pela
Presses Universitaires de France em 1963 e mais recentemente traduzido pela
Edusp (Lefebvre, 2011).
163LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
fechamento político, com intensa repressão, essa era uma opção
política ou, pelo menos, assim o percebíamos na época. Ler O Capital
aparecia-nos, para além da apropriação das categorias centrais do
pensamento marxista, como forma de resistência, como caminho
para a produção de conhecimento por meio de um modo de pensar
a realidade que implicava ação sobre ela.21 Essa opção era, eviden-
temente, eco do lendário grupo de leitura de O Capital que reuniu,
no início dos anos 1960, José Arthur Gianotti (Filosofia), Fernando
Henrique Cardoso (Sociologia) e Fernando Novais (História) e que
agregou, entre outros, Octávio Ianni (Sociologia), Bento Prado Jr
(Filosofia), Roberto Schwarz (Literatura), Paul Singer (Economia),
Ruth Cardoso (Antropologia), Michel Lowi (Filosofia).
Para os que tinham a “questão agrária” como objeto de estudo,
muitos eram os problemas trazidos por essa leitura. Em primeiro
lugar, tratava -se de dar conta de conceitos básicos como valor,
mais valia, trabalho concreto, trabalho abstrato, capital constante,
capital variável, entre outros, e, por meio deles, obter o instrumen-
tal necessário para entender as reflexões de Marx sobre a renda da
21 Um diálogo com os tempos atuais: apesar do contexto repressivo, das recor-
rentes notícias de colegas e mesmo de professores que haviam sido presos, nos
corredores e nas salas dos barracões, tínhamos liberdade de diálogo. Apesar de
sussurros sobre a presença de “infiltrados” nos corredores, parece que a ditadura
estava mais preocupada com ações concretas. Após a cassação de uma série de
professores em 1969 e de algumas prisões nos anos que se seguiram, os cursos
prosseguiam dentro de uma certa “normalidade possível”. Claro, possivelmente
havia um medo introjetado, mas o fato é que tínhamos acesso à literatura mar-
xista e, cada vez mais, em português. Chamo a atenção para a publicação, ainda
no final dos anos 1960, da tradução de O Capital e também das obras de Gramsci,
pela Civilização Brasileira, uma das editoras mais perseguidas (com negativa de
empréstimos públicos, apreensão de livros, entre outras sanções), mas muito ati-
va no regime militar.
164LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
terra e responder a um conjunto de questões. O capitalismo “pene-
trava” ou se “desenvolvia” no campo e, no entanto, não generalizava
as relações de produção “tipicamente” capitalistas, ou seja, o traba-
lho assalariado. A “pequena produção” parecia ter “ainda” um sig-
nificado econômico e social importante, em todas as suas formas
(pequena propriedade, posse, parceria, arrendamento), apesar das
profecias sobre seu desaparecimento.22 O assalariamento tendia a
crescer, mas sob forma de trabalho temporário, gerando um con-
tingente que alternava trabalho agrícola com “biscates”, trabalho
urbano ou mesmo desemprego.23 A forte concentração da proprie-
dade da terra permanecia ou até mesmo se intensificava, ao longo
do processo de crescente modernização tecnológica. As relações
de produção, salvo em áreas onde se verificava um processo mas-
sivo de expropriação e expulsão, mantinham o mesmo padrão que
uma década antes provocara sua classificação como “semifeudais”.
Essa complexidade nos instigava, mas a ênfase era colocada nas
categorias produção e reprodução das relações de produção, lidas
estritamente sob a ótica da reprodução do capital. Só mais tarde
consegui perceber melhor as dimensões de poder, das formas de
dominação envolvidas nesse processo, que não se explicavam
22 As aspas referem -se a termos correntes no debate da época. Ganhava espe-
cial relevo a discussão sobre a “pequena produção” que se referia a uma forma
considerada não capitalista, presente na sociedade brasileira, e que muitas vezes
era identificada com o campesinato, categoria destinada à extinção para autores
como Marx, Lenin, Kautski.
23 Um dos livros de grande sucesso na época e que causou grandes polêmicas foi
O boia-fria. Acumulação e miséria, de Maria Conceição D’Incao (D’Incao,
,1975).
Nele, a autora procurava analisar o surgimento do boia-fria como uma manifes-
tação histórica da contradição básica do capitalismo e apontava a possibilidade,
no seio desse contingente, de uma “prática negadora do sistema”.
165LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
somente a partir do desvendamento da dimensão capitalista (ou
não) dessas relações.
Tratava -se de dar conta do não “típico”, sem entendê -lo como
resquício de um modo de produção anterior ou como algo irremedia-
velmente condenado ao desaparecimento. Desenvolvia -se então (e
Martins era um dos que mais avançavam nessa direção) a tese da re-
produção capitalista de relações não capitalistas de produção, dife-
renciando -se enfaticamente o não capitalista de pré-capitalista.24 O
debate era ainda alimentado pela discussão sobre o caráter desigual
desse desenvolvimento, sempre tendo como fonte os clássicos mar-
xistas: Lenin (que tratava da necessidade histórica da diferenciação
do campesinato), Rosa de Luxemburgo (a reprodução ampliada do
modo de produção capitalista depende de um meio não capitalista
para dele se alimentar) e o próprio Marx, por meio das discussões
sobre as condições para que o trabalho se antepusesse livremen-
te diante do capital. Essas eram leituras obrigatórias para os que
buscavam entender a complexidade das relações de produção no
campo, tema por excelência do início dos anos 1970. A elas se so-
mava o seminal texto sobre as formações econômicas pré-capitalis-
tas de Marx que nos chegava por meio de uma edição do Cadernos
Passado y Presente e que continha uma importante introdução es-
crita por Eric Hobsbawn (Marx; Hobsbawn, 1972).
Outra dimensão da nossa reflexão era a teoria da renda fun-
diária, caminho para entender o significado econômico e político
24 O termo pré-capitalista, recusado por Martins, supunha que o capitalismo ten-
deria a hom*ogeneizar as relações de produção no campo. O seu interesse maior,
na trilha de Florestan Fernandes, era justamente pelos fenômenos singulares,
marcados pela historicidade das formas concretas de realização do capitalismo.
166LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
da propriedade da terra e do que entendíamos como “bloqueio” ao
desenvolvimento das relações capitalistas no campo. Também so-
bre essa discussão Martins tinha uma influência muito grande, na
medida em que talvez tenha sido pioneiro no Brasil em retomá -la
para, a partir dela, refletir sobre alguns aspectos de história agrá-
ria brasileira (a constituição da propriedade capitalista da terra no
país e as tensões sociais decorrentes).25 O problema central que se
colocava era o de entender a renda absoluta, vista como resultado
da apropriação privada do solo e da baixa composição orgânica do
capital aplicado nas atividades agrícolas. Tratava -se de um debate
com duas dimensões: de um lado analisava -se a existência da pro-
priedade privada da terra como fator de elevação dos preços dos
produtos agrícolas e entrave para a livre aplicação de capitais na
agricultura. De outro, com base em Lenin, destacava -se o poder
político dos proprietários fundiários e a dificuldade da nacionali-
zação do solo, à medida que esta passava a se constituir, a partir de
um determinado momento histórico, em ameaça a todas as formas
de propriedade (Lenin, 1973 e 1978).
Todo esse conjunto de questões teóricas (com implicações
políticas) permeavam minhas tentativas de construir um obje-
to de pesquisa para a elaboração da dissertação de mestrado, até
então vagamente definida como sendo o estudo das condições do
desenvolvimento do que se considerava um dos bolsões de atraso
do estado de São Paulo: o Vale do Ribeira. Este tema era diretamente
derivado da problemática “desenvolvimento/subdesenvolvi mento”,
tal como colocada por Luiz Pereira.
25 Esse foi o tema de um livro seminal: O cativeiro da terra (Martins, 1979).
167LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
As dificuldades com a forma de orientação dos estudantes
adotada por Martins (marcada ao mesmo tempo pela autonomia
que nos era concedida e pela falta de um diálogo mais intenso), a
ruptura da quase totalidade dos orientandos com ele, com pedido
de tutela coletiva provisória à Comissão de Pós- graduação da USP
em início de 1974, me levaram à mudança de orientador.26 Não es-
tava colocada em questão nem a qualidade acadêmica de Martins
nem o meu desejo de fazer mestrado, mas a constatação de que o
diálogo tanto acadêmico como pessoal ficara travado.
Para os que optaram por orientadores da Sociologia, a pas-
sagem foi direta. No meu caso, optei por um professor da Ciência
Política e precisei fazer nova seleção, com garantia de que, se apro-
vada, teria reconhecidos os créditos em disciplinas. Reingressei no
mestrado em 1975, sob orientação de Braz José de Araújo. Recém-
chegado de Paris, onde fizera o doutorado com Nicos Poulantzas, ele
estava muito interessado nas discussões sobre o agrário no Brasil.
A essa altura, eu já havia abandonado as preocupações com
o tema original e cada vez mais me aproximava de uma aborda-
gem mais propriamente política do rural, sem deixar de lado as
antigas preocupações. Ainda em diálogo (indireto) com as teses
de Martins, defini o debate em torno da reforma agrária nos anos
26 Como já apontado, compunham esse grupo, além de mim: Elide Rugai Bastos,
Walquíria Domingues Leão Rego, Rubem Murilo Leão Rego, Candido Giraldez
Vieitez. Já havia sido desligada, em 1973, de forma compulsória, a colega Mirna.
Sobre esse episódio pairava um silêncio sepulcral, mas ele refletia a forte hierar-
quia e os resquícios do peso da cátedra na cultura uspiana. O fato de todo o grupo
ter prosseguido na vida universitária indica não só que tínhamos algum poten-
cial, mas que também resistimos juntos às relações de poder que eram parte da
cultura institucional da universidade. Aziz Ab’Saber, então diretor da FFCL/USP,
referendou nossa demanda e garantiu nossa continuidade na pós- graduação.
168LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
1950/1960 como tema da dissertação. Inspiraram -me suas afirma-
ções de que “através de procedimentos políticos e legais, portanto,
as classes dominantes podem submeter a questão agrária ao rótulo
de demanda social por reforma agrária. Isto é, o problema real é
reduzido à visão que aquelas classes têm sobre os conflitos sociais”
(Martins, 1975, p. 54), o que me conduziu para outras questões teó-
ricas e exercício de novas metodologias de pesquisa.
Continuei o esforço de operar a partir de categorias marxis-
tas, mas tentando atualizá -las e problematizá -las, ainda sob forte
influência das reflexões de José de Souza Martins, para responder
à complexidade das relações sociais no campo e entender o lugar
da agricultura no desenvolvimento do capitalismo. Duas linhas de
interpretação se configuravam então e polarizavam os estudiosos
com quem tínhamos contato mais direto na USP. Uma delas apon-
tava para uma tendência à expansão do assalariamento no cam-
po, à unificação dos custos de mão de obra e, em consequência,
à modernização da agricultura e à proletarização. Nessa corrente
ganhavam destaque Vinicius Caldeira Brant e Maria da Conceição
D’Incao. A outra defendia a vitalidade da “pequena produção” e
procurava refletir sobre as condições de sua reprodução, entendida
como produto do próprio desenvolvimento do capitalismo. Ambas
tinham como interlocutores, de forma mais ou menos explícita, os
autores que, na década anterior, apontavam para o caráter semi-
feudal do campo brasileiro (como Alberto Passos Guimarães, por
exemplo); os que recusavam essa tese, enfatizando o caráter capi-
talista das relações de produção no campo (Caio Prado Jr) e os que
discutiam as particularidades do capitalismo brasileiro, em espe-
cial a “produção capitalista de relações de produção não capitalis-
tas” (José de Souza Martins). Neste momento eu desconhecia, uma
169LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
vez que pouco discutidas
,na USP, as pesquisas e debates realizados
no Programa de Pós- graduação em Antropologia Social do Museu
Nacional sobre campesinato.
Se esse era o debate na sua forma acadêmica, é essencial assi-
nalar seu recorte político: qual a natureza da questão agrária brasi-
leira? Seria possível pensar em aliança operário-camponesa se esta
última era uma classe irremediavelmente condenada ao desapare-
cimento? Não estaria se constituindo no campo uma classe operá-
ria que anunciava uma era de transformações mais profundas? Se
estava em curso um processo de proletarização no meio rural, fazia
sentido ainda falar em reforma agrária? Quais segmentos tinham
sido os protagonistas das lutas no campo no período que antecede-
ram o golpe?
Sob orientação do professor Braz Araújo, comecei a refle-
tir sobre as relações entre Estado e agricultura, especialmente do
ponto de vista do que era então pensado como “inviabilidade” do
desenvolvimento do capitalismo no campo, tendo em vista a “troca
desigual entre agricultura e indústria”, tema fartamente discutido
pelos estudiosos do rural. Mais uma vez minhas preocupações se
dirigiam para as questões de caráter estrutural e que eram sinteti-
zadas na discussão em torno dos obstáculos à acumulação de capi-
tal na agricultura.
Constituímos, sob orientação desse professor, um novo grupo
de leitura de O Capital, no qual as indagações antigas sobre o cará-
ter das relações de produção se somavam às novas, sobre as condi-
ções da acumulação capitalista no Brasil. Esse grupo era composto
por orientandos de Braz Araújo: além de mim, José Manoel Baltar,
Leila Maria Blass, Maria Alice Setúbal de Souza e Silva, Ricardo
170LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Abramovay, Volia Regina Kato e Walquíria Domingues Leão Rego,
esta também ex-orientanda de Martins.27
Neste momento, eu já havia elaborado um longo texto intitu-
lado Síntese das análises das classes sociais no meio rural brasileiro,
apresentado num seminário da PUC/SP. Nele percorri uma vasta
bibliografia e discuti centralmente o tema da natureza das relações
de produção, em especial o lugar do campesinato, definido como
produtor simples de mercadorias e proprietário de seus meios de
produção. A conclusão a que chegava era a da presença constan-
te do dualismo nas análises: tradicional/moderno, campo/cidade,
feudalismo/capitalismo, semicapitalismo/capitalismo. Apontava
ainda que a superação desse dualismo só se dava quando a ótica
privilegiada era a da reprodução do capital e as classes eram es-
tudadas como um sistema de relações contraditórias produzidas
no interior do modo de produção capitalista. O trabalho também
fazia crítica ao modelo em que muitas vezes se transformou o modo
de produção capitalista, sendo que tudo o que não se enquadras-
se no binômio salário/capital era considerado “impuro” ou “atí-
pico”. Ou seja, também aí retomava a reflexão sobre a necessidade
de dar conta das relações que escapavam aos modelos analíticos e
que cada vez mais demandavam uma problematização. Num tex-
to seguinte, O desenvolvimento do capitalismo no Brasil, avançava
27 Mesmo após o professor deixar de acompanhar o grupo, continuamos nos
reunindo, uma vez por semana, discutindo, a cada encontro, alguns capítulos.
Nesse processo conseguimos fazer a leitura de todos os volumes editados pela
Civilização Brasileira, mas não tivemos fôlego para prosseguir e explorar outros
textos de Marx. É interessante notar que Martins também constituiu um pou-
co depois um grupo de leitura do mesmo autor. Destaco esse fato, para mostrar
como, em meados dos anos 1970, conhecer o pensamento de Marx era visto
como fundamental em nossa formação teórica.
171LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
incorporando um debate mais contemporâneo europeu, em espe-
cial autores como Louis Perceval (1969), Pierre-Philippe Rey (1973)
e Álvaro Cunhal (1968), autores a que tive acesso por meio de
Braz Araújo.
A revisão da bibliografia também me trouxe para o tema da
reforma agrária. Esta era vista por vários autores consultados como
o caminho para superar os restos feudais da agricultura e promo-
ver a “liberação das forças produtivas” e o desenvolvimento do
capitalismo no campo. Tratava -se de uma discussão essencialmen-
te política e normativa.
Não foi difícil constatar como o debate sobre a reforma agrária
foi decisivo na conjuntura que precedeu o golpe empresarial mili-
tar de 1964 e como diversas forças sociais se mobilizavam em torno
dela. Foi por esse viés, cruzado com a problemática das condições
em que se dava o desenvolvimento do capitalismo no campo, que
defini o tema da minha dissertação de mestrado: a luta em torno da
reforma agrária nos anos 1950 e início dos anos 1960. A pesquisa
para a dissertação foi iniciada em 1976, mas só foi finalizada em
1982. Os compromissos profissionais por mim assumidos (tratados
mais adiante) retardaram bastante seu término. Do ponto de vista
que interessa aqui, isso significa que ela atravessou um largo perí-
odo de amadurecimento profissional, contato com novos temas e
abordagens, novos grupos de pesquisa, o que implicava que cada
retomada da dissertação me obrigava a uma revisão crítica do que
já fora feito.
Na construção do objeto de estudo, retomei minhas preocupa-
ções teóricas, mas procurei lê -las sob a ótica das relações políticas.
Chamou -me a atenção o debate, de inspiração leninista, que come-
çava a tomar corpo no Brasil, sobre as “vias” de desenvolvimento
172LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
capitalista. Nesse momento, as leituras que havia feito de e sobre
Gramsci, tanto na graduação quanto no mestrado, mostraram -se
particularmente frutíferas.28 Trabalhando com os conceitos de he-
gemonia e correlação de forças, procurei escapar das teses que
utilizavam as “vias” como modelos estáticos de desenvolvimento.
Em Gramsci, consegui perceber um caminho para a recuperação
da história, a necessidade de trabalhar com o particular, de veri-
ficar, em cada conjuntura, os desdobramentos das lutas de classe.
Tentava abrir caminho para pensar os resultados do desenvolvi-
mento do capitalismo no Brasil fora do dilema “via prussiana” ou
“via farmer” e, assim, manter a reflexão sobre as particularidades
do Brasil, que, desde o contato com Martins, me era muito cara.
Que latifúndio era esse que fazia demandas ao Estado que
levavam à modernização tecnológica? Que burguesia era essa que,
no seu desenvolvimento, tinha um pé fortemente preso nas ativi-
dades agrícolas? Interessava -me recuperar a dimensão política da
questão agrária. No decorrer da pesquisa apareceu -me a questão
de como, em algumas conjunturas, determinadas classes podem
se apropriar das demandas de outras, redefinindo-as. Sob essa óti-
ca, procurei equacionar o significado da questão agrária para cada
uma das forças presentes, sua transformação em projetos de re-
forma agrária e o seu desdobramento numa conjuntura bastante
particular, de crise de hegemonia, em que eu procurava mostrar os
limites conjunturais das alianças políticas. O movimento operário
28 Neste período (1976-1977) o estudo de Gramsci era recorrente na USP, sendo
utilizado como crítica em relação ao estruturalismo althusseriano. Meu contato
com esse autor, como já explicitado, se deu por meio das disciplinas ministradas
por Francisco Weffort e que cursei tanto na graduação como no mestrado.
173LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
lutava dentro de organizações que a literatura dizia serem tuteladas
pelo Estado: os sindicatos. Procurava -se, do ponto de vista interpre-
tativo corrente, enquadrar o movimento camponês dentro desses
mesmos limites. Ao mesmo tempo, a burguesia industrial mostrava
na sua prática de classe que transformações na estrutura da pro-
priedade da terra não lhe eram particularmente importantes. Foi
na elaboração desse trabalho que a questão das lutas no campo co-
meçou a me despertar interesse. Voltei -me mais sistematicamente
,pelo recentemente publicado Late Capitalism
de Ernest Mandel, numa versão revisada no inglês em 1976.
Tudo isto convivia desconfortavelmente com a literatura de
segunda geração das teorias de dependência que dominava os es-
tudos latino-americanos e que oferecia uma continuação mais so-
ciológica à análise da CEPAL da Raul Prebisch do subdesenvolvi-
mento estrutural na América Latina que, na sua análise, resultava
da integração com os mercados globais por meio da exportação de
matérias-primas. Os textos curriculares fundamentais neste caso
eram de Teotônio dos Santos, Cardoso e Faletto e, sobretudo, de
Gunder Frank, que se inspirava no marxismo de Baran e Sweezy, e a
Monthly Review. No IMG, formamos um Comitê Latino-Americano,
cujos nomes principais eram David Booth e Ronnie Munck, e publi-
camos uma análise “trotskista” do desenvolvimento/subdesenvol-
vimento latino e contribuímos com artigos ao periódico do grupo,
que à época era chamado “Black dwarf” ou “Red mole”, não exata-
mente títulos ideais para o nosso “entrismo”.
20JOHN WILKINSON
Fernando Henrique Cardoso apresentou as suas perspectivas
sobre o capitalismo dependente num número da New Left Review,
em 1972, mas o principal debate neste periódico focalizava a in-
sistência de Bill Warren (1973) sobre a importância do desenvolvi-
mento capitalista na periferia, parcialmente confirmada por Arghiri
Emmanuel (1975), mas contestada por Phil McMichael, James Petras
e Robert Rhodes, (1975). Phil McMichael seria depois uma perso-
nagem-chave nos estudos agrários com o seu trabalho, juntamente
com Harriet Friedmann, sobre a teoria dos “regimes alimentares”
que empregava a Teoria Francesa de Regulação e a abordagem de
Wallerstein sobre Sistemas Mundiais. Robert Brenner (1977) ofere-
ceu o que muitos consideravam ser um panorama decisivo da aná-
lise de Gunder Frank, Sweezy e Wallerstein do desenvolvimento do
capitalismo, que ele caracterizou como sendo “smithiana”, inter-
pretação esta rebatida com vigor por Sweezy (1978).
Em 1972, uma edição da New Left Review dedicou dois arti-
gos críticos ao trabalho de Althusser, escritos por Norman Geras e
André Glucksmann. No mesmo ano, houve o nascimento do pe-
riódico Economy and Society, sob a liderança de Barry Hindess,
promovendo as tradições marxistas estruturalistas francesas de
Althusser e os debates marxistas sobre antropologia econômica –
Claude Meillasseux, Emmanuel Terray e Harold Wolpe. O próprio
Hindess, com Hirst, publicou Pre-Capitalist Modes of Production,
em 1975. Quijano também escreveu para a Economy and Society
sobre o tema “The marginal pole of the economy and the margina-
lized labour force”, em 1974. Enquanto me fascinava a ideia da arti-
culação dos modos de produção e embora tenha tido dificuldades
21JOHN WILKINSON
com Hindess e Hirst,2 fiquei empolgado ao ler o que para mim era a
crítica devastadora de Althusser por E. P. Thompson em The Poverty
of Theory, que saiu em 1978, e que me libertou de qualquer sensa-
ção de obrigação em tentar desvendar as sutilezas conceituais do
estruturalismo marxista.
Antes de chegar à Bahia, em maio de 1977, fiz uma parada
de duas semanas em Belo Horizonte, onde me reencontrei com
Bernardo Sorj, com quem cruzara rapidamente em Liverpool ou
Manchester, ocasião em que tivemos um típico debate marxis-
ta, com um defendendo Rosa Luxemburg e, o outro, Trotsky. Sorj,
posteriormente, seria uma grande influência na minha carreira e
parceiro na pesquisa e em numerosas publicações. Na Bahia, rapi-
damente me fiz parte da rede de extensão rural Emater, e comecei
a trabalhar na Secretaria de Agricultura e com a sua equipe de
Planejamento Agrícola, Cepa. Por razões não muito claras a mim
nem na época nem agora, nunca me integrei no ambiente da
Universidade na Bahia. Já sabia espanhol, depois de um ano em
Barcelona e em Madri, e consegui começar o trabalho de campo
em português três meses depois.
Quando apresentei o meu “problema” à equipe da Cepa, fi-
cou claro que a minha ideia de investigar a funcionalidade da
agricultura de subsistência na acumulação de capital precisaria
enfrentar a sua política central de levar crédito e assistência técni-
ca ao setor agrícola de baixa renda. O Banco Mundial estava bem
2 Poucos anos antes de iniciar o meu Mestrado, fui aceito por Barry Hindess para
um PhD sobre Merleau Ponty, mas não consegui obter uma bolsa. Este interesse
em Merleau Ponty era mais filosófico (e presunçoso, como rapidamente percebi)
e àquela altura não representava um afastamento meu do marxismo.
22JOHN WILKINSON
ativo no Nordeste do Brasil com os seus programas de desenvol-
vimento – Polonordeste e Projeto Sertanejo –, cuja meta central
era transformar o setor de pequenos agricultores por meio da mo-
dernização tecnológica e integração aos circuitos financeiros e de
mercados. Embora a funcionalidade da agricultura de subsistência
para a acumulação do capital fizesse sentido teórico, claramente
não era o objetivo das políticas que estavam sendo implementadas
no Nordeste rural.
Naquela altura, Bernardo Sorj, que havia montado um
Programa de Estudos sobre a América Latina (Pecla), com enfo-
que sobre a agricultura, convidou -me a visitar o seu grupo (que
incluía Odaci Coradini, Antoinette Fredericq, M. J. Pompermayer
e João Maia), e apresentar o meu “problema” que, neste contexto
mais acadêmico e com menor enfoque sobre políticas, foi recebido
como uma questão relevante.
O ano de 1978 marcou uma ruptura fundamental nos estu-
dos rurais na América Latina. Duas atividades de pesquisa em âm-
bito continental foram desenvolvidas, uma por Gonzalo Arroyo,
um ex-jesuíta chileno, e a outra por Raul Vigorito, esta como parte
de um programa mais amplo de pesquisas coordenado por Raul
Trajtenberg. Os dois projetos de pesquisa se originaram no México,
que se tornara refúgio para os perseguidos das muitas ditaduras no
continente, mas tinham filiações diferentes. Vigorito e Trajtenberg
se inspiravam explicitamente na tradição econômica filière, de-
senvolvida na França, que remonta a Perroux e se preocupava
com as dimensões espaciais dos componentes interdependentes
dos subsistemas econômicos. Embora as considerações teóricas
de Gonzalo Arroyo fossem semelhantes, a sua pesquisa focaliza-
va mais especificamente a relação da indústria alimentar com a
23JOHN WILKINSON
agricultura. Ambos os programas de pesquisa tiveram uma pro-
funda influência sobre os estudos rurais no Brasil. Gonzalo Arroyo
convidou a equipe de Bernardo Sorj para desenvolver estudos, que
posteriormente foram publicados numa série da Zahar, organizada
por Bernardo Sorj e Otavio Velho, dentro da estrutura do seu pro-
grama de pesquisa. Geraldo Müller, então na Cebrap, integrou -se à
pesquisa desenvolvida por Vigorito/Trajtenberg.
A ideia central que unia as duas pesquisas era que a agricul-
tura não deveria mais ser analisada como uma esfera econômica
autônoma. Em vez disso, a “agroindústria” passaria a ser o conceito
organizador, com as atividades agrícolas sendo vistas como deri-
vadas das estratégias da agroindústria, sejam elas a montante ou a
jusante. Arroyo e Pecla focalizavam principalmente as indústrias a
jusante, sobretudo nos setores de carnes e de laticínios. Em vez de
um setor agrícola independente que suprisse o mercado, o concei-
to de integração vertical foi desenvolvido para capturar a maneira
como a produção agrícola estava sendo cada vez mais determinada
e controlada pelas exigências das indústrias a jusante, assumindo a
forma de uma cadeia agroindustrial. Aqui, também, o foco não era
tanto na política agrícola, mas sim na estratégia corporativa priva-
da, nacional ou multinacional.
A tradição da filière francesa foi amplamente incorporada
aos estudos da economia industrial brasileira, especialmente na
Universidade de Campinas e na Universidade Federal do Rio de
Janeiro. A
,DE MEDEIROS
em 1967 e 1972.33 Tal trabalho fora encomendado à equipe pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag),
entidade cuja existência eu desconhecia até então. A interlocução
da equipe com a Contag era feita por meio de José Gomes da Silva,
fundador e presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária
(Abra), que mantinha estreitos vínculos com a entidade sindical e
que era pai de Graziano; de Ossir Gorenstein, assessor de Políticas
Agrícolas da Contag, e, menos intensamente, com Vera Echenique,
assessora educacional e originária do mestrado em Antropologia
Social do Museu Nacional/UFRJ.
A experiência dessa pesquisa foi muito importante para
mim. Foi meu primeiro contato com uma equipe de tradições
distintas de pensamento e multidisciplinar (agrônomos, econo-
mistas, sociólogos, extensionistas).34 Novidade absoluta para quem
se acostumara à rigidez da sociologia uspiana e suas barreiras às
interlocuções interdisciplinares para além do campo das Ciências
Sociais e História.
A necessidade de estabelecer uma linguagem comum entre
os participantes abriu espaço para um debate extremamente rico,
que me obrigava a retomar, de forma cada vez mais indagativa, a
33 Não tínhamos clareza sobre o que podia ser considerado como “pequena pro-
dução”. Usando dados das estatísticas cadastrais do Incra, buscávamos apenas
perceber o que se produzia e quanto nas unidades produtivas por estratos de
área de propriedade.
34 Participavam da pesquisa, além do coordenador (José Graziano da Silva),
Angela Kageyama, Elias José Simon, Fernando de Andrade e Souza, Flávio
Abranches Pinheiro, Maria Helena Rocha Antuniassi, Sonia Maria Pessoa Pereira
(depois Bergamasco) e Toshio Nojimoto, todos do Departamento de Economia
Rural, com exceção de Angela, recém mestre e contratada, assim como eu, so-
mente para a pesquisa.
179LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
bibliografia que eu já percorrera, com questões de caráter teóri-
co, agora interpelando-a à luz de reflexões com base em pesquisa
empírica. Precisei trabalhar exaustivamente com dados quantita-
tivos (algo novo para mim), num esforço de desvendar tendências
(dentro dos limites das preocupações teóricas já apontadas e das
dificuldades inerentes aos próprios dados) que eles indicavam.
Analisamos os dados cadastrais de cada um dos estados do Brasil e
fizemos uma síntese nacional, publicada logo a seguir (Graziano da
Silva, coord., 1978).35
Nesse exercício ficaram patentes os profundos contrastes
que marcavam a agricultura brasileira e o significado da proprie-
dade da terra. Também se evidenciou a importância econômica
da “pequena produção”, seja na forma de propriedade, seja como
arrendamento ou parceria, na produção de gêneros básicos para
alimentação e, em alguns casos, de produtos para exportação.
Ficou ainda explícita a intensa exploração a que esses agricultores
eram submetidos.36 Nossa análise mostrava que ela estava longe
de ser uma produção de “subsistência” e nos indicava algo que, à
época, diagnosticávamos como “debilidade” das transformações
capitalistas na agricultura: “o capital não tem conseguido realizar
35 Em 1980, houve nova edição, indicando a boa repercussão que o trabalho
teve. Os relatórios estaduais foram publicados mimeografados, pelo próprio
Departamento.
36 Desde os anos 1990 o tema voltou à pauta política, procurando -se enfatizar
o peso da agricultura familiar na produção de alimentos. Agricultura familiar e
pequena produção não são exatamente a mesma coisa, mas as aproxima o fato
de ganharem relevo como categorias políticas nos debates sindicais e políticos.
O tema permanece como central nos dias atuais, perante o peso do agronegócio,
mas ganhou uma nova complexidade que não tenho como explorar aqui.
180LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
a expropriação completa do trabalhador, nem revolucionar o pro-
cesso de produção de modo amplo e dinâmico” (Graziano da Silva,
coord., 1978, p. 252). Essa dificuldade era traduzida pelo papel de-
terminante da propriedade da terra; pela persistência e recriação
da pequena produção; pelo peso das políticas de modernização
do Estado, que criavam condições para a capitalização da grande
propriedade; o alto grau de exploração da mão de obra empregada,
seja de assalariados, parceiros, arrendatários ou pequenos proprie-
tários. Coerentes com o debate dominante na época, tentávamos
fugir ao dualismo (compreendido como a existência de dois setores
na agricultura: capitalista/não capitalista) e ao funcionalismo (tese
de que a pequena produção existia somente enquanto servisse aos
interesses do capital), afirmando que, incapaz de gerar lucro e ren-
da da terra, o capitalismo brasileiro abria no meio rural um espaço
para a pequena produção, voltada especialmente para a geração de
alimentos, com forte inserção nos mercados, como nossos dados
claramente demonstravam. Mas reduzíamos os impasses a uma
debilidade do desenvolvimento do capitalismo no campo, sem dei-
xar de apontar os efeitos da desorganização que o golpe represen-
tou para a incipiente articulação dos trabalhadores rurais, mas não
lhe dando a importância que anos depois procurei tematizar.
Naquele momento, investimos muito no trabalho com os da-
dos estatísticos, fizemos um enorme esforço de elaboração teórica,
mas não lembro de, em algum momento, nos termos perguntado e
conversado sobre as razões que levaram a Contag a demandar esse
estudo. Só bem mais tarde, no início dos anos 1990, numa aproxi-
mação com o Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais da
Central Única dos Trabalhadores (DNTR/CUT), é que fui perceber
a importância política da questão, tanto no sentido de afirmar o
181LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
peso econômico da categoria e buscar seu reconhecimento e políti-
cas públicas que a protegessem quanto no que ela refletia de esfor-
ço político interno de unificação da diversidade de segmentos que
compunham o sindicalismo rural e de afirmação da importância
da distribuição de terra, bandeira que a Contag alimentou desde o
final dos anos 1960.
Concluída a pesquisa, apresentamos (em especial Graziano,
liderança incontestável da equipe) os resultados em diversos semi-
nários, levando as reflexões para algumas arenas que alcançámos,
incidindo em especial sobre os debates com agrônomos e econo-
mistas. Diria que nas Ciências Sociais a discussão foi bastante limi-
tada ao âmbito da Sociologia Rural, sem grandes possibilidades de
incidir para fora dele. Afinal, todos participávamos da construção de
um campo de debates bastante fechado em termos de participantes
e de questões. Obviamente, só me dei conta disso muito depois.
Ao mesmo tempo que desenvolvíamos esse esforço de inves-
tigação, o Departamento de Economia Rural da Unesp de Botucatu
polarizava outro tipo de discussão, referente à expansão das
relações de assalariamento no campo. As Reuniões sobre Mão de
Obra Volante na Agricultura, de caráter anual e iniciadas em 1975,
lideradas pela chefe de Departamento, Sonia Maria Pessoa Pereira
(depois Bergamasco), deram visibilidade ao tema. Envolviam al-
guns dos mais importantes pesquisadores sobre o assunto e se
constituíam num significativo espaço de reflexão sobre as trans-
formações que o campo brasileiro vinha sofrendo, em especial o
processo de saída dos trabalhadores do interior das propriedades
182LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
onde viviam como “colonos”, “moradores” ou “agregados”.37Delas
participavam pesquisadores de diversas formações disciplinares,
representantes sindicais, advogados, promotores públicos da área
trabalhista, num diálogo bastante plural.
Como membro da equipe da pesquisa “Estrutura agrária e
produção de subsistência na agricultura brasileira” e ficando em
Botucatu alguns dias na semana, participei desses encontros, aju-
dando inclusive na organização, sob a coordenação da incansável
Sonia Bergamasco.
,Nesses momentos, também tive um rico apren-
dizado sobre organização de eventos, atividade em que Sonia, até
hoje, é imbatível. Vivenciei, então, duas experiências que poste-
riormente iriam ter muito significado no meu trabalho. Uma delas
foi o contato direto com sindicalistas rurais que frequentavam as
reuniões, em especial os do Rio de Janeiro, o que começou a me
trazer um novo tipo de inquietação, ligada de modo mais imediato
à ação sindical e, de modo mais geral, às práticas de classe. A outra
foi o conhecimento de algumas das pesquisas realizadas no Museu
Nacional, que faziam uma abordagem antropológica de questões
que eu vinha tratando sob uma ótica histórico-estrutural. Até então,
mantinha -me bem distante da Antropologia, área de conhecimento
pela qual não fui atraída ao longo da minha graduação na USP.
Pouco ouvira falar dessa instituição carioca (o que indica, como
37 Quando cheguei a Botucatu, logo me incorporei à equipe que preparava o
segundo encontro. O material desses encontros era publicado, mimeografado,
pelo Departamento. Inicialmente centrados na questão do trabalho rural e na
figura do boia-fria, aos poucos abrigou debates sobre o sindicalismo e sobre re-
forma agrária. A última reunião foi em 1980. Uma seleção desses trabalhos foi
publicada pela editora Polis (Departamento de Economia Rural, FCA/ Botucatu/
Unesp, 1982).
183LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
comentado anteriormente, um certo fechamento dos uspianos às
pesquisas sobre temas afins realizados em outros espaços), mas fi-
quei bastante impressionada com as reflexões que desenvolviam.38
Lado a lado com as pesquisas, tive contato com uma experiência
interessante que era a de professores do Museu Nacional que asses-
soravam os sindicalistas, em especial Afranio Garcia, assessor edu-
cacional da Federação dos Trabalhadores da Agricultura no Estado
do Rio de Janeiro (Fetag/RJ). Essa possibilidade de relação direta
com as organizações sindicais parecia -me algo muito interessante
do ponto de vista acadêmico, pelas novas questões, interpelações e
desafios teóricos que produzia.
Em 1977 foi aberta uma vaga para professor na Unesp de
Botucatu. Candidatei -me e fui aprovada no concurso. Em setembro
de 1977 assumi o cargo e abandonei as aulas na PUC de Campinas.
A partir de então fui morar de vez em Botucatu e tive a oportunidade
de experimentar outras questões, que não elaborei teoricamente,
mas que foram importantes para pensar o modelo de desenvolvi-
mento brasileiro.
No plano mais imediato, as Reuniões sobre Mão de Obra
Volante resultaram, para o Departamento, na elaboração de um
projeto de pesquisa sobre a mobilidade do trabalhador rural e a
progressiva transformação da força de trabalho em mercadoria.
38 Eu já conhecia a tese de doutorado de Moacir Palmeira, cuja leitura me havia
sido indicada por Maria Isaura Pereira de Queiroz, quando ainda era graduanda,
mas não localizava bem o autor na academia brasileira. Não sabia, por exemplo
que ele, voltando do doutorado na França, ligara -se ao Programa de Pós- gradu-
ação em Antropologia Social do Museu Nacional e coordenava uma ambiciosa
pesquisa no Nordeste, sobre emprego e renda que, só bem depois, já trabalhando
em Botucatu, vim a conhecer justamente pela participação de alguns membros
da equipe nesses seminários sobre trabalho assalariado.
184LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Tratava -se de uma demanda do Ministério do Interior (Minter),
interessado em conhecer melhor o tema das migrações internas
e assalariamento.39 Por meio dessa investigação, pude retomar a
experiência de trabalho de campo e fiquei mais atenta a questões
ligadas à organização e à reivindicação desses trabalhadores. A
pesquisa foi realizada em Mato Grosso (municípios de Dourados e
Terenos) e no sul de Goiás, áreas que estavam sendo intensamen-
te transformadas pela entrada da soja. Participei de forma direta e
intensa da pesquisa em Mato Grosso, no ano de 1978, tendo opor-
tunidade então de entrar em contato com situações que não eram
objeto central da pesquisa, mas que me marcaram muito: a peona-
gem e a produção de soja, embora em escala reduzida, em terras
indígenas. No campo, foi possível constatar a rápida transformação
em curso nessas regiões, gerando concentração fundiária, pauperi-
zação e favelização em uma área que fora um projeto de coloniza-
ção no governo Getúlio Vargas no final da década de 1940 (Colônia
Agrícola Nacional de Dourados).
O foco do trabalho era a produção e reprodução das relações
assalariadas, mas com ênfase no tema da mobilidade, uma vez que
as migrações eram constitutivas do perfil da população local. A
mobilidade, como questão teórica, foi tratada a partir das reflexões
39 A relação com o Minter se fez por meio de uma funcionária dessa agência, a
socióloga Ivany Câmara Neiva, que depois fez uma dissertação sobre a Colônia
de Ceres em Goiás e que se tornou uma grande amiga. O trabalho foi coordena-
do por Sonia Maria Pessoa Pereira Bergamasco e contou com a participação de
colegas do Departamento (Elias José Simon, Fernando de Andrade e Souza, José
Matheus Yalenti Perosa) e de pesquisadores contratados exclusivamente para o
trabalho (Alair Molina, por coincidência ex-colega de classe no curso Clássico,
Fernanda Maria Coelho, Isabel de Carvalho, José Amaral Wagner Neto, Leila de
Menezes Stein).
185LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
de Jean Paul Gaudemar (1977). De certa forma, a discussão sobre
a “pequena produção” era retomada por meio da preocupação em
apontar a instabilidade e a dificuldade de acesso mais definitivo à
terra. Parte dos nossos entrevistados era originária de famílias que
tinham tentado os projetos de colonização no Norte, em especial
Rondônia, durante o regime militar, mas não foram bem-sucedi-
dos. Outros vivenciavam a expropriação das condições de trabalho
na própria região, lembrando que, no caso de Dourados, muitos
pertenciam a famílias que, 40 anos antes, tinham ido para a região
em busca de terras, atraídos pela propaganda da Marcha para o
Oeste. Pela primeira vez pude tomar contato com as demandas dos
trabalhadores que acalentavam o sonho de ter terra ou estabilidade
e segurança no trabalho. O trabalho foi publicado (como muitos
outros na época) em formato mimeografado (Departamento de
Economia Rural, FCA/Unesp, 1979).
Além da participação nessa pesquisa, a vivência em
Botucatu me permitiu inúmeros contatos e debates. Estava num
Departamento onde a grande maioria dos professores era cons-
tituída por agrônomos. Ouvia discussões sobre possibilidades de
formas alternativas de agricultura e cheguei a assistir a debates, na
Associação de Engenheiros Agrônomos de São Paulo, em que eram
colocados em questão os parâmetros e os riscos da intensa moder-
nização agrícola que vivíamos, dando sentido histórico e atual ao
tema da sobrevivência e vitalidade do campesinato, mas também
já levantando questões sobre os efeitos perversos da moderniza-
ção. Foi nesse contexto que comecei a tomar contato com um tema
emergente, mas então marginal em especial nos debates socioló-
gicos: o da crítica ao tipo de agricultura estimulado pela revolução
186LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
verde, não só em termos do processo de expropriação que ela gera-
va, mas dos danos ambientais.
Também participava ativamente de um grupo que se reunia
regularmente na Unicamp e discutia questões agrícolas e agrárias.
Dele faziam parte José Graziano da Silva (que havia se transferido
de Botucatu para o Instituto de Economia daquela universidade,
onde fazia o doutorado); Angela Kageyama, que havia sido minha
colega de pesquisa em Botucatu; Renato Maluf, hoje meu cole-
ga no CPDA; Sérgio Silva; Maria Nazareth Wanderley, que estava
então chegando do exterior e depois se tornou minha orientado-
ra de doutorado; Sonia Bergamasco, colega de departamento em
Botucatu. Era um clima instigante de debate, num grupo peque-
,no (ironicamente chamado por alguns economistas da Unicamp
de “grupo do matinho”) que também realizava reuniões maiores e
seminários com pesquisadores de outras instituições. Nesse gru-
po, aprofundávamos a discussão sobre as mudanças pelas quais o
campo brasileiro vinha passando, as transformações no trabalho e
o aparecimento da agroindústria.
Além disso, ainda frequentava as reuniões na Associação dos
Sociólogos do Estado de São Paulo (Asesp), que estava sendo ativa-
da na época e abrigava um grupo que envolvia jovens acadêmicos
que tinham as questões do campo como seu objeto de pesquisa.
Entre eles, Ana Yara Paulino, Marilda Iamamoto, Paulo Roberto
Martins, Teresa Sales, Vera Chaia. Reuníamo-nos com regularida-
de para discutir textos publicados e também nossos incipientes
projetos de pesquisa. Em 1983 foi realizado, por iniciativa desse
grupo, um importante Seminário, posteriormente publicado pela
própria Asesp, intitulado Revisão crítica da produção sociológica
voltada para a agricultura. Nele apresentei um texto que continha
187LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
algumas ideias desenvolvidas na minha dissertação de mestrado
(Medeiros, 1984).
Menciono todos esses eventos porque eles estão na origem
da constituição de uma rede, ainda hoje bastante articulada, de
pesquisadores do mundo rural. Como já salientei, por vezes era
uma interlocução fechada, que nos levava a um diálogo intenso
entre os estudiosos do tema e pouco aberto à reflexão sobre outras
temáticas. Mas rico, porque desde a origem procurava atravessar os
limites disciplinares.
Obviamente, dando aulas, participando de grupos de estudos,
ajudando a organizar debates e seminários, a dissertação caminhou
num ritmo extremamente lento. Naquele momento, os prazos eram
alongados e não recebíamos cobranças nem pelo orientador nem
pela USP para finalizar o trabalho.
A VINDA PARA O CPDA E OS PRIMEIROS TEMPOS NO RIO DE JANEIRO
Em meados de 1978 fui convidada para ser professora e pes-
quisadora do então denominado Centro de Pós- graduação em
Desenvolvimento Agrícola, que funcionava no antigo Solar da
Marquesa, um local bucólico no final da rua Pacheco Leão, no
Jardim Botânico, aos pés da floresta da Tijuca. Era um curso novo,
que começara a funcionar em 1976, ligado à Escola Interamericana
de Administração Pública da Fundação Getúlio Vargas (EIAP/FGV).
Resultado de um convênio entre a Fundação Getúlio Vargas e
a Secretaria de Planejamento Agrícola do Ministério da Agricultura
(Suplan/MA), era uma experiência pioneira de curso interdisci-
plinar, temático e voltado prioritariamente para dar formação em
nível de Mestrado, a técnicos do setor público agrícola. Grande
188LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
parte dos alunos vinha dessa trajetória e era proveniente, em es-
pecial, das Comissões Estaduais de Planejamento Agrícola, criadas
na década de 1970 em diversos estados do país. Poucos eram re-
cém-formados e sem vínculo profissional. Isso implicava que, além
da formação diversificada (também eles eram “multidisciplinares”,
embora a maioria fosse constituída por agrônomos dedicados ao
planejamento agrícola), tratava -se, em grande parte dos casos, de
pessoas já com experiência de trabalho, em geral voltada para a
ação prática e de planejamento. Vários deles tinham experiência
anterior de militância em organizações clandestinas de esquerda.
O mesmo ocorria com aqueles que não tinham ainda inserção pro-
fissional estável, eram recém-graduados, mas buscavam no CPDA
uma formação crítica, para melhor se inserir em determinados seg-
mentos do mercado de trabalho, seja no setor público agrícola, seja
em universidades.
Em 1978, o curso passava por profundas reformulações de
seu desenho curricular e considerou -se que seria importante refor-
çar a equipe com um sociólogo. Roberto José Moreira, que havia
chegado recentemente dos Estados Unidos, onde fizera o doutora-
do, e tornara -se professor do CPDA, pediu uma indicação de nome
a seu grande amigo e ex-colega da Esalq/USP, José Graziano da
Silva, que, por sua vez, me recomendou para a vaga. Fui contrata-
da, após uma rápida conversa num seminário em Campinas com o
diretor do Centro, professor Nelson Delgado, e uma entrevista mais
longa com ele, na sede do CPDA no final de 1978. Apesar de sequer
ter o título de mestre, pesava a meu favor o currículo, em especial
a experiência de pesquisa no Departamento de Economia Rural da
189LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Unesp/Botucatu e o envolvimento em diversos grupos de discus-
são.40 Além disso, apesar de muito jovem (estava com 30 anos), já
tinha uma razoável experiência docente no Ensino Superior. Fiquei
feliz e desafiada pelo novo compromisso, o que me levou a deixar
um emprego estável numa universidade pública paulista que ga-
nhava crescente visibilidade e prestígio no terreno dos temas rurais.
Como dito anteriormente, o CPDA finalizava uma reformu-
lação curricular: voltado para a formação de técnicos em plane-
jamento, com uma pesada carga disciplinar em microeconomia,
matemática, estatística, entre outras, metamorfoseava -se em um
curso que procurava refletir sobre a realidade rural de uma pers-
pectiva macro histórica, abrindo espaço cada vez maior para os
aspectos políticos do planejamento e, consequentemente, para
as Ciências Sociais: Sociologia, Política, Antropologia. Sua carac-
terística mais marcante era a interdisciplinaridade. Do seu corpo
docente participavam economistas, sociólogos, antropólogos, his-
toriadores, cientistas políticos que traziam contribuições de suas
40 Estar na universidade sem ter o mestrado era então uma situação comum, já
que a pós- graduação ainda estava em processo de expansão no país e a forma-
lização de títulos não era uma exigência. Mesmo na USP, onde a formação de
pós- graduação era mais antiga, havia vários professores que se titularam após a
contratação. No entanto, não podiam ser orientadores da pós- graduação, posi-
ção reservada a doutores.
190LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
respectivas disciplinas para a análise da agricultura.41 Muitos eram
contratados apenas para ministrar disciplinas e cada vez mais havia
interesse em ter professores em tempo integral, que pudessem se
dedicar à pesquisa e possibilitar mais estabilidade institucional.
Além dessa diversidade de formação, também havia uma maior
variedade de paradigmas analíticos do que a minha experiência
anterior vislumbrara. Embora possa se afirmar que o marxista fos-
se dominante, eram diversas leituras do marxismo. Esse paradigma
convivia com a economia neoclássica, com uma abordagem antro-
pológica que, embora recuperando algumas dimensões da “antro-
pologia marxista”, não se reduzia a ela.
Avaliando o quadro de disciplinas oferecidas aos alunos, pa-
receu interessante ao conjunto dos professores a introdução de
uma disciplina que tratasse dos Movimentos Sociais no Campo,
como forma de dar maior concretude à discussão sobre classes
sociais feita em Teoria Sociológica. A disciplina ganhou o nome de
Organização Social no Campo e ficou sob minha responsabilidade.
De alguma forma ela dialogava com o crescimento de conflitos
fundiários, as primeiras ocupações de terra, o aparecimento do
sindicalismo rural como uma força estruturada, o clima de maior
debate que se instaurava no país desde o final dos anos 1970. Na
41 Quando cheguei, eram professores permanentes do CPDA Nelson Delgado,
coordenador; Ana Célia Castro; José Wilken Bicudo; Paulo Beskow; Roberto
Moreira, todos economistas; Antonio Carlos Nogueira e Horácio Martins de
Carvalho, agrônomos; Margarida Maria Moura, antropóloga; Silvana Gonçalves
de Paula, socióloga; Maria Yeda Linhares, Francisco Carlos Teixeira da Silva e Eli
de Fátima Napoleão de Lima, constituíam o grupo de historiadores, com traba-
lhos importantes sobre história do abastecimento. Uma pouco antes de mim,
chegou Ivan de Otero Ribeiro, economista,
,vindo do exílio, onde trabalhara na
FAO, em Roma.
191LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
montagem do programa, fiel à minha formação, procurei recuperar
toda uma discussão teórica sobre as classes no campo. Imprimi a
ela um caráter histórico, pensando a realidade brasileira e, numa
segunda parte do curso, recuperava os conflitos messiânicos, os
movimentos dos anos 1960, sindicalismo rural, entre outras formas
de ação política. Procurava enfatizar duas ordens de problemas: o
peso dos movimentos na conjuntura do país e as formas de organi-
zação dos trabalhadores.
A revisão da parca bibliografia então existente, o trabalho com
jornais consultados na Biblioteca Nacional, por mim, para elabora-
ção da dissertação de mestrado, e pelos alunos, incentivados a ir
em busca de fontes primárias, as discussões teóricas feitas, mostra-
vam claramente a impossibilidade de se trabalhar linearmente com
o esquema classe/consciência de classe. A classe com que nos pre-
ocupávamos era extremamente diversificada do ponto de vista de
sua inserção no processo produtivo, dos seus interesses imediatos,
dos móveis de suas lutas. Seria correto chamá -la “campesinato”? Ou
melhor seria falar em trabalhadores rurais, termo neutro utilizado
pelo movimento sindical, que definia uma posição na sociedade,
mas que nada dizia sobre as relações vivenciadas pelos grupos
que nos interessavam?42 Estávamos diante de uma classe ou diver-
sas classes? A discussão sobre “consciência” de classe, entendida
como progressiva capacidade desses grupos sociais de perceber
seus “verdadeiros” interesses, muitas vezes a partir da ação da van-
guarda (leia -se partido), mostrava -se difícil de operar. Em diversos
momentos parecia mesmo encobrir formas de luta e reivindicações
42 Palmeira (1985) chama a atenção sobre isso, mas procurando recuperar o uso
que o movimento sindical faz do termo.
192LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
a priori definidas como atrasadas, mas que tinham efeitos impor-
tantes na conjuntura. Para complexificar o debate contribuía a ex-
periência dos alunos, vindos de diversas partes do país, com as mais
diferenciadas experiências com as questões do campo, mas, em
geral, bastante aderidos às categorias classe/consciência/luta de
classes, em razão de suas opções políticas. Uma das situações que
me surpreendeu nos dois primeiros anos foi que, na sala de aula,
praticamente cada aluno correspondia a um grupo político distinto
e sobre alguns deles eu sequer tinha ouvido falar. Obviamente, não
havia declaração pública de posições, mas elas eram explicitadas
nos corredores, em conversas pessoais. Ofertando uma disciplina
sobre movimentos sociais no campo no Brasil, as aulas eram ani-
madas pelo debate entre diferentes concepções políticas. Para mim
foi uma experiência difícil, mas enriquecedora, buscar fazer uma
reflexão que ultrapassasse os limites das afirmações politicamente
posicionadas e os termos em que o debate era então colocado.
O CPDA me ofereceu também outros espaços de discussão
que foram fundamentais na minha formação. Quando cheguei,
estava em fase final de negociação, pela Coordenação do Centro,
um ambicioso e inédito projeto de intercâmbio que tinha por ob-
jetivo agrupar em seminários regulares pesquisadores dos mais
diferentes pontos do país de forma a trocar suas experiências de
pesquisa em torno do tema agricultura. A iniciativa, financiada pela
Fundação Ford, foi batizada de Projeto de Intercâmbio de Pesquisa
193LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Social em Agricultura (Pipsa).43 Foi -me entregue a Secretaria do
Projeto, o que significava não apenas um trabalho burocrático, mas
principalmente de organização e incentivo dos grupos e reuniões.
Ali nascia uma experiência pioneira, que articulava os dife-
rentes polos de produção acadêmica do país, não sem polêmicas:
a proposta era de que nesse espaço fossem discutidos trabalhos
ainda em andamento. Não se tratava de resultados de pesquisa,
prontos para publicação, mas de textos em construção que quises-
sem se beneficiar do debate. Muitos deles eram projetos de disser-
tação ou textos/capítulos preliminares. Não faltou quem achasse
que haveria riscos de “roubo de ideias” em iniciativas como essa.
Mesmo assim, o projeto teve forte adesão de pesquisadores, tanto
pouco conhecidos (os que, como eu, ainda estavam fazendo seus
mestrados e davam seus primeiros passos na carreira acadêmica)
quanto daqueles que já despontavam como nomes notáveis nas
Ciências Sociais voltadas para as questões rurais, como é o caso de
43 No final dos anos 1970, no contexto de luta por democratização, foram várias
as iniciativas de buscar quebrar o isolamento acadêmico e fazer balanços da
produção existente. Os únicos encontros científicos regulares no auge do regi-
me militar eram os da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC),
que se constituíram em raro espaço de exercício de liberdade de pensamento e
discussão. Para eles convergiam os principais intelectuais brasileiros. Havia tam-
bém iniciativas mais locais ou temáticas, como era o caso das Reuniões sobre
Mão de Obra Volante em Botucatu. Os congressos científicos na área de Ciências
Humanas escassearam nos anos 1970, em função da conjuntura repressiva. Na
USP fizera -se uma tentativa de criação de uma associação de alunos de pós- gra-
duação, na segunda metade dos 1970, mas não vingou. Nesse momento também
se iniciava a constituição da Associação Nacional de Pós- graduação em Ciências
Sociais (Anpocs), criada em 1977, e que, salvo engano meu, teve um grupo vol-
tado para temas rurais pela primeira vez em 1980 (Estado e Agricultura). Na
Associação de Sociólogos de São Paulo, como mencionado anteriormente, tam-
bém fazíamos encontros regulares, para discutir questões diversas, mas eram
pequenos grupos, sem financiamento.
194LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Aspásia Camargo, Beatriz Heredia, Lygia Sigaud, Maria de Nazareth
Wanderley, Sonia Bergamasco, entre muitos outros.
Constituíram -se cinco grupos temáticos que refletiam as
principais questões então tratadas pelos estudiosos do meio rural:
Agricultura na Amazônia; Estado e Agricultura; Grande Produção
Agrícola; Pequena Produção; e Movimentos Sociais. Eles expressa-
vam um espectro de questões que polarizavam os debates da época
e que refletiam de alguma forma as categorias e temas dominan-
tes na análise do rural.44 Os encontros, a princípio quadrimestrais,
depois semestrais, ocorriam em diversas cidades do país e não
ao mesmo tempo: cada grupo fazia sua agenda de reuniões. Com
isso era possível levar o debate a centros situados fora do eixo São
Paulo-Rio, em momentos diversificados. Os participantes tomavam
contato com uma riqueza e uma imensa gama de temas que esta-
vam sendo estudados, perspectivas metodológicas diferenciadas,
entre outros. Aos poucos constituiu -se um conjunto de frequenta-
dores mais ou menos constantes que iam às reuniões até mesmo
44 Chamo a atenção para dois aspectos. O primeiro refere -se à importância que
adquiria o tema “Agricultura na Amazônia”, o único com recorte regional entre os
grupos do Pipsa. O segundo, é o uso dos termos “grande” e “pequena” produção
para designar modos de agricultura. Essas nomeações indicavam as dificuldades
do debate e as fragilidades presentes na análise do campo brasileiro que então
sinalizava claramente os efeitos da modernização da agricultura. Posteriormente
o grupo “grande produção” incorporou o termo agroindústria a seu nome.
Enquanto o Pipsa existiu, os dois grupos permaneceram separados. Sem dúvida,
marcas do dualismo que está na raiz de muitas de nossas análises.
195LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
independentemente do financiamento.45 Além dos trabalhos apre-
sentados para debate, os grupos por si mesmos tornaram -se gera-
dores de questões que, na medida do possível, eram levadas de uma
reunião para outra, promovendo continuidade no tratamento
,dos
conteúdos. Nesse espaço amadureceram inúmeras dissertações de
mestrado e problemas de pesquisa.
Do ponto de vista de minha formação tanto acadêmica como
pessoal, a importância desses eventos foi enorme. Engajei -me,
para além das tarefas organizativas do Pipsa, no grupo Movimentos
Sociais. Num primeiro momento, fui tomada de uma certa surpresa
e até mesmo perplexidade ao perceber que São Paulo, em especial a
USP, ao contrário do que eu fora acostumada a pensar, não era o úni-
co centro de pensamento sociológico do Brasil. Muitos dos que pas-
saram por essa universidade foram alimentados pela crença de que
lá se encontrava o repositório por excelência da produção científica
na área das Ciências Sociais do país. Tomar contato com pesquisa-
dores de outras regiões que nunca passaram por seus corredores e
faziam brilhantes pesquisas e encaminhavam problemas teóricos
45 Os recursos da Fundação Ford eram generosos, mas, para ampliá -los e po-
tencializar a participação de mais pesquisadores, a sistemática adotada nos
primeiros anos em alguns grupos era a de usar os recursos para compra de pas-
sagens. Os pesquisadores locais abriam suas casas para abrigar quem vinha,
economizando -se recursos para hotel e instituindo um sistema de hospedagem
solidária que gerou consistentes e longas amizades. Não me lembro de alguém
ter reclamado da falta de diárias, de reserva de hotel. Tudo era feito com uma
grande dose de voluntarismo. Não faltou quem irônica e maldosamente dissesse
“entre para o Pipsa e conheça o Brasil”, sem se dar conta de que essa troca resulta-
va em conhecimento de diversas faces do meio rural brasileiro. A experiência de
ser “pipseiro” marcou vários colegas de minha geração, que ainda lembram com
saudades do “clima” dos debates. Não por acaso essa herança ainda persiste, na
Rede de Estudos Rurais, apresentada mais adiante.
196LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
e metodológicos com outras abordagens foi de extrema importân-
cia para mim, obrigando -me a relativizar determinadas formas de
pensar de que eu era portadora e colocando por terra uma certa
arrogância intelectual, típica de pesquisadores pouco maduros. Do
ponto de vista acadêmico, pude elaborar as dificuldades que tinha
para trabalhar com as questões referentes à classe/consciência de
classe, de forma a valorizar o movimento dos grupos sociais envol-
vidos em processos de conflito, suas reivindicações, seu papel e po-
sição na conjuntura, não em geral, mas naquela situação particular
que marcava cada conflito. Pareceu -me também rico o caminho de
não tratar substancialmente esses temas, mas enfatizar as relações
em que se envolviam os agentes sociais (Regina Novaes, “pipseira”
de primeira hora, sempre provocava os debates nessa direção).
Um dos eixos temáticos mais significativos com que trabalhá-
vamos no grupo Movimentos Sociais era o do sentido da luta no
campo, os “projetos políticos” que se delineavam, de acordo com a
perspectiva que tinha forte apelo analítico na época. Simplificando
um pouco a riqueza dos debates que ocorriam, era possível dis-
tinguir dois tipos de postura. Alguns pesquisadores davam peso
explicativo muito grande ao “movimento do capital”. Negando a
existência de um verdadeiro campesinato no Brasil, privilegiavam
a contradição capital/trabalho e era sob essa ótica que procuravam
pensar as possibilidades de uma ação de classe transformadora.
Outros enfatizam as reivindicações presentes nas lutas, especial-
mente a da conquista da terra, defendendo que, em determinadas
conjunturas, ela pode até mesmo assumir um caráter “subversivo”.
As perguntas que muitas vezes permeavam essa polarização se si-
tuavam em torno da possibilidade de o campesinato construir um
“projeto político próprio”, o que implicava indagar sobre seu caráter
197LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
de classe, seu estatuto no interior de modo de produção capitalista,
as alianças que poderia fazer.
No processo de discussão do grupo pude tomar contato mais
profundo com a abordagem antropológica dos movimentos sociais
desenvolvida no Programa de Pós- graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional da UFRJ e perceber a riqueza de cami-
nhos que ela abria. Sem sombra de dúvida, a pessoa que mais influ-
ência teve sobre mim pelo teor de sua participação nos debates foi
Regina Novaes. Um dos pontos sobre os quais ela constantemente
chamava a atenção era sobre a forma de trabalhar com o discur-
so político, nos forçando a refletir acerca do lugar de onde ele era
enunciado, em que circunstâncias, com que objetivo. Insistia tam-
bém a respeito da importância de perceber as relações em que os
fenômenos sociais concretamente se davam para, a partir daí, in-
terpretá -los. Subjacente, estava a concepção da consciência nas-
cendo na luta e a partir dela. Essas eram questões que me tocavam
diretamente, por estar em fase final de elaboração de dissertação e
sentir falta de um instrumental teórico adequado para trabalhar o
farto material empírico de que dispunha.
Por meio dessas experiências, fui revendo leituras do marxis-
mo, me afastando das leituras estruturalistas, mergulhando cada
vez mais na perspectiva gramsciana, e, principalmente, fazendo
198LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
dialogar minha bagagem teórica com minhas questões de pesqui-
sa, mas também com as trazidas por meus primeiros orientandos.46
Além das aulas e da coordenação do Pipsa, ao chegar ao
Rio, retomei contato com lideranças sindicais que havia conheci-
do nas Reuniões sobre Mão de Obra Volante em Botucatu e pude
adentrar num novo universo: as lutas no campo, para além do que
sabia delas a partir da leitura de textos e de pesquisa em jornais
do período anterior ao golpe. Visitei, acompanhando o presidente
da Federação dos Trabalhadores da Agricultura do Estado do Rio
de Janeiro, Eraldo Lírio de Azevedo, várias áreas rurais marcadas
por conflitos, em especial Angra dos Reis, Cachoeiras de Macacu,
Nova Iguaçu e Cabo Frio. Tive ainda a oportunidade de conhecer,
com a intermediação de Eraldo, José Pureza da Silva, liderança de
conflitos de terra nos anos 1950-1960 no estado, que também me
convidou para ir com ele visitar algumas áreas. Em razão dos con-
tatos com a Fetag/RJ, fui chamada a participar como observadora
do III Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, em maio de
1979. Para minha surpresa, ao comentar o fato com o coordenador
do Centro, professor Nelson Delgado, recebi apoio imediato para a
46 Entre eles, Córdula Eckert, com uma dissertação sobre o Movimento dos
Agricultores sem Terra do Rio Grande do Sul (Eckert, 1984); Ana Maria Motta
Ribeiro, que defendeu, anos mais tarde, uma dissertação sobre sindicalismo em
Campos (Ribeiro, 1987); Joaquim Soriano, que estudava projetos do Incra em
Cachoeiras de Macacu; Joaquim Paulo Bandeira, voltado para o estudo dos con-
flitos na Baixada Fluminense em especial em Duque de Caxias, sendo que os dois
últimos seguiram outros caminhos e não concluíram suas dissertações no CPDA.
No entanto, deixaram -me importantes preocupações com os conflitos rurais flu-
minenses. O tema me acompanhou e os retomei recentemente.
199LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
viagem em forma de passagens e diárias.47 Os debates foram surpre-
endentes para uma jovem pesquisadora, que fazia seus primeiros
contatos com a vida sindical rural. Lá conheci antigos militantes
de base das Ligas Camponesas; os “pequenos produtores” que, até
então, só me apareciam como reflexões teóricas e números nas es-
tatísticas cadastrais do Incra; percebi a força e complexidade das
demandas por reforma agrária que percorriam minha dissertação
de mestrado então ainda em elaboração. Tomei conhecimento do
vigor e a capacidade de argumentação de algumas lideranças sindi-
cais e vislumbrava ali um fértil campo de pesquisa.
O fato de eu estar escrevendo uma dissertação cujo tema era
o debate sobre reforma agrária no período
,anterior ao golpe e meu
contato com a Fetag/RJ também me abriram as portas para par-
ticipar de eventos e discussões em alguns sindicatos e na sede da
Diocese de Nova Iguaçu, em Moquetá, então polo de efervescência
política. Nesses encontros e visitas ao interior do Rio, pude conhe-
cer outros antigos militantes nas lutas por terra no estado (além
de José Pureza e sua esposa, Josefa, Bráulio Rodrigues da Silva48 e
Manoel Ferreira de Lima), bem como alguns dirigentes sindicais
cuja capacidade analítica era aguda. Destaco em especial a figura de
47 A surpresa derivava do fato de que, em Botucatu, por vezes enfrentei resis-
tências à minha participação em eventos por parte do diretor da Faculdade de
Ciências Agronômicas, que sempre dizia que eu tinha é que cuidar de fazer
minha dissertação. Ele tinha suas razões, mas o acompanhamento da conjuntura
naquele momento era também uma necessidade acadêmica (e política).
48 Em início dos anos 2000, quando fazia pesquisa num assentamento em Magé,
reencontrei casualmente Bráulio Rodrigues da Silva, que lá estava morando.
Após uma visita à sua casa, ele me pediu para ajudá -lo a registrar suas memórias.
Desse convite, resultou o livro Memórias da luta pela terra no estado do Rio de
Janeiro (Medeiros, org., 2008).
200LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Raimundo Leoni dos Santos, do Sindicato de Trabalhadores Rurais
de Itaboraí, Sebastião Lan, de Cabo Frio, e Rosa Geralda, expressi-
va liderança na fazenda Campos Novos, em Cabo Frio. Todos eles,
cada a um a seu modo, em conversas eventuais ou em entrevistas
formais, me ensinaram muito sobre o sindicalismo e sobre o coti-
diano das lutas no campo.
Paralelamente, havia no CPDA reuniões sistemáticas para
discussões de conjuntura. Era editado de forma regular, um Boletim
de Conjuntura, para discutir temas que afloravam. Nesse momento,
fiz um primeiro exercício de escrita não acadêmica, produzindo al-
guns pequenos textos, dos quais destaco o que tratou da greve dos
canavieiros pernambucanos de 1980, a partir do que acompanhei
na imprensa e de um evento que fizemos com a presença das lide-
ranças da greve, que vieram ao Rio de Janeiro difundir o movimen-
to e arrecadar recursos para um fundo de apoio aos grevistas.
Para além dessas atividades, participei também da pesquisa
“Trabalho rural e alternativas metodológicas de educação”,
financiada pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar)
e iniciada em 1980. Essa iniciativa reunia dois centros da FGV: o
CPDA e o Instituto de Estudos Avançados em Educação (Iesae),
e era coordenada, no CPDA, por Roberto José Moreira, João
Carlos Duarte e por mim, e, no Iesae, por Candido Grzybowski
201LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
e Maria Julieta Costa Calazans.49 Esta última, nos anos 1960, fora
figura-chave no processo de expansão das escolas radiofônicas do
Rio Grande do Norte, experiência empreendida pelo então bispo de
Natal, D. Eugênio Sales, da qual derivou a criação de vários sindica-
tos de trabalhadores rurais no início dos anos 1960.50
O estudo voltava -se para os processos de transformação do
trabalho rural, o aparecimento de funções especializadas na agri-
cultura, como tratoristas, por exemplo. O locus empírico da pesqui-
sa foi o município de Campos, no Rio de Janeiro. O relatório não
chegou a ser publicado, mas circulou mimeografado (Grzybowski
et al., 1981). Continuando as reflexões que vinha fazendo desde
minha experiência na Unesp sobre trabalho assalariado, agora as
acoplava a uma nova questão: a educação e a formação profissional.
Interessava-nos captar “a tensão existente (aos níveis de consciên-
cia e da prática dos trabalhadores) entre o grau de domínio que ele
acredita ter sobre os processos e ‘modos de fazer’ da produção agrí-
cola e a ‘necessidade’ – apresentada do exterior – de introdução a
outros conhecimentos ou maneiras novas de conduzir a produção.
49 Participaram como pesquisadores, pelo Iesae, Sonia Ribeiro Moreira e Adonia
Antunes Prado e, pelo CPDA, Silvana Gonçalves de Paula e Mauro Cunha Bastos.
Como auxiliares de pesquisa, estudantes de mestrado como Joaquim Calheiros
Soriano, Ana Maria Motta Ribeiro (meus orientandos) e Cristina de Almeida
Borges, Edith Lacerda, Nathercia Neves Lacerda, Regina Doria e Heloisa de Luna
Freire. Como colaboradores, Margarida Maria Moura e Francisco Carlos Teixeira
da Silva.
50 Maria Julieta Calazans, após o golpe, foi para a França e lá escreveu sua tese de
doutorado sobre essa mesma experiência (Calazans, 1970), trabalho que, junta-
mente com o de Aspásia Camargo, sobre ligas camponesas e sindicatos rurais em
Pernambuco (Camargo, 1974), tornou -se referência obrigatório para entender as
lutas dos trabalhadores no período que antecede o golpe.
202LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Em outras palavras, captar, do ângulo do trabalhador, tanto as am-
biguidades expostas acima como a relação que se estabelece entre
os conhecimentos que o trabalhador traz de sua práxis e o conhe-
cimento que lhe é proposto como melhor e mais eficiente, inclusi-
ve em termos de organização de sua estratégia de reprodução (e,
eventualmente, ascensão social)”. (Grzybowski et al., 1981, p. 4)
Embora tenha participado ativamente das fases iniciais da
pesquisa e da redação do relatório, não pude fazer o trabalho de
campo: no início de 1981 nasceu meu primeiro filho e tive um pe-
ríodo não exatamente de afastamento das atividades acadêmicas,
mas da pesquisa empírica, que exigia deslocamentos.51
Obviamente, essas atividades somavam muito estudo com
um acompanhamento das lutas sociais, presença em alguns semi-
nários, sempre que chamada para falar de questões relacionadas
à reforma agrária ou às lutas no campo. Era um momento muito
particular da conjuntura do final dos anos 1970 e início da déca-
da de 1980, num clima de redemocratização, anistia, retomada das
greves, multiplicação das ocupações de terra, enfim, um momento
que instigava o desejo de conhecer melhor situações, em especial
para mim, que recém chegava ao Rio e pouco conhecia de sua
história. Mas o tema circulava amplamente. Situação particular-
mente marcante para mim foi a participação em um seminário na
Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, que discutia a ques-
tão fundiária, numa conjuntura de tensão muito grande em relação
51 Digo isso porque em plena licença maternidade mantive minhas aulas na pós-
graduação, fazendo um acerto com os alunos que se interessavam pela disciplina
Organização Social no Campo: ela seria oferecida aos sábados pela manhã, perí-
odo em que meu companheiro e filho recém-nascido poderiam ir comigo, para
que eu o amamentasse no intervalo da aula.
203LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
ao acampamento de Encruzilhada Natalino. Foi a primeira vez que
tive contato mais direto com as demandas dos sem-terra do estado.
Em que pese essa aproximação tanto com organizações
sociais como com organizações não governamentais (em especial
a Fase e o então recém-criado Ibase), eu tinha clareza de que meu
lugar era mesmo na academia, mas mantendo uma interlocução
constante com as lutas no campo.
A vida trazia novas necessidades e desafios, implicados na
conciliação entre a paixão pelo trabalho como professora e pela pes-
quisa e a família. Creio que conciliei bem essas faces da vida, mas
não o faria sem o companheirismo de Francisco de Assis Medeiros.
NOVOS TEMPOS: O CPDA NA UFRRJ
E O TEMA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS
No final de 1981, ficou clara a impossibilidade de continuarmos
na Fundação Getúlio Vargas que parecia disposta a abrir mão de
duas pós- graduações destoantes de sua linha política: o Iesae e o
CPDA. No caso do Iesae, houve dispersão dos professores por ou-
tros centros de ensino. No caso do CPDA, houve um enorme in-
vestimento político de parcela do corpo de professores, com des-
taque à Coordenação, que continuava a ser exercida por Nelson
Delgado, para manter a unidade do grupo. Isso
,foi possível pela
negociação de transferência com a até então para mim desconhe-
cida Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, que se dispôs a
aceitar o curso com professores, alunos e funcionários.
A ida para a UFRRJ, por um lado, era uma prova da vitalidade
do grupo que conseguiu sua transferência como um todo, embo-
ra com alguns rearranjos, na medida em que alguns professores
204LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
fizeram opção por não migrar. Nesse momento de transição,
entretanto, outros se incorporaram ao grupo.52 Se isso garantia a
continuidade de nossas atividades de pesquisa e ensino e a titula-
ção dos alunos, no momento em que estavam sendo finalizadas as
primeiras dissertações, por outro nos levava para um campus dis-
tante (Seropédica, hoje município, mas então distrito de Itaguaí,
às margens da antiga Rodovia Rio-São Paulo), o que impunha um
longo trajeto: quase cem quilômetros da Zona Sul do Rio de Janeiro,
onde morava a maioria dos professores. Em que pese estarmos
bem instalados, no prédio que hoje pertence ao Colégio Técnico da
Universidade, algumas atividades se realizavam no Rio de Janeiro,
quer em espaços cedidos, quer em nossas casas. Isso foi particu-
larmente notório para o grupo que se debruçava sobre o tema dos
movimentos sociais.
Foi ao longo dessas mudanças que defendi (finalmente), em
início de 1983, minha dissertação de mestrado. Sem a dívida da dis-
sertação e em pleno processo de migração institucional e adapta-
ção ao novo contexto, constituímos, professores do CPDA (Candido
Grzybowski, Regina Bruno e eu), pesquisadores de outras institui-
ções interessados no tema (Regina Novaes, Beto Novaes, Neide
Esterci, entre outros) e alunos dos professores envolvidos nesse
investimento, um Núcleo de Estudos sobre Movimentos Sociais
52 No total, a UFRRJ nos destinou 20 vagas de professores, além das dos fun-
cionários. Optaram pela não ida para a UFRRJ, entre outros, José Bicudo,
Margarida Maria Moura, Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da
Silva. Incorporaram -se à equipe do CPDA João Carlos Duarte, até então somen-
te vinculado à pesquisa ao projeto “Trabalho rural e alternativas metodológicas
de educação”, e Candido Grzybowski, professor do Iesae, instituição que se dis-
solveu. Além deles, Maria José Teixeira Carneiro, Luiz Flávio de Carvalho Costa,
Armando Barros de Castro chegaram no contexto de transição.
205LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
no Campo, com apoio de uma pequena doação da Fundação Ford.
Nesse grupo, colocando mais intensamente nossas ideias para
discussão, aprofundamos muito dos debates travados no Pipsa.
Definimos como temas centrais de trabalho a questão sindical e
a ação da Igreja, preparando dois seminários com sindicalistas de
diversas origens regionais e filiações políticas. Foram experiências
sui generis. Não abertos a um grande público, mas abrangentes o
suficiente para garantir a participação de professores e alunos, cada
um deles durou dois dias inteiros. O ponto de partida eram as expo-
sições dos convidados (dirigentes sindicais e de movimentos, parte
deles do Rio de Janeiro), no máximo quatro por evento. Eles conta-
vam suas experiências incipientes de organização e seguia -se um
debate aberto com os diversos participantes.53
Na preparação dos seminários, na discussão de trabalhos
nossos, pudemos ir desdobrando o debate sobre classes sociais,
sempre da perspectiva do campesinato, voltando-nos mais siste-
maticamente para a temática das formas de organização e repre-
sentação dos trabalhadores rurais.
À mesma época, alguns membros desse grupo (Regina Novaes,
Regina Bruno, Joaquim Soriano e eu) participaram também de um
projeto de pesquisa cuja sede era o Centro de Estudos de Cultura
Contemporânea (Cedec). O título era “Dez anos de luta pela terra:
53 As transcrições desses seminários encontram -se disponíveis para consulta no
Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e
Políticas Públicas no Campo do CPDA/UFRRJ. Participaram desses seminários
na primeira edição, Mario Gabardo, da região produtora de uva no Rio Grande
do Sul, Valdevino Claudio dos Remédios, recém-eleito para o STR de Parati/
RJ, Jonas Chequetto do Espírito Santo e um dirigente de Santarém, creio que
Ranulfo Peloso.
206LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
1969-1979” e a coordenação estava a cargo do pesquisador José dos
Reis dos Santos Filho. Essa investigação, demandada pela Contag,
com apoio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), tinha por fonte
principalmente o arquivo da entidade sindical e constituía -se num
exaustivo exercício de levantamento documental no sentido de
perceber como essa instituição, nos anos da ditadura, compreendia
e encaminhava os conflitos por terra. A razão da delimitação tem-
poral da pesquisa, definida pela Contag, embora não explicitada,
não era casual: correspondia ao início do que alguns pesquisadores
e sindicalistas chamavam de “retomada da Contag”54 e se estendia
até o ano em que dois eventos marcaram a história política dos tra-
balhadores rurais: um deles, considerado um marco no sindicalis-
mo, foi a realização do III Congresso da entidade, que consolidou
um chamado para a pressão dos trabalhadores sobre o governo em
torno de suas demandas. O outro não era explicitado claramente,
mas funcionava como contraponto: as primeiras ocupações de ter-
ra realizadas no sul do país, sem a direção de sindicatos e que um
pouco mais tarde dariam origem ao Movimento dos Trabalhadores
Rurais sem Terra. Nesse trabalho, de caráter eminentemente em-
pírico, e que nos obrigou a ficar hospedados, por longos períodos,
no Centro de Estudos Sindicais Rurais (Cesir), localizado no Núcleo
54 Em 1968, José Francisco da Silva foi eleito presidente da Contag. Com isso,
encerrou -se a gestão daquele que fora nomeado interventor da entidade em
1964, José Rotta, e que foi também seu primeiro presidente eleito pós- golpe.
207LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Bandeirantes, em Brasília55, dias e dias consultando documentos,
pude perceber alguns mecanismos internos do funcionamento
do sindicalismo rural e manter conversas informais com antigos e
novos sindicalistas que frequentavam o local.
Responsável pela produção de relatórios sobre os conflitos
em dois estados (Rio de Janeiro e Paraná) comecei a vislumbrar as
diferenças no modo de operação das federações e dos sindicatos.
Diante disso, colocou -se a necessidade de entender como a Contag
percebia a si própria e o movimento que coordenava, quais suas
bandeiras de luta, qual o sentido de suas ações. O esforço de escrita
de um artigo, em parceria com Joaquim Soriano, então mestrando
no CPDA, meu orientando e também pesquisador da equipe, mos-
trou -me quão carente eu estava de aprofundar o conhecimento
sobre o campesinato e a necessidade de problematizar as rela-
ções entre movimentos sociais e formas de organização vigentes
(Medeiros; Soriano, 1984). As perguntas que ficavam eram o que
significavam os mecanismos de representação, no que ela consistia
e como se fazia na dinâmica cotidiana do sindicalismo.
Foi nesse início dos anos 1980, já na UFRRJ, que investi tam-
bém numa pesquisa sobre o sindicalismo no Rio de Janeiro, apoiada
55 Naquele momento, a Contag funcionava no centro de Brasília, num prédio
da W3. No Cesir se desenvolviam as atividades de formação e ficava abrigada a
documentação da entidade. Um dos compromissos nossos era organizar todos
os documentos referentes à pesquisa. Esse material foi ordenado por estados,
municípios e conflitos. Com as mudanças de sede, houve uma certa desorga-
nização da ordem que havíamos estabelecido. Parte das pastas foi localizada
recentemente. Elas se encontram num depósito com outros documentos, mas
não estão disponibilizadas no Centro de Documentação da Contag, que abriga,
principalmente, a documentação publicada pela entidade (anais de congressos,
manifestos, cartilhas,
,entre outras).
208LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
pelo CNPq, e pude conhecer melhor as áreas rurais do estado, os
conflitos que nela se desenvolviam e, principalmente, a diversidade
da ação sindical, as diferentes concepções no seu interior, as dispu-
tas internas... Difícil, naquela conjuntura de luta política abordar
esses temas sem colocar em questão as próprias práticas sindicais,
o que me trouxe dilemas éticos que acabei enfrentando de uma for-
ma que até hoje me deixa dúvidas sobre sua correção: acabei fazen-
do um relatório minimalista, para prestar contas do uso dos recur-
sos recebidos, mas não escrevi artigos a respeito. No entanto, o que
percebi em campo contribuiu sobremaneira para minha reflexão
sobre dois temas: por um lado, a complexidade do sindicalismo e
de suas disputas internas, os riscos permanentes de endossar as
justificativas dos dirigentes, sempre articuladas e convincentes, e,
por outro, as questões éticas envolvidas nas pesquisas sobre movi-
mentos sociais, que sempre nos impõem cautelas redobradas sobre
o uso das fontes documentais e entrevistas, as interpretações que
delas fazemos e seus efeitos sobre os grupos sociais, uma vez que
não há como desconsiderar o peso social e político dos produtos da
academia e sua capacidade de impor um “efeito de verdade”, como
diria Bourdieu.
Lado a lado com essas preocupações, novos desafios se im-
puseram com a orientação de dissertações sobre o tema. O pri-
meiro trabalho que orientei foi justamente sobre o Movimento dos
Agricultores sem Terra no Rio Grande do Sul, de autoria de Córdula
Eckert, dissertação defendida em início de 1984 (Eckert, 1984).
209LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Nesse momento, já tinha vários orientandos, a maior parte estu-
dando conflitos no Rio de Janeiro.56
Sentindo a necessidade de entrar em contato com outras
linhas de reflexão teórica, que sabia serem base de alguns argu-
mentos que me atraiam nos encontros do Pipsa, cursei, como
ouvinte, em 1983, a disciplina Campesinato e Política oferecida
pelo professor Moacir Palmeira no Programa de Pós- graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional. Tive então a oportunidade
de acompanhar discussões que me abriram novos horizontes para
a pesquisa. Temas como o deslocamento do eixo de análise para
as relações, discussão de conjunturas não em geral, mas sim para
grupos determinados, recusa ao substancialismo como caminho
para a análise, busca de uma melhor compreensão do campesina-
to, a partir das relações que esse segmento vivenciava, para explicar
aparentes ambiguidades de sua ação, iam diretamente ao encontro
das preocupações que me apareciam quer nos grupos de discus-
são, quer nas atividades de pesquisa.
Mais do que os autores vistos na disciplina,57 o mais insti-
gante foi a forma de abordar as leituras, a construção que se fazia
sobre elas. O eixo de discussão que mais me marcou, no entanto,
foi o deslocamento feito por Moacir Palmeira do binômio “classe
56 No Anexo 1, apresento a lista das dissertações e teses que orientei ao longo da
minha carreira acadêmica.
57 Parte da bibliografia já me era familiar, mas ganhou uma nova leitura no cur-
so. Cerca de metade dos seminários foi de discussão de trabalhos de alunos, um
grupo extremamente envolvido nos debates, do qual faziam parte, entre outros,
Regina Novaes, Delma Pessanha Neves, Jorge Romano, Mario Grynszpan, Eliane
Cantarino, Aurelio Vianna, Ligia Dabul, Regina Bruno (colega do CPDA que tam-
bém fazia o curso como ouvinte).
210LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
em si/classe para si” para “classe para outro/classe para si”, pro-
pondo uma abordagem relacional, que partia dos agentes em situ-
ação, ocupando posições sociais específicas, num momento dado
da luta de classe.58 Esse tipo de abordagem caía como uma luva no
sentido de encaminhar minhas inquietações pouco amadurecidas
e sistematizadas e que diziam respeito aos limites de uma análise
marxista referenciada na problemática de classe e consciência (ne-
cessária/possível) de classe. Moacir Palmeira também chamava a
atenção dos alunos para os riscos de uma abordagem bastante usu-
al que, na análise política, confrontava uma classe operária ideal
com um campesinato real. Pareceu -me ainda bastante fértil a apro-
priação de Bourdieu (autor que até então eu havia lido muito pou-
co), especialmente no que se referia ao conceito de campo político.
De alguma maneira, minha experiência com esses debates se
refletiram em minha produção acadêmica. Em trabalhos escritos
logo depois, sobre o IV Congresso da Contag, realizado em 1985,
ao qual também tive a felicidade de estar presente, procuro en-
tender algumas posições e resoluções tomadas a partir da relação
entre essa entidade e outras que com ela passaram a disputar a
representação dos trabalhadores rurais (Medeiros; Santos Filho,
1985 e 1986).
A necessidade de aprofundar esse tipo de reflexão, de traba-
lhar teoricamente e de forma consistente em torno dela me levou a
procurar um curso de doutorado, o que também era uma exigên-
cia cada vez maior derivada da minha opção pela vida acadêmi-
ca. Partindo de um desdobramento da dissertação de mestrado,
58 Uma síntese de alguns temas do curso foi elaborada por Jorge Romano, que
naquele momento iniciando o doutorado no PPGAS (Romano, 1986).
211LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
pretendia aprofundar o conhecimento sobre os movimentos cam-
poneses do período 1945-1964, com base em algumas indagações:
quais as circunstâncias que fizeram com que os conflitos desse mo-
mento pudessem se exprimir com um determinado tipo de lingua-
gem, no caso, a das forças de esquerda, configurada pelo Partido
Comunista? Por quais mecanismos essa linguagem procurou dar
conta dos interesses em luta? Como se forjou, nesse momento, uma
identidade entre trabalhadores de inserção aparentemente diver-
sa no processo produtivo, como é o caso de “moradores”, “foreiros”,
“colonos”, “posseiros”, entre outros, fazendo com que de conflitos de
natureza distinta, com reivindicações particulares, emergisse uma
bandeira de luta como “reforma agrária”? Esperava, refletindo so-
bre esses temas, apreender o processo de constituição das classes
sociais no meio rural, privilegiando suas lutas, as identidades con-
cretamente formadas e, principalmente, as formas de organização e
representação que dela surgiam. Do ponto de vista teórico, à medi-
da que me deslocava de uma análise de caráter estrutural, que pro-
curava dar conta das relações de produção, para outra, em que era
privilegiada a prática política de determinados grupos sociais, no-
vas questões me apareceram. Saindo da definição de uma classe
genérica, mergulhando na extrema diversidade dos elementos que
a compõem, preocupando -me com a ação política dos seus distin-
tos segmentos, procurando entender o sentido de suas lutas, não
podia deixar de me interrogar sobre como ou quem os define como
classe. Desvendar a prática política de determinados grupos sociais,
perceber como esses grupos conformam identidades, como se re-
lacionam, no cotidiano, com as diversas instâncias de poder, como
produzem sua representação política, implicava conciliar as refe-
rências marxistas que marcaram minha formação acadêmica com
212LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
outras reflexões, de modo a perceber como a dominação era con-
cretamente vivenciada e que formas de convivência e resistência se
forjavam. Parecia -me então fundamental entender a construção de
uma identidade num processo de conflito e confronto.
Ao mesmo tempo que contribuía para consolidar a temática
dos movimentos sociais no CPDA e recebia cada vez mais alunos
interessados no tema para orientar, foi importante para mim a par-
ticipação em uma série de atividades nesse período de luta políticas
por redemocratização. Entrar em debates públicos sobre os rumos
dos movimentos sociais e sobre as potencialidades da reforma
,agrá-
ria me aproximou não só do sindicalismo rural, mas também de
organizações não governamentais, em especial da Fase. Menciono
essas atividades porque elas foram fundamentais na definição das
minhas questões de pesquisa, cada vez mais germinadas no e pelo
intercâmbio entre acadêmicos e ativistas.59 Foram essas trocas que
me trouxeram indagações que as teorias que eu manejava não da-
vam conta (ou eu não conseguia desdobrar em temas de pesquisa).
O clima do início dos anos 1980, com uma enorme diversida-
de de atores se colocando em cena, era instigante para colocar em
pauta categorias anteriormente aprendidas e atualizá -las, sobretu-
do quando pensávamos nos debates em torno da reforma agrária,
considerada, por muitos pesquisadores, questão superada pela mo-
dernização que o campo sofrera, mas que emergia com força por
meio das ocupações de terra em diversos pontos do país, inclusive
no estado do Rio de Janeiro. Neste caso, em especial, para além de
59 Não posso deixar de mencionar Maria Emília Pacheco que havia feito mestrado
no PPGAS/MN/UFRJ, sob orientação de Otávio Velho, atuava na Fase e me convi-
dou para participar de alguns debates nessa ONG, sobre o tema reforma agrária.
213LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
conflitos em terras de antigas disputas de posseiros, apareciam as
ocupações por trabalhadores que já haviam sido expulsos da terra,
que tinham uma larga experiência urbana. Camponeses? Lumpem,
como chegaram a ser designados? O fato é que sua presença não
cabia no que as teorias sobre o campesinato e sobre os pequenos
produtores nos diziam.
Nesse período, minha vida, como a de muitos contemporâne-
os, tornou -se uma roda viva: do ponto de vista acadêmico, tratava
-se da adequação às regras da universidade pública, da locomoção
para o campus da UFRRJ em Seropédica, da retomada do contato
com alunos de graduação, principalmente de agronomia, que era
o mesmo público para o qual eu dera aulas em Botucatu, do iní-
cio de pesquisas sobre sindicalismo e conflitos fundiários no Rio de
Janeiro, da vitalidade dos debates e das mobilizações pelas “diretas
já” e pela redemocratização do país.
No que se refere à pesquisa, a orientação de dissertações,
mesmo que algumas delas não tenham sido finalizadas, me fize-
ram conhecer diferentes faces do rural no Rio de Janeiro, na medida
em que minhas indagações muitas vezes me faziam ir às localida-
des com meus orientandos e participar de entrevistas e buscas de
documentos. Naquele momento, visitei a fazenda Campos Novos,
que abrangia parte dos municípios de Cabo Frio e São Pedro
d’Aldeia, onde havia um conflito que se arrastava desde os anos
1950; fiz contato com alguns moradores do antigo condomínio
de Marubaí, em Cachoeiras de Macacu; comecei a me dar conta
da importância dos conflitos fundiários em Duque de Caxias; e
fui algumas vezes a Campos, com Ana Maria Motta Ribeiro, para
214LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
entrevistas que servissem à dissertação dela, mas também à minha
pesquisa sobre sindicalismo no Rio de Janeiro.60
Ao mesmo tempo, eram múltiplos os debates públicos sobre
o tema que haviam sido objeto de minha dissertação de mestrado:
a reforma agrária (Medeiros, 1983). Eu a havia tratado tendo como
referência os anos que antecederam o golpe militar. Com ele, o ter-
mo ganhou novas conotações, particularmente com a aprovação
do Estatuto da Terra. Se ele prometia uma reforma agrária contro-
lada, também ancorou uma proposta de modernização no campo
que ganhou fôlego, ao longo dos anos 1970, apoiada em outros
mecanismos.
A força da demanda por reforma agrária nos congressos da
Contag, a criação formal do MST, em 1984, davam nova dinâmica
às discussões. Tratava -se de refletir sobre a reforma possível num
país de agricultura modernizada, mas onde os conflitos por terra
cresciam e a violência no campo era uma constante. A questão era
entender o caráter dessa modernização e suas contradições, lê -la
numa outra chave que não a estrutural, econômica. Com isso, cada
vez mais eu me deslocava para a perspectiva dos atores, procuran-
do outras óticas para entender a demanda por reforma agrária. Não
se tratava apenas de discutir as contingências do capitalismo no
campo e o processo de expropriação que ele gerava, mas de perce-
ber as novas formas assumidas por esse processo de expropriação
e também pela demanda por terra. Afinal, não se tratava só de fo-
reiros, posseiros, mas agora de um contingente de sem-terra, ele
mesmo produto da intensa modernização da agricultura (no caso
60 As dissertações sobre os conflitos em Caxias, Marubaí e Campos Novos não
foram concluídas, mas a de Ana Motta, sim (Ribeiro, 1987).
215LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
do Sul) ou da intensificação da especulação fundiária urbana (no
caso da Baixada Fluminense). Esses temas traziam para o centro
da reflexão não só questões teóricas, mas também políticas: qual
a reforma agrária possível no contexto de uma agricultura que se
modernizava tecnologicamente e que cada vez mais emergia quer
como capaz de produzir para o mercado externo como para o
interno, de alimentos, tema que os processos de agroindustrializa-
ção, particularmente centrados no sul do país, suscitavam. Esse era
também um assunto que trazia questões centrais sobre a natureza
das relações de produção e trabalho no campo, novos atores envol-
vidos e novas questões levantadas. Ela ganhava corpo em debates
feitos em ONGs (Fase, em especial), na Abra (Associação Brasileira
de Reforma Agrária), nos eventos acadêmicos (Pipsa, Anpocs), na
imprensa falada e escrita. Além de programas em rádio, dos quais
participei por um período com a colega Regina Bruno, havia as dis-
cussões promovidas pela Sociedade Brasileira Para o Progresso da
Ciência (Ciência às Seis e Meia), que trazia pesquisadores para falar
com um público amplo, não só acadêmico. Havia ainda debates em
universidades.
Foi em torno desses assuntos que escrevi os primeiros arti-
gos que publiquei (Medeiros, 1981a, 1981b, 1984; Medeiros; Santos
Filho, 1985).
O DOUTORADO
Decidida a fazer o doutorado, minha opção foi pelo
Programa de Ciências Sociais da Unicamp. Já havia
feito graduação e mestrado na USP e minha experi-
ência acadêmica, a partir da vinda para o CPDA, indicava a neces-
sidade de buscar novos caminhos. Além do mais, a USP cada vez
menos tratava das questões relacionadas ao agrário e ao rural. José
de Souza Martins, por mais que fosse uma referência constante nos
meus trabalhos, não se afigurava como uma opção de orientação.
Cheguei a pensar em fazer o doutorado PPGAS/MN/UFRJ, mas,
embora tivesse muito interesse nos debates sobre campesinato que
lá eram feitos, minha trajetória e minhas preocupações não me le-
vavam a buscar uma formação centrada na antropologia.
Refletindo muito sobre para onde me encaminhar, decidi fa-
zer a seleção para o curso de doutorado em Ciências Sociais, experi-
ência que se iniciou na Unicamp em 1985, que agregava excelentes
professores, com vasta experiência, principalmente na Sociologia e
Antropologia. Não fiz a primeira seleção, pois estava grávida e mi-
nha filha nasceria em agosto, justamente o semestre de início da
217LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
turma. Optei por me candidatar para a segunda turma, que se ini-
ciaria em março de 1986.61
Coordenava o doutorado o professor Roberto Cardoso de
Oliveira, antropólogo que já havia sido figura de proa no PPGAS do
Museu Nacional/UFRJ e na Universidade de Brasília. Para me orien-
tar, escolhi Maria Nazareth Wanderley, que conhecia desde que ela
retornara do doutorado em Paris. Nosso primeiro contato foi na
Unesp de Botucatu e a encontrava com frequência nas reuniões em
Campinas. Sua tese, defendida na França em 1975 e publicada no
Brasil em 1979, tornou -se uma referência para os que se voltavam
para o estudo da questão agrária (Wanderley, 1979). Desde os anos
1980,
,ela passou a se dedicar ao estudo do campesinato brasileiro
e tínhamos diálogo permanente no âmbito do Pipsa, encontros da
Anpocs, entre outros espaços acadêmicos.
O INGRESSO
Para cursar o doutorado gozei de uma situação privilegiada: pude
me afastar das atividades da Universidade com salário integral e
bolsa do Programa Institucional de Capacitação de Docentes e
Técnicos (PICDT) da UFRRJ, o que criou as condições ideais para a
pesquisa e redação da tese. No entanto, apesar das circunstâncias
61 Nessa mesma seleção foi aprovada também minha colega do CPDA Regina
Bruno já então parceira de múltiplas atividades acadêmicas e não acadêmicas.
218LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
bastante confortáveis, meus investimentos em múltiplas direções
acabaram atrasando a defesa, como já acontecera no mestrado.62
O doutorado em Ciências Sociais da Unicamp era inovador e
propunha -se a provocar o diálogo interdisciplinar a partir de cam-
pos temáticos delimitados. Quando conheci a proposta, pareceu -me
que tinha um perfil plenamente adequado à experiência no CPDA
e a minha trajetória de pesquisa até então. Os candidatos se inscre-
viam no momento da seleção em áreas temáticas, mas havia um
eixo articulador dos diferentes temas, constituído pela disciplina
Teoria e Metodologia em Ciências Sociais, que se propunha a tra-
tar de questões epistemológicas e era ministrada em dois semes-
tres seguidos, no primeiro ano do curso. Funcionava como espaço
integrador de questões teóricas e metodológicas dos diferentes ei-
xos temáticos. Os professores eram Vilmar Faria, Roberto Cardoso
de Oliveira, Juarez Brandão Lopes, que teciam os fios condutores
e eram secundados por outros docentes, muitas vezes externos à
62 Fiz as disciplinas do doutorado morando no Rio e indo toda a semana para
a Unicamp, apenas para as aulas. Mudar para Campinas seria difícil: tinha dois
filhos pequenos, ainda amamentava a caçula e, por razões profissionais, meu
companheiro não poderia ir comigo. Se, do ponto de vista do desempenho no
doutorado essa opção não trouxe maiores problemas, houve perdas importantes.
Deixei de aproveitar a intensidade do ambiente intelectual da Unicamp, onde
sempre havia palestras e debates. Esta universidade se tornara ponto de pas-
sagem obrigatória da intelectualidade nacional e internacional. Por outro lado,
ficar no Rio significou que meu afastamento do CPDA foi parcial. Não por ques-
tões formais, mas por razões estritamente pessoais. Mesmo não dando aula e,
portanto, não tendo que me deslocar para Seropédica, não deixava de participar
das discussões sobre os rumos do Programa e do grupo de Movimentos Sociais
e suas atividades. Também mantinha relações com os grupos externos ao CPDA
com os quais estava envolvida anteriormente. Num contexto de redemocratiza-
ção, debates sobre Constituinte, emergência política dos sem-terra, acabei sendo
bastante absorvida pelo que estava ao meu redor, como indicarei adiante.
219LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Unicamp, convidados para uma aula ou outra. Em especial os dois
primeiros me fizeram interessantes provocações no sentido de que
eu estranhasse minha experiência acadêmica anterior. Roberto
Cardoso, naquele momento interessado em trajetórias intelectuais,
demandou, como trabalho de curso, que fizéssemos nossa biografia
intelectual. Meu texto (Questão agrária através de uma biografia)
foi um esforço de reflexão sobre minha experiência profissional a
partir de uma tentativa de distanciamento, de forma a me debru-
çar sob uma perspectiva crítica sobre minhas opções e caminhos.
Quando apresentei o trabalho ao grupo de professores e colegas,
um comentário de Vilmar Faria me marcou e me persegue até hoje:
ele chamava a atenção para o fato de que nós, “estudiosos do rural”,
nutríamos uma interlocução bastante particular, sempre com nós
mesmos. Tínhamos encontros próprios (caso do Pipsa, que apa-
recia com destaque na minha narrativa), grupos de estudo e uma
literatura de referência comum. Constituiríamos um campo de
conhecimento particular, uma comunidade científica, no sentido
kuhniano, com suas próprias regras? Essa pergunta me acompa-
nhou ao longo dos anos. Sentia -me incomodada e instigada por ela.
Por um lado, estimulava -me a um mergulho na Teoria Sociológica,
campo em que eu considerava minha formação bastante insuficien-
te. Mas também me aproximava da Antropologia, Ciência Política
e História. Por outro, o questionamento me incentivava a refletir
a respeito da enorme riqueza de estudos sobre o meio rural que,
talvez Vilmar Faria tivesse razão, parecia buscar um paradigma pró-
prio, bebendo nas águas do marxismo, nos estudos antropológicos
sobre campesinato e gerando interlocuções teórico -metodológicas
que acabavam submergindo e mesmo se invisibilizando num esfor-
ço exaustivo de pesquisas empíricas.
220LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Além das disciplinas obrigatórias (Teoria e Metodologia I
e II) e das disciplinas do campo temático selecionado, éramos
orientados a fazer pelo menos uma disciplina fora do Programa
de Ciências Sociais. No caso das disciplinas do campo temático,
cursei as oferecidas por Nazareth Wanderley, Theresa Sales e Carlos
Brandão. Nelas pude trabalhar com uma ampla bibliografia nacio-
nal e internacional sobre campesinato, trabalho assalariado rural
e pensamento social brasileiro. Aprendi muito, mas o diálogo per-
manecia dentro de um conjunto de questões que já me eram fami-
liares e que me mantinham numa certa “zona de conforto” teórico
e metodológico.
Quanto à disciplina que deveria ser cursada fora, optei por
uma Metodologia da História, oferecida por Edgar de Decca no
Programa de Pós- graduação em História da Unicamp. Já o conhe-
cia, embora de forma bastante superficial, por termos feito juntos
uma disciplina na USP, com Francisco Weffort, eu no mestrado, ele
já no doutorado. Havia lido alguns trabalhos dele e de Carlos Alberto
Vesentini, nos quais faziam um esforço de releitura da chamada
“Revolução de 30”. Lera com extremo cuidado O silêncio dos venci-
dos (De Decca, 1981), livro resultante da sua tese de doutorado, que
eu usara numa disciplina sobre Estado brasileiro que ministrara no
mestrado do CPDA. Considerava que o curso poderia contribuir
substancialmente para a problematização das questões que esta-
riam na base de minha tese de doutorado e que se voltavam para o
movimento camponês no Brasil entre 1945 e 1964 (Medeiros, 1995).
Com efeito, na disciplina fui apresentada a autores que foram fun-
damentais daí em diante para minha reflexão: Edward Thompson,
Michel Foucault, Carlo Ginsburg, Michelle Perrot. Na sequência, fiz
mais uma disciplina com o mesmo professor e, depois, iniciei mais
221LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
uma, sobre movimento operário (ministrada por Marco Aurélio
Garcia e Claudio Batalha), que abandonei logo no início, pois es-
tava com a nítida sensação que em breve trocaria de curso e me
mudaria definitivamente para a História. Após muita reflexão, achei
melhor permanecer no leito original, das Ciências Sociais, mas arti-
culei de forma mais intensa as reflexões sobre metodologia da his-
tória às minhas preocupações com a Sociologia, Ciência Política e
Antropologia. Ampliava meu olhar interdisciplinar, aprofundando
caminhos que já havia trilhado no mestrado e nas minhas incur-
sões como professora de História no Ensino Fundamental e Médio.
Nesse processo, minha orientadora me deu bastante liberdade
para lidar com minhas angústias teóricas e sempre me encorajou,
aceitando os caminhos que eu delineava.
OS TEMPOS DA PRODUÇÃO DA TESE DE DOUTORADO
E MAIS UMA VEZ OS ATRASOS
Concluídos, em 1987, os créditos em disciplinas, iniciei a pesquisa
para a tese, mas num ritmo bastante lento. Foram várias as razões
para isso. A primeira delas foi que, apesar de formalmente afastada
para fazer o doutorado, continuava orientando e alguns estudan-
tes
,Unicamp desenvolveu o conceito agroindustrial (o com-
plexo agroindustrial), em pesquisas lideradas por Graziano da Silva
e Angela Kageyama. Todavia, o foco neste caso era na internali-
zação dos insumos agrícolas e das indústrias de maquinário, que
quebraram a dependência da modernização agrícola nos caprichos
24JOHN WILKINSON
do comércio exterior e do câmbio internacional, e ligaram a agri-
cultura à dinâmica do complexo agroindustrial doméstico e da
economia como um todo.
A vantagem específica dos estudos realizados dentro do
contexto da pesquisa Arroyo/Pecla era identificar estratégias por
parte da indústria de beneficiamento de alimentos, no sentido de
desenvolver cadeias agrícolas alinhadas às diversas demandas
alimentares da nova dieta urbana. Isto abriu uma perspectiva bem
diferente do meu “problema” acerca da funcionalidade da agricul-
tura de subsistência para a acumulação do capital. Do ponto de vis-
ta da agroindústria, a agricultura de subsistência não só precisava
modernizar os seus processos de produção, como também precisa-
va priorizar as demandas de uma dieta urbana agora mais baseada
em proteína animal e verduras. Por outro lado, nestas condições, o
pequeno agricultor poderia tornar -se um elo privilegiado na cadeia
agroindustrial. Não havia, portanto, uma relação necessária entre
a modernização, ou o desenvolvimento do capitalismo na agricul-
tura, e o desenvolvimento da agricultura em grande escala com a
resultante eliminação da agricultura familiar.
Este entendimento passou a orientar a minha pesquisa no
Nordeste, e comecei a focar a dinâmica e o impacto do Programa
Polonordeste do Banco Mundial e seus projetos no estado da Bahia.
Meu “problema” poderia agora ser reformulado da seguinte forma:
o setor agrícola de subsistência poderia ser funcional na medida
em que abandonasse a sua lógica de subsistência e conseguisse
tanto modernizar os seus sistemas de produção como integrar -se
aos mercados, de modo a permitir o acesso aos insumos agrícolas
por meio do crédito. Todavia, neste novo cenário, feijão, mandio-
ca e milho não seriam mais os carros-chefes da alimentação dos
25JOHN WILKINSON
assalariados urbanos, e os pequenos agricultores “europeus” do
Sul do país passaram a ser os parceiros privilegiados das cadeias
de carnes brancas e laticínios. Nesta perspectiva, também a pres-
são econômica pela reforma agrária era aliviada por pequenos
produtores de origem alemã assentados no Sul que mostraram ser
parceiros atuantes do emergente complexo agroindustrial.3
Entretanto, antes de recomeçar o meu trabalho de campo, a
Bolsa da Fundação Ford acabou e tive que retornar à Inglaterra,
agora para Londres. Havia alguma pressão e uma certa nostalgia
por um envolvimento renovado na militância, mas durante a mi-
nha estada no Brasil havia me distanciado não só da militância, mas
também, embora menos definidamente, do marxismo. Dois livros
tiveram papel fundamental neste sentido – Stoneage Economics, de
Sahlins (1972), e Mirror of Production, de Baudrillard (1973) –, pois
ambos destacavam a cultura e o consumo. Esta orientação ao con-
sumo me fez focar desde então no papel hegemônico emergente
do varejo de larga escala e confirmou minhas percepções acerca do
consumo alimentar urbano desenvolvido dentro da estrutura de
pesquisa Arroyo/Pecla.
Em Londres, conheci David Goodman, então professor da
University College London, que se tornaria um parceiro intelectual
a partir de então. Goodman fazia parte de uma equipe de pesquisa
liderada por Richard Munton, da qual àquela época Terry Marsden
e Sarah Whatmore eram membros juniores. Ele também dirigia um
seminário sobre o Brasil, do qual participava Maria Jose Carneiro,
que, depois, entraria no CPDA comigo, no mesmo ano de 1982.
3 A dinâmica social e dos direitos da reforma agrária ficariam mais claras com a
democratização a partir de 1985.
26JOHN WILKINSON
Sorj também estava em Londres. Escrevemos juntos um artigo,
“Processos sociais e formas de produção na agricultura brasileira”,
que foi publicado num livro organizado por Bernardo Sorj e Maria
Herminia Tavares de Almeida, em 1983, e Sorj propôs que eu cola-
borasse num livro que ele estava escrevendo que seria publicado
pela Zahar com o título Estado e classes sociais na agricultura bra-
sileira. Entretanto, o meu conhecimento do Brasil ainda era muito
frágil e, em vez disto, dentro da estrutura do Seminário de David
Goodman, nós três começamos a desenvolver as nossas visões
acerca da tese do complexo agroindustrial.
Nosso argumento principal era que o conceito do complexo
agroindustrial, bem como a noção de um “pacote tecnológico” da
Revolução Verde, sugeriu um processo demasiadamente coerente.
Em vez disso, argumentamos que diferentes aspectos do processo
agrícola eram apropriados em momentos distintos, com base em
possibilidades tecnológicas diversas e por capitais diferenciados.
Creio que até usamos o conceito de Poulantzas de “diferentes fra-
ções da capital”, bastante popular à época. Um artigo nesta linha se-
ria finalmente publicado em 1985 na Revista de Economia Política,
com o título “Agroindústria, políticas públicas e estruturas sociais
rurais” (87 citações no Google Scholar).4 Até aquele momento,
todavia, estávamos bem adiantados com a elaboração de From
Farming to Biotechnology, que seria publicado dois anos depois
pela Blackwell.
4 Em diferentes pontos deste Memorial indicarei dados das citações Google
Acadêmico para publicações distintas. Até 13 de agosto de 2019, meu total de
citações na Google Scholar era de 6.051 (com índice-h de 35 e índice-10 de 86).
27JOHN WILKINSON
Na nossa estadia na Europa, Sorj e eu visitamos Gonzalo
Arroyo em Paris, onde também conhecemos seus auxiliares Jean
Marc Van der Weid e Sylvio Gomes de Almeida, que depois funda-
riam a Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa,
(AS-PTA), no Brasil e defenderiam o fortalecimento das redes de
produção e intercâmbio de inspiração especificamente camponesa.
Depois de um ano e meio em Londres, retornei ao Brasil
com a promessa de que trabalharia na Secretaria de Agricultura na
Bahia, com a responsabilidade de avaliar os programas especiais
do Banco Mundial no estado – Polonordeste e Projeto Sertanejo.
Esta posição me ofereceu condições ideais para redesenhar o meu
trabalho de campo, agora beneficiado com excelente apoio logís-
tico e auxiliares de pesquisa. O acompanhamento destes projetos
familiarizou -me com o “interior” da Bahia (que tem as dimensões
da França) e consegui realizar pesquisas em regiões importantes
em termos da presença de pequenos agricultores. A pesquisa mais
detalhada foi elaborada no assentamento de Serra do Ramalho,
para agricultores removidos das suas terras e comunidades para
a construção de barragem hidrelétrica de Sobradinho no rio São
Francisco (“Velho Chico”). Sou eternamente grato pelo apoio da
equipe da Cepa durante esse período e, especialmente, à Cristina
Macedo, que compartilhou o trabalho de campo comigo na Serra
do Ramalho.
À época, infelizmente, mas provavelmente para o melhor no
final das contas, contraí hepatite durante a pesquisa no assenta-
mento e fiquei acamado por uns dois meses. Em repouso forçado
e com a ajuda de doses de “cana de macaco”, um suco de uma va-
riedade de cana-de-açúcar, de um vizinho amável que também me
disponibilizou uma leitura erudita (Elogio da loucura, de Erasmo
28JOHN WILKINSON
de Roterdã), consegui dedicar -me à redação da minha tese. Apesar
do enfraquecimento da influência que tiveram sobre mim desde
o início na universidade, os debates agrários clássicos ainda eram
referência decisiva para a análise da realidade contemporânea, e
mergulhei na leitura de The Development of Capitalism in Russia,
de Lenin, e Peasant Farm Organization, de Chayanov (traduzido
apenas para o inglês em 1966 e lido por mim
,estavam terminando o mestrado nesse período, exigindo mais
dedicação de minha parte. Além disso, o CPDA estava envolvido
em intensas discussões sobre mudança curricular, reordenação de
campos temáticos, criação de novas áreas de concentração, com
os estudos sobre cultura ganhando mais espaço. Esses debates se
faziam de forma bastante tensa, permeados pelos riscos de desa-
gregação de um grupo cuja marca era a capacidade de sobreviver às
crises (internas e externas). Não era só um investimento de algumas
222LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
horas, mas um permanente envolvimento emocional de todos
nós. Nas discussões estavam em jogo não apenas uma estrutura
de curso, mas subjacente a ela concepções sobre desenvolvimen-
to; relações entre agricultura e meio rural e presença do rural no
urbano, colocando em questão as fronteiras entre esses espaços;
dimensões culturais do mundo rural, chamando a atenção para
outros aspectos desse universo que pouco haviam sido objeto de
tratamento sistemático nas disciplinas existentes até então.
Ao tempo dessas discussões, foram criadas as áreas de concen-
tração “Desenvolvimento e Agricultura” e “Sociedade e Agricultura”
para abrigar os distintos interesses de reflexão e pesquisa. Filiei -me
à área de “Desenvolvimento e Agricultura”. A essas duas áreas de
concentração somou -se uma outra, em “Planejamento e Políticas
de Desenvolvimento Agrícola e Rural na América Latina e o Caribe”,
denominada “Vittorio Marrama”, criada em 1989, sob o patrocínio
da FAO/Roma e da Cooperação Técnica Internacional do governo
italiano.63 Essa área funcionava, por exigência da FAO, na cidade
do Rio de Janeiro, num precário espaço cedido pela UFRJ no seu
campus da Praia Vermelha. Nem todos professores do CPDA parti-
cipavam da experiência latino-americana (entre estes, eu mesma),
provocando novas tensões internas. Por outro lado, essa movi-
mentação trouxe com mais força, para o CPDA, a possibilidade de
63 Após cinco turmas, já sem o apoio da FAO, essa área de concentração se trans-
formou na área de “Estudos Internacionais Comparados”, que deixou de existir,
assim como as demais, na reforma do curso iniciada em 2003.
223LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
mudança de lugar físico. Buscávamos alternativas para nos fixar na
cidade do Rio de Janeiro, o que aconteceria em 1992.64
Tudo isso ocorria num momento em que a pós- graduação
brasileira se consolidava, criava mecanismos gradativamente mais
sofisticados de avaliação, áreas de filiação mais especializadas e
nos obrigava a fazer opções. Cada vez mais nos distanciávamos das
abordagens econômicas e valorizávamos as dimensões sociais e
políticas, o que nos levou desde cedo a escolher como área de ava-
liação a de Ciências Sociais.
Uma segunda razão da demora na minha titulação foram os
investimentos relacionados à inserção na academia, como pesqui-
sadora dos movimentos sociais. O tema me colocava num lugar
ambivalente, com o qual já convivia há algum tempo. Como afir-
mei anteriormente, nunca tive a menor sombra de dúvida de que
minha opção profissional era a academia. Para isso, tinha que ter-
minar a tese e prosseguir as atividades de pesquisa e orientação,
mas não rejeitei possibilidades de diálogo com movimentos socais,
com organizações não governamentais que atuavam com os tra-
balhadores do campo e, mais eventualmente, com instituições
governamentais. Esse diálogo me alimentava como pesquisadora,
colocando -me questões que dificilmente chegariam por outros
caminhos, estritamente acadêmicos.
64 Em maio de 1990, o Instituto do Açúcar e do Álcool foi extinto pelo governo
Collor de Melo. Vários de seus prédios foram cedidos a outras instituições. É o
caso dos quatro andares que funcionavam na avenida Presidente Vargas (6o ao
9o), formalmente cedidos à UFRRJ, após negociação mediada pela FAO, que tinha
interesse em que a área de concentração que financiava funcionasse na cidade
do Rio de Janeiro, dado o perfil latino-americano dos alunos e a necessidade de
que convivessem com as bibliotecas, que abundavam na cidade.
224LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
Continuei envolvida em debates vários. Já em 1987, vivi uma
experiência enriquecedora participando, como representante da
UFRRJ, na Comissão Agrária do Estado do Rio de Janeiro.65 A tare-
fa central era participar de reuniões nas quais eram apresentados
os processos de desapropriação, já devidamente instruídos com
relatórios de vistoria, e discutir sobre a pertinência ou não da desa-
propriação. Essa atividade me ajudou muito a refletir sobre temas
que depois se consolidaram como objetos de pesquisa: a relação
Estado/assentamentos no Rio de Janeiro, a dinâmica dos assenta-
mentos fluminenses considerando a peculiaridade de seu público,
os argumentos patronais (que eu havia estudado no mestrado, a
partir de documentos, mas que agora eram esgrimidos em torno de
uma mesa, num debate no qual estava em jogo a desapropriação
ou não de alguns imóveis), e também meu lugar ali, como repre-
sentante do Estado a partir da universidade. Esse foi um momento
central para entender a multiplicidade de espaços e disputas no in-
terior do Estado.
Paralelamente, participava de reuniões no Instituto Brasileiro
de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), para onde fora Candido
Grzybowski, após um curto período como professor do CPDA. Num
momento de intensas discussões sobre as perspectivas da reforma
65 Após a aprovação do I Plano Nacional de Reforma Agrária, no final de 1985, as
diferentes unidades da Federação elaboraram seus próprios planos e constituíram
suas comissões agrárias, destinadas a analisar os processos de desapropriação de
terras e opinar sobre eles. As comissões eram compostas por três representantes
das entidades patronais, três das entidades de trabalhadores e três do Estado:
o superintendente do Incra estadual, um representante do governo estadual e
um representante da Universidade. As comissões funcionaram por cerca de dois
anos. Em virtude das vicissitudes políticas da reforma agrária no governo Sarney,
acabaram desaparecendo ainda no final dos anos 1980.
225LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS
agrária ante os recuos do governo Sarney e os horizontes que se
abriam diante da instalação da Assembleia Constituinte em 1987,
o Ibase era um fórum importante. Criara, em 1983, a Campanha
Nacional pela Reforma Agrária, que se desdobrou na coleta de assi-
naturas para que a proposta fosse incorporada na nova Constituição.
Nos anos 1980, o seu casarão na rua Vicente de Souza abrigava dis-
cussões e seminários diversos sobre reforma agrária.
Logo depois, fui convidada por Maria Emília Pacheco, uma
das coordenadoras da Federação de Órgãos para Assistência Social
e Educacional (Fase), para um trabalho que representou um enor-
me desafio, que aceitei, fiz com muito prazer, mas exigiu -me um
grande investimento. A Fase, que tinha uma tradição de atuação
em formação de trabalhadores, pedia -me para escrever um livro
sobre a história das lutas dos trabalhadores do campo, destinado a
subsidiar formação de lideranças. Eu tinha muita pesquisa já feita
sobre o tema, tanto para minha dissertação de mestrado, quanto
para a de doutorado ainda em curso, além de coisas escritas sobre
sindicalismo. Tratava -se de sistematizar isso, verificar as ausên-
cias e redigir um texto não acadêmico, ilustrado, com sugestões de
vídeos. De acordo com a proposta, eu me encarregaria do texto e
sugestões de imagens, e a Fase se responsabilizaria pela pesquisa
de vídeos e edição do texto com as ilustrações adequadas. Jean
Pierre Leroy elaborou, a partir de uma versão preliminar que pro-
duzi, uma linha do tempo que foi encartada no livro. O resultado,
História dos movimentos sociais no campo (Medeiros, 1989), além
de largamente utilizado em cursos de formação, acabou sendo
indicado também em algumas escolas de segundo grau e em anos
226LEONILDE SERVOLO
,em versão espanhola).
Na minha leitura, as estatísticas do próprio Lenin não apoia-
vam a sua tese da diferenciação de classes e do desaparecimento de
propriedades camponesas de tamanho médio em benefício dos tra-
balhadores rurais e grandes propriedades. O que mais me impres-
sionou na leitura de Chayanov não foi o ajustamento da produção
camponesa ao ciclo de vida familiar mas o seu relato da integração
da produção camponesa à cadeia agroindustrial da juta, quando ele
faz uma análise clarividente daquilo que estávamos categorizando
como a integração vertical da pequena agricultura na agroindús-
tria, embora fosse através do sistema de cooperativas, e não das
corporações privadas, que Chayanov projetara como modelo.
Defendi minha tese em 1982, e o PhD concluído acabou sen-
do meu passaporte para a entrada no CPDA/UFRRJ, onde Nelson
Delgado e mais uma vez Bernardo Sorj foram influências decisi-
vas. Antes disso, apresentei a minha pesquisa numa reunião do
CPDA, na qual fiquei impressionado pelo entusiasmo na condução
das discussões. Posteriormente, naquele ano, apresentei um tra-
balho na reunião da Anpocs que foi publicado na Série, Programa
de Estudos de América Latina, (Pecla), da Universidade de Minas
Gerais, com o título “Reflexões sobre o estado e a pequena produ-
ção tradicional”. Minha tese foi publicada pela editora Hucitec, em
1985, com o título O estado, a agroindústria e a pequena produção
29JOHN WILKINSON
(120 citações), numa série organizada por Oriowaldo Queda e João
Carlos Duarte, sendo o segundo colega no CPDA, infelizmente já
falecido.
Em 1980 ou 1981, David Goodman veio ao Rio de Janeiro
como diretor da Fundação Ford e nós, juntamente com Bernardo
Sorj, começamos a ter reuniões regulares nas quais formulamos a
ideia de um projeto de livro. À época, eu estava impressionado com
The Agrarian Question, de Karl Kautsky, que li numa versão em es-
panhol (Partes de The Agrarian Question haviam sido traduzidas
para o inglês por Jairus Benaji e publicadas em Economy & Society,
em 1975.) Para mim, Kautsky capturou, mais do que qualquer outro
autor, o caráter especial da produção agrícola diante do desenvol-
vimento tecnológico e da instrumentalização da agricultura uma
vez sujeita à industrialização. Num tempo em que ferrovias e na-
vios a vapor estavam revolucionando o transporte, a agricultura
continuou dependente da energia animal até a chegada do trator.
Esforços foram feitos para que fossem utilizadas máquinas sobre
trilhos em propriedades agrícolas, mas foram rapidamente abando-
nados e introduzidas apenas máquinas fixas para o beneficiamento
das lavouras já colhidas. Na análise de Kautsky, vemos claramente
como a agricultura constitui um problema para o capitalismo e em
um momento ele exclama que se o capitalismo pudesse produzir
pão de pedras, assim faria.
Desse modo, o nosso ponto de partida era a excepcionalidade
da produção agrícola para o capitalismo. Não podíamos simples-
mente falar da industrialização da agricultura, mas precisávamos
reconhecer o seu caráter parcial e fragmentado que era relacionado
com os avanços da ciência em lidar com processos agrícolas.
Precisávamos voltar aos primórdios da história das transformações
30JOHN WILKINSON
agrícolas na sequência da revolução industrial. Bernardo Sorj, que
passara algum tempo na OCDE em Paris, nos apresentou ao tra-
balho de François Chesnais sobre biotecnologia, que ofereceu um
enfoque mais claro tanto da especificidade da agricultura como da
forma em que convergências tecnológicas na agricultura depen-
diam do grau ao qual os processos biológicos podiam ser sujeitos à
manipulação industrial.
Começou então um período muito intenso de leitura coleti-
va, pesquisa e discussão facilitado ainda mais com a transferência
de Bernardo Sorj para a Universidade Federal do Rio de Janeiro no
mesmo período em que entrei no CPDA. Os textos centrais foram
Agriculture in Western Europe, de Tracy (1982) e uma multidão
de artigos sobre a chamada high farming – “The second agricul-
tural revolution”, o artigo de F. M. L. Thompson, de 1968, seria um
bom exemplo. Food in History, de Tannahill, foi uma fonte útil. O
Escritório de Avaliação Tecnológica do Congresso dos Estados
Unidos (OTA), posteriormente fechado, também foi uma referên-
cia-chave sobre a biotecnologia na década de 1980. D. S. Landes,
cuja obra Prometheus Unbound teve influência decisiva sobre mim,
por algum motivo não foi citado na versão final do livro. O artigo
de Mann e Dickinson, de 1978, “Obstacles to the Development of
a Capitalist Agriculture” estava bastante alinhado com o nosso
pensamento e os autores franceses da década de 1970 – C. Faure,
Agriculture et Capitalisme, 1978; A. Mollard, Paysans Exploités,
1978; C. Servolin, “L’Absorption de l’agriculture dans le mode de
production capitaliste”, 1972 – e ofereceu importantes contribui-
ções sobre a modernização do campesinato.
Além dos relatórios técnicos produzidos pelo OTA, OCDE e a
Comissão Europeia, a biotecnologia começava a despertar a atenção
31JOHN WILKINSON
de acadêmicos e deve -se mencionar os artigos de E. Yoxen, de 1981,
“Life as a Productive Force: capitalising the science and technolo-
gy of molecular biology”; o artigo de 1983, de Kenny, Kloppenberg,
Buttel e Cowan, “Genetic Engineering and Agriculture: socioeco-
nomic aspects of biotechnology R&D in developed and developing
countries”, bem como o livro de P. Byé e A. Mounier, Les Futures
Alimentaires et Energetiques des Biotecnologias, 1984.
Dando continuidade à nossa rejeição à noção de um comple-
xo agroindustrial unificado, argumentamos que a industrialização
das atividades agrícolas a jusante e a montante era radicalmente
diferente e que, dentro de cada processo amplo, dinâmicas tecno-
lógicas distintas poderiam ser identificadas. Os avanços científicos
e tecnológicos com respeito aos processos biológicos definiam o
potencial cambiante de convergências e o grau em que a indus-
trialização da agricultura poderia avançar. A industrialização a
montante teria como base a continuação da agricultura, que seria
transformada em mercados para insumos industriais, equipamen-
tos e maquinaria. Denominamos este padrão de industrialização
de “apropriacionismo”. A jusante, todavia, os produtos agrícolas
eram transformados em meros insumos para a criação de produtos
industriais alimentares e não alimentares. Esta instrumentaliza-
ção da matéria-prima agrícola apontava que, em princípio, depen-
dendo do desenvolvimento tecnológico, dos custos e da aceitação
pelos consumidores, os insumos agrícolas poderiam ser completa-
mente dispensáveis. Sendo assim, a industrialização dos produtos
a jusante era definida como “substitucionismo”.
A agricultura, nesta perspectiva, era o residual, resistente à
industrialização, reduzida às atividades elementares da fotossíntese
que o agricultor precisava gerenciar com base numa multiplicidade
32JOHN WILKINSON
de insumos industriais e fornecedores de máquinas para os quais
a agricultura fora transformada em mercado. Aqui estava o germe
de uma crítica ecológica que não foi plenamente explicitada no
texto final.
Antes de concluir o livro, mas com o rascunho bem adiantado,
David retornou à Inglaterra. Bernardo Sorj estava trabalhando com
a Cube, a Unidade de Biotecnologia da XII Diretoria da Comissão
Europeia, e fui convidado a me candidatar a uma Fellowship na
Unidade de Previsão e Avaliação de Ciência e Tecnologia (Fast, da
sigla em inglês), também da XII Diretoria da Comissão Europeia.
À época, eu estava bem integrado no CPDA, era Pesquisador 1
do CNPq (e continuo sendo),5 e havia sido eleito coordenador do
CPDA nos dias inebriantes que marcavam o fim da ditadura militar
no Brasil. O próprio CPDA estava experimentando um período de
tensão, na medida em que novas temáticas e novos conceitos do
que seria o “rural”
,começavam a desafiar o seu perfil econômico e
político dominante até então. No governo de transição, um dos nos-
sos colegas estava no Ministério de Reforma Agrária e, com Nelson
Delgado, fomos a Brasília para apresentar uma visão de uma pos-
sível colaboração entre os ministérios relevantes e o CPDA. Foi du-
rante esta difícil conjuntura que recebi o convite para fazer parte
da equipe Fast em Bruxelas. Felizmente, o CPDA foi receptivo e o
professor Jorge Romano, generosamente, concordou em assumir o
meu lugar como coordenador.
Passei quase dois anos trabalhando no Programa Fast, e
fui colocado na direção da pesquisa em biotecnologia e sistema
5 O projeto com o qual me tornei pesquisador do CNPq foi escolhido como me-
lhor projeto de pesquisa de 1984.
33JOHN WILKINSON
alimentar. Já que David Goodman e eu estávamos em constante
contato, rapidamente concluímos e preparamos o texto que es-
tivéramos redigindo com Bernardo Sorj para a publicação, pela
Blackwell: From Farming to Biotechnology (1.009 citações). No
meu tempo no Programa Fast, elaborei um plano de pesquisa so-
bre diferentes elos na cadeia alimentar e biotecnologia e contratei,
além de David, uma pesquisadora uruguaia, Ruth Rama, na época
e ainda hoje, no Conselho Espanhol de Pesquisa (CSIC, sigla em
espanhol) em Madri, que trabalhara com Raul Vigorito no México
e com quem trabalhei e continuo trabalhando numa série de pro-
jetos de pesquisa relacionados à inovação na agricultura e no sis-
tema alimentar. Também estabeleci um contrato com o Institute
National de Récherche Agricole, (INRA), em Paris que proporcio-
nou contatos com o pesquisador Raul Green, com quem iria cola-
borar intensamente nos anos seguintes, e que foi o primeiro a me
apontar a hegemonia emergente do setor varejista de larga escala
sobre o sistema alimentar como um todo, e como corolário, a cen-
tralidade não só da biotecnologia como também da informática no
sistema agroalimentar.
Antes de deixar o Programa Fast, preparei um relatório que
saiu na Série de Publicações do Programa Fast e foi depois traduzi-
do e publicado em 1989 no Brasil, pela Hucitec, que também havia
publicado minha tese, com o título The Future of the Food System
(62 citações). Com base no nosso trabalho na Comissão Europeia
e especificamente na biotecnologia, que rapidamente estava se
tornando uma questão vital de política, tanto eu como Sorj fomos
contratados para produzir uma série de Relatórios para o Centro
de Desenvolvimento da OCDE. No meu tempo no Programa
Fast, havia feito contatos com a Unidade de Pesquisa de Políticas
34JOHN WILKINSON
Científicas (SPRU, sigla em inglês), em Brighton, Inglaterra, e isto
me levou a um contato empolgante com a teoria neoschumpete-
riana da inovação e a teoria de regulação que apliquei à biotecno-
logia. Um contrato com a OCDE abriu as portas para eu entrevistar
empresas startups líderes na agrotecnologia, empresas de sem*n-
tes e firmas químicas e de alimentos nos Estados Unidos, Europa e
Japão. Esta pesquisa deu origem a duas publicações, um capítulo
no livro da OCDE Biotechnology, Agriculture and Food, organizado
por Salomon Wald (1992), e um artigo na revista Agriculture and
Human Values, em 1993, “Adjusting to a Demand Oriented Food
System: new directions for biotechnology innovation”. Este segun-
do trabalho foi a reformulação de uma apresentação feita numa
Conferência de Biotecnologia organizada por Pascal Byé e Maria
Fonte em Roma, em 1992, e seria talvez a mais “neoschumpeteria-
na” entre as minhas publicações. O Centro de Desenvolvimento da
OCDE também foi uma importante fonte de apoio de pesquisa para
estudar biotecnologias no Brasil, e resultou em três estudos publi-
cados pelo Centro de Desenvolvimento da OCDE sobre biotecno-
logias e bioetanol, milho, e os Centros de Soja e Trigo da Embrapa,
respectivamente.
Ao retornar ao Brasil, e com base no meu trabalho no Programa
Fast, fui convidado a ocupar o cargo de assessor/consultor na en-
tão Secretaria de Ciência e Tecnologia, em Brasília, cujo secretário
executivo era Luciano Coutinho, com quem depois trabalharia em
diversos projetos de pesquisa. Fui encarregado de preparar um
documento: “Tecnologias Avançadas e América Latina, 2000”, que
tratava da informática, biotecnologia, novos materiais, química fina
e telecomunicações. A ideia era de engajar os cinco grandes paí-
ses latino-americanos – Argentina, Colômbia, Venezuela, México
35JOHN WILKINSON
e Brasil –, e isto me proporcionou uma oportunidade singular de
visitar esses países e suas unidades mais importantes de ciência e
tecnologia. Recordo -me de que, quando o projeto estava amadu-
recendo bem, passou a ser objeto de atenções, e a coordenação foi
passada à filha de um general boliviano, se não me engano.
Em 1989-90, fui convidado como pesquisador visitante ao
Inra, em Paris, por Raul Green, que trabalhara comigo no Programa
Fast em Bruxelas. Este foi um período bastante formativo e, em cola-
boração com Roseli Rocha dos Santos, da Universidade Federal do
Paraná, estabelecemos um observatório dos principais grupos na
área de agroalimentos, cobrindo publicações em francês, italiano,
inglês, português e espanhol. Ao longo dos anos, reproduzimos
muitos volumes de artigos em periódicos e jornais que proveram va-
liosíssimos materiais para a nossa pesquisa contínua e publicações.
Jorge Schvarzer, um colega argentino de Raul Green, e eu coorgani-
zamos o estudo Mercados, Tecnologia y Empresas, publicado pelo
Inra, Paris, em 1991, resultado de uma pesquisa com financiamen-
to da Cooperativa Europeia, Credal, La Dynamique du Changement
Technique et la Restructuration du Secteur Agroalimentar que reunia
pesquisadores da França, Argentina e Brasil, com trabalhos apre-
sentados em reuniões em Buenos Aires, Curitiba e Paris durante o
biênio 1989-1990. Além de mim, Roseli Rocha dos Santos e Geraldo
Müller proveram as contribuições brasileiras a este volume.
Enquanto estava em Paris, passei a integrar um projeto euro-
peu de pesquisa sobre a Reestruturação da Indústria Alimentar na
Europa, “Changement Technique et Restructuration de l´Industrie
Agroalimentaire”, e fui incorporado como o representante “britâni-
co”, com base na minha associação com David Goodman e a unidade
de pesquisa coordenada por Richard Munton. O componente
36JOHN WILKINSON
italiano foi coordenado a partir da Universidade de Bologna, por
Roberto Fanfani, e de Madri, por Manuel Rodriguez Zuñiga, infe-
lizmente falecido, e do Inra/Paris, por Raul Green. Publicamos um
artigo conjunto em 1991 que esboçou a abordagem teórica e as
principais conclusões da pesquisa no periódico francês Économie
et Sociologie Rurales.
Nos extensos períodos de cooperação com Raul Green, desen-
volvi uma apreciação mais profunda do papel histórico do comér-
cio (sendo ele grande aficionado de Braudel), da centralidade do
varejo em grande escala para a redefinição das relações a jusante,
ao longo da cadeia agroalimentar, e a montante, para a demanda fi-
nal, e, sobretudo, o papel decisivo da logística e informática.6 Já ha-
víamos sido claros acerca da importância tanto do varejo como da
informática nos esboços finais de From Farming to Biotechnology,
mas eu ainda insistia na centralidade das biociências em definir as
relações entre a indústria e os processos naturais do agroalimento.
No CPDA, comecei o meu ensino em 1982 com uma disciplina
acerca dos clássicos debates agrários e, então, preparei uma disci-
plina inicialmente intitulada “Estruturas Agroindustriais” e, depois,
“The World Food System”, que se tornou elemento permanente no
currículo do CPDA. Um desenvolvimento institucional de grande
importância foi a criação do Curso de Mestrado Latino-Americano
Vittorio Marrama, ao final da década de 1980, com financiamento
da Food and Agriculture Organisation (FAO), das Nações Unidas,
em parceria
,com a Universidade de Portici, na Itália, e também
6 Uma das primeiras dissertações de Mestrado que supervisionei era sobre o
tema dos supermercados – O fenômeno supermercado –, concluída com êxito por
Carlos Alberto Pereira, em 1990.
37JOHN WILKINSON
com a Universidade Autônoma, de Roma. Lá ministrei uma disci-
plina sobre Agricultura e Agroindústria na América Latina, que me
trouxe contatos com autores e pesquisadores da agricultura e agro-
alimentos de um amplo número de países latino-americanos, es-
pecialmente Argentina, Uruguai, Chile, Colômbia e México. Os alu-
nos, especialmente nos anos iniciais, geralmente eram excelentes e
era um prazer e um desafio lecionar e orienter as suas dissertações.
Esta experiência posteriormente seria valiosíssima quando come-
cei diversas atividades de pesquisa para a FAO América Latina,
Ecla/Cepal, IICA e Procisur (um programa de cooperação entre os
Institutos Nacionais de Pesquisa Agrícola dos países do Mercosul).
Já em 1988, começara o meu envolvimento no Mercosul,
quando, com Hector Alimonda (já falecido, infelizmente), e com o
apoio da Fundação Ford, organizamos o que deve ter sido o primei-
ro seminário a analisar a dinâmica da agricultura no contexto da in-
tegração regional dos países do Mercosul. Os contatos de Alimonda
na Argentina foram decisivos para o sucesso do seminário, e os
resultados foram publicados como Anais pela nossa Universidade
(UFRRJ). Pensando retrospectivamente, a qualidade dos trabalhos
apresentados e a originalidade dos temas mereciam uma estratégia
de publicação mais ousada.
Conforme já mencionado, eu havia começado a me distan-
ciar do marxismo ao ler Sahlins e Baudrillard, mas este processo
foi lento e irregular. O capítulo sobre os debates agrários em From
Farming to Biotechnology mostrava o quanto ainda devíamos aos
termos marxistas. Um período de distanciamento ainda maior para
mim foi o tempo no Programa Fast e, nos anos seguintes, quando
cada vez mais busquei inspiração nas perspectivas neoschumpe-
terianas. Technical Change and Economic Theory, quando da sua
38JOHN WILKINSON
publicação, em 1988, organizado por Geovanni Dosi, Christopher
Freeman, Richard Nelson, Gerald Silverberg e Luc Soete, passou
a ser a minha bíblia. Geovanni Dosi foi o comentarista no traba-
lho que apresentei à Conferência de Biotecnologia em Roma, em
1992. Meu neoschumpeterianismo ao mesmo tempo vinha mis-
turado com a teoria francesa de Regulação (também muito bem
representado na “bíblia”), que, por sua vez, mantinha uma relação
ambivalente com o marxismo. Assim seria mais preciso falar de um
distanciamento do marxismo do que de um rompimento.
A obra de Buttel e Newby (eds.), Rural Sociology of the
Advanced Societies: critical perspectives (1981), marcou uma mu-
dança decisiva na disciplina para um foco nas novas relações de
produção que estavam emergindo na agricultura e, também, um
foco mais amplo sobre as questões de política agrícola. Na sua
abertura aos debates marxistas, um enfoque na economia políti-
ca dos sistemas agroalimentares começou a definir o campo dos
estudos rurais no mundo desenvolvido também. Uma nova gera-
ção de acadêmicos surgiu nos Estados Unidos – Fred Buttel, Jack
Kloppenberg, Larry Busch, Martin Kenny, Julie Guthmann, Phil
McMichael e Harriet Friedmann. Os dois últimos, ao combinarem
Wallerstein com a teoria de regulação, ofereceram uma potente es-
trutura macro para analisar o Sistema Alimentar ao desenvolverem
a sua abordagem de “regimes alimentares”. Bill Friedland, um radi-
cal da velha guarda, publicou Manufacturing Green Gold, em 1981,
que se encaixava perfeitamente nas novas preocupações acerca da
cadeia agroalimentar.
Nosso livro From Farming to Biotechnology recebeu uma rese-
nha amplamente positiva de Fred Buttel e foi muito bem recebido,
comentado e citado no mundo dos estudos rurais da língua inglesa.
39JOHN WILKINSON
David Goodman foi da University College, Londres, à Universidade
Santa Cruz, Califórnia, em 1990, o que, em função da nossa conti-
nuada colaboração, significou que eu também me integrei com a
crescente rede de sociólogos rurais “radicais”. O empurra e puxa do
marxismo como referência, portanto, continuava, como continua
até hoje.
Algo decisivo àquela época foi o meu “encontro” com Mark
Granovetter e sua noção de embeddedness (enraizamento) e das
redes sociais como unidades analíticas para entender a ativida-
de econômica. Não me lembro mais do ano exato ou do texto de
Granovetter que me lançou na minha investigação da nova socio-
logia econômica (NSE), mas fui impactado o suficiente para ter
uma troca de cartas com esse autor enquanto ele ainda estava na
Universidade Estadual de Nova York, em Stony Brook. Com a mi-
nha formação marxista, a economia sempre foi elemento central
no meu pensar, mas tive uma convicção weberiana contínua de
que ela deve ser entendida como uma forma de ação social. O foco
sobre inovação, primeiramente com relação à agricultura e, poste-
riormente, na forma do neoschumpeterianismo, me atraía preci-
samente porque envolvia a iniciativa humana e social. Bengt-Äke
Lundvall, um influente neoschumpeteriano da Dinamarca, que
desenvolveu o conceito do “sistema de inovação” e focalizava bas-
tante o aprendizado, passou a ser especialmente importante porque
criou a noção da “inovação induzida pelo usuário”, que colocava a
iniciativa social em vez do desenvolvimento autônomo da ciência
40JOHN WILKINSON
e tecnologia no cerne da inovação.7 O trabalho de Granovetter foi
especialmente importante porque, na minha leitura, ele não se
limitou a identificar as influências sociais sobre a ação econômi-
ca, mas mostrou, especialmente na sua análise da informação e das
redes sociais, como a própria informação que fundamenta a ação
econômica é filtrada e se faz presente através das redes sociais.
Getting a Job e The Strength of Weak Ties foram possantes exempli-
ficações desta abordagem.8
Daquele ponto em diante, sempre me descrevi como um
sociólogo econômico. O Brasil, naquele momento, na esteira da
redemocratização, experimentou uma renovação dos movimentos
sociais rurais tanto pela reforma agrária como para o fortalecimen-
to do setor agrícola familiar. Como parte das iniciativas do CPDA,
ministrei cursos à ala sindical do Movimento dos Sem Terra (MST),
e preparei material didático, Agricultura x indústria: os espaços da
produção familiar (2 vols.), sobre a agricultura familiar, não como
setor de subsistência, mas como componente vital do sistema
agroalimentar moderno, para cursos organizados pelo Instituto
Interamericano de Cooperação para a Agricultura, (IICA), e pelo
Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social,
7 Conheci Bengt-Äke Lundvall quando estava colaborando com o Centro de
Pesquisa sobre Inovação e Competição, (CRIC), em Manchester. Foi neste perío-
do que também conheci Mark Harvey, cujo trabalho em biotecnologia acompa-
nharia depois.
8 Foi neste período que coorientei Glaucia M. Vasconcellos na sua tese de dou-
torado, Laços como ativos territoriais (2005), que daria origem a um artigo con-
junto (incluindo Robson Amadeu o orientador interno), “Empreendedorismo,
inovação e redes: uma nova abordagem”, publicado na RAE Electronic Edition, v.
7, n. 1, em 2008. Glaucia depois se distinguiria não só no mundo acadêmico, mas
também como poeta.
41JOHN WILKINSON
(IPARDES). Esta visão foi poderosamente reforçada com a publi-
cação das teses de Ricardo Abramovay, Paradigmas do capitalismo
agrário em questão (1991), e de José Eli da Veiga, O desenvolvimento
agrícola: uma visão histórica, ambas na mesma coleção Hucitec na
qual eu publicara minha tese e o Relatório do Programa Fast.
Um momento importante nas minhas reflexões acerca da di-
nâmica da agricultura familiar foi possibilitado por um convite para
ser consultor num projeto de pesquisa sobre agricultura
,familiar na
Região Oeste do estado de Santa Catarina. Eu havia orientado as
dissertações de vários alunos de Santa Catarina, todos eles em po-
sições de responsabilidade nas atividades de extensão rural. Com
meu trabalho sobre as implicações da biotecnologia, também estava
em contato constante com militantes do movimento de Agricultura
Alternativa,9 sendo que alguns dos seus principais expoentes tam-
bém estavam em Santa Catarina. Acompanhar esta pesquisa e re-
alizar extensas entrevistas com agricultores familiares me propor-
cionaram valiosa experiência prática não só sobre a forma em que a
agricultura familiar estava integrada na agroindústria, seja em avi-
cultura e suinocultura ou na produção de laticínios, mas também
sobre as novas formas de mercados artesanais que estavam emer-
gindo para produtos de leite e carnes. A pesquisa foi publicada 1996,
com o título “O Desenvolvimento Sustentável do Oeste Catarinense
(Proposta para Discussão)”, e serviu como referência para debates
subsequentes sobre o desenvolvimento na região. Foi neste con-
texto que consegui desenvolver uma nova análise destes mercados
9 Apresentei uma palestra sobre biotecnologias ao lado de José Antônio
Lutzenberger, no Encontro Brasileira de Agricultura Alternativa, em 1984, no
Hotel Quitandinha, Petrópolis, que foi publicada no mesmo ano.
42JOHN WILKINSON
usando a sociologia econômica, por meio de artigos que aparece-
ram na publicação do CPDA, Estudos Sociedade e Agricultura, e de
um que também foi publicado em inglês.
O impacto da Nova Constituição e o declínio nos mercados
globais de commodities agrícolas, que diminuíram os preços e a
pressão sobre a terra no Brasil, significaram que os movimentos a
favor da reforma agrária e da agricultura familiar estiveram em alta
durante boa parte da década de 1990. A reafirmação acadêmica do
papel dos pequenos agricultores nos sistemas modernos de agricul-
tura e alimentos foi também fundamental na criação de condições
políticas favoráveis para a sua promoção e para torná -los objetos de
políticas públicas. “O Projeto de Cooperação Técnica FAO/Incra”,
coordenado por Carlos Guanziroli, de cuja equipe participei, e que
também incluía José Eli da Veiga, Shigeo Shiki, Alberto di Sabbato
e Ricardo Abramovay entre outros pesquisadores, foi decisivo a
este respeito. Este grupo não só analisou a contribuição central da
agricultura familiar, como definiu suas características como grupo
social de uma forma que possibilitou o desenvolvimento subse-
quente de políticas distintas. Preparei um artigo sobre a agricultura
familiar e a integração vertical, “Agroindústria e perspectivas para a
produção familiar no Brasil”, em 1994, para subsidiar as discussões.
O Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf)
foi lançado em 1995. Neste momento, fui também contratado pela
Cepal para preparar um documento: “Agroindústria: articulação
com os mercados e a capacidade de integração socioeconômica
da produção familiar”, que foi apresentado numa reunião da Cepal
em Santiago, onde me reencontrei com Geraldo Müller, que estava
saindo da área dos estudos rurais e entrando na área de finanças.
Os artigos foram publicados em 1995, em um livro editado pela
43JOHN WILKINSON
Cepal: Las Relaciones Agroindustriales y la Transformación de la
Agricultura.
Em 1993-94, fui convidado para coordenar o componen-
te agroindustrial de uma pesquisa, “Competividade da Indústria
Brasileira”, envolvendo um grupo de pesquisadores do Instituto
de Economia (IE), da Universidade Federal do Rio e o Instituto de
Economia (IE), da Universidade de Campinas, sob a coordenação
geral de Luciano Coutinho. Isto exigiu uma abordagem de proces-
sos macroeconômicos, momento em que percebi que minhas no-
vas ferramentas sociológicas eram de pouca valia e, em vez disto,
lancei mão de uma mistura eclética de economia industrial e eco-
nomia política. Além de um panorama geral, produzi dois estudos
setoriais – das indústrias de laticínios e de carnes, respectivamente.
O estudo geral e a análise da indústria de laticínios foram publica-
dos em 1996, com o título Estudo da Competitividade da Indústria
Brasileira: o complexo agroindustrial, quando estava de licença
para o pós- doutorado. Infelizmente, o estudo da indústria de car-
nes, que me agradou bastante, até hoje não foi publicado. A par-
ceria com a equipe do Instituto de Economia da UFRJ viria a ser
renovada diversas vezes nas décadas que se seguiram.
Durante este período, continuei a me debater com o marxis-
mo, e eu e Bernardo Sorj produzimos uma resenha crítica do livro
de Perry Anderson In the Tracks of Western Marxism. Enviamos o
artigo para possível publicação na New Left Review, que ainda era
uma referência-chave para mim. O artigo foi recusado, mas Perry
Anderson disse que estaria vindo ao Brasil e que gostaria de dis-
cuti -lo conosco. Fizemos isto no ambiente maravilhoso do Café
Colombo, onde Perry reproduziu e “refutou” cada um dos nos-
sos argumentos com grande precisão e elegância. Irredutíveis e
44JOHN WILKINSON
não persuadidos, publicamos posteriormente o artigo na revista
Contexto Internacional, da PUC-Rio.
Em 1995, saí para um pós- doc dividido entre Santa Cruz, na
Califórnia, trabalhando com David Goodman, e a Universidade de
Paris XIII, onde estive sob a supervisão de François Chesnais, cujo
trabalho com biotecnologias fora importante para nós enquan-
to estávamos concebendo o livro From Farming to Biotechnology.
Com David, preparamos um capítulo para um livro que era bastan-
te influenciado por um novo entendimento das transformações na
dinâmica da demanda alimentar, consequência do papel dominan-
te do varejo em grande escala, mas que não foi aceito para publica-
ção pelos organizadores da obra, ainda dominados, a nosso ver, por
uma perspectiva rígida de economia política. Posteriormente, re-
escrevi o artigo como um capítulo – “O perfil emergente do sistema
agroalimentar” (25 citações) –, num livro organizado juntamente
com meu colega do CPDA Renato Maluf: Restruturação do sistema
agroalimentar (1999). Sempre considerei este artigo bastante pre-
monitório, mas foi pouco notado ou citado.
No período anterior ao meu pós- doutorado, além de aprofun-
dar minhas leituras na sociologia econômica, comecei a estudar a
Teoria Ator-Rede (TAR), de Latour, Callon e Law. À época, estava
supervisionando duas dissertações de mestrado que adotavam esta
orientação e seriam concluídas com êxito 1997. Clovis Dorigon, do
Oeste de Santa Catarina, com que eu continuaria a realizar pesquisa
em anos posteriores, estudou “Microbacias como redes sóciotecni-
cas”, e Marisa Costa Almeida, “Concepções de natureza e conflitos
pelo uso do solo em Parati”.
Embora o quadro analítico de regime alimentar desenvol-
vido por Phil McMichael e Harriet Friedmann, que mencionei
45JOHN WILKINSON
anteriormente, tenha oferecido uma importante perspectiva histó-
rica para englobar o sistema alimentar como um todo, foi menos
bem-sucedido em prover um mapa depois da desagregação do
regime alimentar pós- guerra, a partir dos anos 1970. Para a teoria
do regime alimentar, estávamos naquele momento num período
de transição, e as perspectivas quanto aos contornos do regime
alimentar no futuro ainda não estavam formados. Neste vácuo, a
teoria ator-rede oferecia um forte apoio para estudos na esfera mi-
cro e mais radicalmente para contestar a divisão micro/macro, es-
pecialmente nos trabalhos de Sarah Whatmore (1997), Jonathan
Murdoch e Stewart Locke (da nova geração de sociólogos rurais
australianos).
A problemática micro-macro era uma preocupação perma-
nente para mim, e uma vez abandonado o apoio reconfortante de
uma visão marxista do mundo, como mencionei anteriormente,
vi que estava me deslocando desconfortavelmente da sociologia
econômica para a economia política como solução temporária.
,estavam terminando o mestrado nesse período, exigindo mais dedicação de minha parte. Além disso, o CPDA estava envolvido em intensas discussões sobre mudança curricular, reordenação de campos temáticos, criação de novas áreas de concentração, com os estudos sobre cultura ganhando mais espaço. Esses debates se faziam de forma bastante tensa, permeados pelos riscos de desa-gregação de um grupo cuja marca era a capacidade de sobreviver às crises (internas e externas). Não era só um investimento de algumas 222LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROShoras, mas um permanente envolvimento emocional de todos nós. Nas discussões estavam em jogo não apenas uma estrutura de curso, mas subjacente a ela concepções sobre desenvolvimen-to; relações entre agricultura e meio rural e presença do rural no urbano, colocando em questão as fronteiras entre esses espaços; dimensões culturais do mundo rural, chamando a atenção para outros aspectos desse universo que pouco haviam sido objeto de tratamento sistemático nas disciplinas existentes até então.Ao tempo dessas discussões, foram criadas as áreas de concen-tração “Desenvolvimento e Agricultura” e “Sociedade e Agricultura” para abrigar os distintos interesses de reflexão e pesquisa. Filiei -me à área de “Desenvolvimento e Agricultura”. A essas duas áreas de concentração somou -se uma outra, em “Planejamento e Políticas de Desenvolvimento Agrícola e Rural na América Latina e o Caribe”, denominada “Vittorio Marrama”, criada em 1989, sob o patrocínio da FAO/Roma e da Cooperação Técnica Internacional do governo italiano.63 Essa área funcionava, por exigência da FAO, na cidade do Rio de Janeiro, num precário espaço cedido pela UFRJ no seu campus da Praia Vermelha. Nem todos professores do CPDA parti-cipavam da experiência latino-americana (entre estes, eu mesma), provocando novas tensões internas. Por outro lado, essa movi-mentação trouxe com mais força, para o CPDA, a possibilidade de 63 Após cinco turmas, já sem o apoio da FAO, essa área de concentração se trans-formou na área de “Estudos Internacionais Comparados”, que deixou de existir, assim como as demais, na reforma do curso iniciada em 2003.223LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROSmudança de lugar físico. Buscávamos alternativas para nos fixar na cidade do Rio de Janeiro, o que aconteceria em 1992.64Tudo isso ocorria num momento em que a pós- graduação brasileira se consolidava, criava mecanismos gradativamente mais sofisticados de avaliação, áreas de filiação mais especializadas e nos obrigava a fazer opções. Cada vez mais nos distanciávamos das abordagens econômicas e valorizávamos as dimensões sociais e políticas, o que nos levou desde cedo a escolher como área de ava-liação a de Ciências Sociais.Uma segunda razão da demora na minha titulação foram os investimentos relacionados à inserção na academia, como pesqui-sadora dos movimentos sociais. O tema me colocava num lugar ambivalente, com o qual já convivia há algum tempo. Como afir-mei anteriormente, nunca tive a menor sombra de dúvida de que minha opção profissional era a academia. Para isso, tinha que ter-minar a tese e prosseguir as atividades de pesquisa e orientação, mas não rejeitei possibilidades de diálogo com movimentos socais, com organizações não governamentais que atuavam com os tra-balhadores do campo e, mais eventualmente, com instituições governamentais. Esse diálogo me alimentava como pesquisadora, colocando -me questões que dificilmente chegariam por outros caminhos, estritamente acadêmicos. 64 Em maio de 1990, o Instituto do Açúcar e do Álcool foi extinto pelo governo Collor de Melo. Vários de seus prédios foram cedidos a outras instituições. É o caso dos quatro andares que funcionavam na avenida Presidente Vargas (6o ao 9o), formalmente cedidos à UFRRJ, após negociação mediada pela FAO, que tinha interesse em que a área de concentração que financiava funcionasse na cidade do Rio de Janeiro, dado o perfil latino-americano dos alunos e a necessidade de que convivessem com as bibliotecas, que abundavam na cidade. 224LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROSContinuei envolvida em debates vários. Já em 1987, vivi uma experiência enriquecedora participando, como representante da UFRRJ, na Comissão Agrária do Estado do Rio de Janeiro.65 A tare-fa central era participar de reuniões nas quais eram apresentados os processos de desapropriação, já devidamente instruídos com relatórios de vistoria, e discutir sobre a pertinência ou não da desa-propriação. Essa atividade me ajudou muito a refletir sobre temas que depois se consolidaram como objetos de pesquisa: a relação Estado/assentamentos no Rio de Janeiro, a dinâmica dos assenta-mentos fluminenses considerando a peculiaridade de seu público, os argumentos patronais (que eu havia estudado no mestrado, a partir de documentos, mas que agora eram esgrimidos em torno de uma mesa, num debate no qual estava em jogo a desapropriação ou não de alguns imóveis), e também meu lugar ali, como repre-sentante do Estado a partir da universidade. Esse foi um momento central para entender a multiplicidade de espaços e disputas no in-terior do Estado. Paralelamente, participava de reuniões no Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), para onde fora Candido Grzybowski, após um curto período como professor do CPDA. Num momento de intensas discussões sobre as perspectivas da reforma 65 Após a aprovação do I Plano Nacional de Reforma Agrária, no final de 1985, as diferentes unidades da Federação elaboraram seus próprios planos e constituíram suas comissões agrárias, destinadas a analisar os processos de desapropriação de terras e opinar sobre eles. As comissões eram compostas por três representantes das entidades patronais, três das entidades de trabalhadores e três do Estado: o superintendente do Incra estadual, um representante do governo estadual e um representante da Universidade. As comissões funcionaram por cerca de dois anos. Em virtude das vicissitudes políticas da reforma agrária no governo Sarney, acabaram desaparecendo ainda no final dos anos 1980.225LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROSagrária ante os recuos do governo Sarney e os horizontes que se abriam diante da instalação da Assembleia Constituinte em 1987, o Ibase era um fórum importante. Criara, em 1983, a Campanha Nacional pela Reforma Agrária, que se desdobrou na coleta de assi-naturas para que a proposta fosse incorporada na nova Constituição. Nos anos 1980, o seu casarão na rua Vicente de Souza abrigava dis-cussões e seminários diversos sobre reforma agrária. Logo depois, fui convidada por Maria Emília Pacheco, uma das coordenadoras da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), para um trabalho que representou um enor-me desafio, que aceitei, fiz com muito prazer, mas exigiu -me um grande investimento. A Fase, que tinha uma tradição de atuação em formação de trabalhadores, pedia -me para escrever um livro sobre a história das lutas dos trabalhadores do campo, destinado a subsidiar formação de lideranças. Eu tinha muita pesquisa já feita sobre o tema, tanto para minha dissertação de mestrado, quanto para a de doutorado ainda em curso, além de coisas escritas sobre sindicalismo. Tratava -se de sistematizar isso, verificar as ausên-cias e redigir um texto não acadêmico, ilustrado, com sugestões de vídeos. De acordo com a proposta, eu me encarregaria do texto e sugestões de imagens, e a Fase se responsabilizaria pela pesquisa de vídeos e edição do texto com as ilustrações adequadas. Jean Pierre Leroy elaborou, a partir de uma versão preliminar que pro-duzi, uma linha do tempo que foi encartada no livro. O resultado, História dos movimentos sociais no campo (Medeiros, 1989), além de largamente utilizado em cursos de formação, acabou sendo indicado também em algumas escolas de segundo grau e em anos 226LEONILDE SERVOLO